O PT não perdeu apenas nas urnas das eleições municipais. Sai derrotado também porque abriu espaço para a direita começar a falar em ética e assumir o discurso anticorrupção. A opinião é do filósofo Renato Janine Ribeiro, professor-titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo e ministro da Educação de Dilma Rousseff durante cinco meses – assumiu a pasta em abril de 2015 –, que faz uma ressalva: “Essa direita tem uma visão pobre da ética”.
Defensor da aliança que o partido fez com o PMDB, diz que, sem a coalizão, Lula não teria governado nem feito as políticas sociais de “deixar todo mundo besta de tão boas”. No entanto, essa fórmula de governabilidade se esgotou e isso, sim, deveria ser discutido. Para o filósofo, a força da esquerda está na capacidade de pensar, mas ela corre o risco do dogmatismo.
Janine Ribeiro afirma que a Lava Jato tem preferências políticas, mas considera a investigação saudável para o País. Só lamenta o fato de ela ser restrita ao PT, que não facilita sua autoimagem quando se vale apenas do discurso juridicamente correto. “Politicamente isso não funciona.”
Brasileiros – Nessas eleições, o PT sofreu derrotas. Acha que o partido está desacreditado?
Renato Janine Ribeiro – Não diria que totalmente desacreditado, mas perdeu muita credibilidade. A performance em São Paulo era essencial para o PT, pelo simbolismo de ser a maior cidade do Brasil. Se conservasse a cidade, seria seu melhor resultado. Não conservando, o segundo melhor teria sido o segundo turno. O terceiro era ficar em segundo lugar, como aconteceu. O quarto pior resultado seria ficar mais para trás na disputa. Nesse leque de opções, o PT conseguiu em São Paulo evitar a pior, colocou-se como principal candidato de antagonismo, mas não foi além. De todos os candidatos, o mais bem preparado era Fernando Haddad, mas ele ficou numa posição delicada. Sem ter nada a ver com escândalos nem corrupção, carregou esse ônus. Depois dele, viria Marta Suplicy, independentemente do fato de ter ido para o PMDB e votado a favor do impeachment. Os dois conhecem muito bem a cidade. Luiza Erundina, que eu respeito de maneira absoluta, fez uma campanha política, não sobre a cidade. No entanto, São Paulo elegeu João Doria, que considero despreparado e fechado ao conhecimento do que é a cidade. Russomanno também não é preparado, mas tem a vantagem de não afirmar coisas com tanta certeza e convicção. Doria tem certezas em excesso, propondo privatização de bens e até de ciclovias, o que dificilmente vai dar certo. Mas provavelmente vai ter na Câmara o apoio do PSD, do PMDB e do PRB, que apoiaram as candidaturas Marta-Matarazzo e
Russomanno. De modo que terá uma maioria esmagadora na Câmara, o que é preocupante.
Qual é o futuro da esquerda?
A força da esquerda está no pensamento, na capacidade de propor coisas novas. Isso não é pouca coisa. Mas precisamos perceber que temos uma direita que inclui cabeças boas, que não pode ser medida só pela Veja. Há pessoas capacitadas, inteligentes, destacaria Samuel Pessoa, economista liberal com compromisso com a distribuição de renda, com os programas sociais. Isso não tem a ver com o que se chamaria tradicionalmente de direita. No entanto, a esquerda tem um problema, agora agravado, que é o risco do dogmatismo, de não querer mudar nem o time que está perdendo, o que é delicado. Tanto Haddad quanto Marcelo Freixo, no Rio de Janeiro, tiveram uma votação digna de nota da classe média. Haddad teria tido mais votos ainda dessa mesma classe média, não fossem dois pontos. O primeiro, a hostilidade ideológica forte de parte dessa classe ao PT, embora muito do que ele fez tenha sido em bairros de classe média. O segundo ponto é o inverso deste, mas complementar: houve grande hostilidade de grupos secundários, do PT e de outros partidos, à classe média. É curioso observar que alguns segmentos do PT são mais hostis à classe média do que aos donos dos meios de produção. Até agora não consegui entender bem esse deslocamento da luta de classes para o plano estritamente ideológico. Do ponto de vista marxista, há um conflito de interesses, opondo a burguesia às classes pobres. Mas, na discussão dos últimos anos, o interesse sumiu. Deixou de haver conflito com a burguesia, talvez fruto da conciliação de classes que Lula promoveu. No entanto, sobrou um conflito ideológico entre a classe média e certos segmentos do PT. Finalmente, há grupos significativos de esquerda que não têm a menor noção do que significa imposto, grupos que demandam dinheiro do Estado, mas não sabem que esse dinheiro é finito.
Quais grupos?
Quando fui ministro da Educação, via grupos que queriam mais e mais dinheiro – quando este já não existia – e ao mesmo tempo repudiavam contribuição de empresa privada ou de suas fundações. Não tínhamos dinheiro e, segundo esses grupos, não se podia fazer nenhuma parceria. Essa ideia de que o dinheiro não tem custo é frequente nos meios de esquerda do Brasil. Como se insurge contra grandes injustiças, parte da esquerda faz propostas de pouca base realista. E agora, em vez de aproveitar esse tempo de desgaste para projetar o futuro, fica discutindo se faz ou não faz autocrítica.
Para pensar o futuro, não é necessário refletir sobre os erros e acertos?
Pode incluir, mas uma coisa é fazer autocrítica por fazer autocrítica e outra é fazer autocrítica no bojo de um projeto maior, que é pensar o futuro. Qual é a principal crítica que está sendo feita ao PT? A aliança com o PMDB, que depois o traiu. Mas, se o PT não tivesse feito alianças, não teria governado. O problema não é esse. A questão é pensar quando essas alianças foram feitas, que tipo, se foram oportunas, o que sucedeu. Mas as soluções são apresentadas com um voluntarismo enorme: bastava não se aliar ao PMDB e apelar para a sociedade, que o governo conseguiria tudo. Não é verdade. Sem a aliança, o PT teria saído do governo em 2005.
Na ocasião do mensalão.
Quando formou a aliança com o PMDB, Lula fez também uma série de políticas sociais de deixar todo mundo besta de tão boas e conseguiu duas coisas: apoio da sociedade e apoio político. Isso deu continuidade ao governo. Mas dá para fazer sempre isso? Não, esse método se esgotou por várias razões e isso valeria a pena discutir. Mas tenho visto autocríticas muito genéricas.
O senhor acha ingênuas as autocríticas do partido?
Nem sempre é ingenuidade. Às vezes é maldade mesmo. Há grupos que se dizem de esquerda e fazem um bombardeio total sobre o PT. Um traço forte da esquerda é o suicídio.
Como assim?
Por querer ter razão sempre. Sobretudo, aqueles membros da esquerda que têm uma vida boa e não precisam fazer certas concessões ou alianças. Por exemplo: muito acadêmico foi contra as coalizões feitas pelo Lula. Mas a vida do acadêmico é bem melhor que a do trabalhador ou a do desempregado. Então, se não tivesse havido as coalizões que permitiram melhorar a vida do trabalhador, nós, intelectuais, estaríamos felizes. Teríamos eleito um governo puro, maravilhoso, mas que teria durado dois meses: “Coisa triste, veja só como a direita é má”, diriam alguns. Mas, para o trabalhador ou, pior, a multidão de excluídos, isso não seria consolo nenhum.
O PT adotou a antipolítica?
Antipolítica, para mim, é fazer política com o propósito de perder. Ou com o princípio de querer ter razão e dane-se o mundo: isso é o contrário da política. Política é sempre um projeto de ganhar o jogo para fazer mudanças importantes para a sociedade. Se entrar no jogo só para marcar posição, tenho dúvida da validade de sua eficiência. Temos um exemplo histórico, a anticandidatura de Ulysses Guimarães à Presidência da República em 1973 contra o general Ernesto Geisel. Ulysses sabia que iria perder, mas fez um gesto político porque era uma denúncia. Há situações em que realmente se vai para o palanque para perder e isso tem sentido. Mas há situações em que se entra para perder e não se sabe bem por quê.
A ex-presidente Dilma sabia que não tinha chance contra o impeachment. Foi uma atitude política?
O problema do PT nesse um ano e meio, parte dele que acompanhei como ministro, é que o partido perdeu sistematicamente o timing. Por exemplo, a nomeação de Lula como ministro foi discutida em agosto do ano passado. Mas isso só aconteceu em março deste ano. Em agosto de 2015, Lula ministro significava que ele iria salvar o governo, promovendo o diálogo com setores que estavam descontentes com a política da presidente, mas não queriam o golpe. Significava que Lula iria colaborar com a manutenção de um projeto de esquerda. Mas, quando a decisão foi tomada em março, o que se entendeu é que Lula estava sendo nomeado para se salvar do juiz Sergio Moro. Não acredito muito nisso, penso que Lula iria ajudar o governo, mas a mensagem que passou para o público foi outra. E depois de a presidente ser afastada pela Câmara, vários setores propuseram eleições antecipadas, o que era difícil, mas poderia ter sido uma saída. Só que Dilma recusou até discutir a questão. Mais para o fim do processo, ela mudou de ideia. Já era tarde. Na hora em que o PMDB decidiu partir para o pau, em fevereiro, foi um ataque enorme, o jogo tinha acabado. Nesse sentido, a resistência da Dilma foi muito mais por sua biografia, pela dignidade pessoal, do que uma resistência política. Ela lutou como uma fera para defender a própria honra.
O senhor acha que a Lava Jato é neutra politicamente?
Não, ela tem uma preferência política. Até agora pegou, sobretudo, gente da esquerda. Não foi atrás do PSDB, nem de outros partidos. Mas há um lado que não dá para ignorar: pegou criminosos. Não é um factoide, não é uma invenção, é importante para o Brasil. Mas é uma pena que não seja mais abrangente.
Quais são os pontos positivos da investigação?
O procurador Dallagnol atuou no Ministério da Justiça, na gestão do Marcio Thomas Bastos, em programas que o próprio PT montou para ir atrás de corrupção. Ele sempre foi um homem religioso e teve papel importante no governo. Tentando entender do ponto de vista dele e do juiz Moro… São pessoas que se decepcionaram ao longo dos anos com a facilidade pela qual os bandidos do colarinho-branco se esgueiravam. É um traço histórico no Brasil. Era fácil escapar da punição por vários motivos, parece que houve um know how adquirido. Mas há um fato importante, que é o combate internacional à corrupção, que ganhou força nos últimos anos, sobretudo para garantir uma concorrência econômica justa entre as empresas. Os Estados Unidos penalizaram a corrupção no exterior: a empresa americana que comete corrupção no exterior está sujeita a penas fortes no país, inclusive de prisão. Adotaram regras, mecanismos para esse combate, que também foram assumidos por organizações internacionais. Esse pessoal que está na Lava Jato é muito bem formado. Então, a boa notícia é que não vai haver uma nova Banestado. Não vão ocorrer fracassos porque determinada investigação foi malfeita, por inépcia ou de propósito.
Mas por que a Lava Jato se restringe ao PT?
O partido esteve nos últimos 13 anos no governo. Então, faz sentido que, quando é aberta uma investigação para apurar uma rede criminosa que opera há bastante tempo, pegue o que está fresquinho. Mesmo assim, devia apurar as denúncias sobre o período do PSDB. Há outra questão na Lava Jato: o PT até agora não quis ou não pôde fazer uma narrativa que explique qual a responsabilidade por essa corrupção. Paulo Roberto Costa devolveu R$ 100 milhões, confessando-se corrupto. Mas a sociedade não ouve nenhum discurso explicando quem o mandou roubar. Paulo Roberto Costa é delator, não um sujeito generoso que está dando R$ 100 milhões para a Justiça. É um criminoso que devolveu o que roubou ou parte do que roubou. Mas quem o mandou fazer isso?
O discurso do PT é fraco?
Está sendo defensivo. O partido não teria condição de fazer uma apuração paralela, mas deveria ter, pelo menos, uma versão, uma narrativa, uma explicação que dissesse que tal corrupção não era por ordem do PT. Em vez disso, há o discurso, juridicamente correto, de que o ônus da prova não é do acusado, etc. Politicamente não funciona. Ou seja, grudou na sociedade que o PT é responsável por tudo. Falta política na reação do PT. As pessoas seguem uma lógica elementar: se roubaram tanto no governo Lula ou Dilma, como é que o governo não sabia? Você não precisa ser a Veja para fazer uma pergunta dessas.
Faltou ética?
Até chegar ao governo, o PT tinha duas grandes causas: acabar com a miséria e acabar com a corrupção, que eram éticas e ligadas. O preocupante é que, no governo, o partido descuidou do discurso ético. Não estou dizendo que foi corrupto. Mas parou de falar em ética e perdeu a chance de dizer que o combate à miséria era a grande causa ética brasileira. A chance de dizer: os verdadeiros éticos somos nós. Assim como no século XIX a grande causa ética era abolir a escravidão, a de hoje é acabar com a miséria. O movimento abolicionista foi ficando forte à medida que se tornou uma causa mais e mais ética das classes médias urbanas. Mas o PT, em vez disso, passou a falar mais e mais nos ganhos de consumo do pobre, o que é positivo, mas não tem força ética. Em 2005, quando o jogo virou, a oposição começou a falar em ética e assumiu o discurso da corrupção. Mas a direita tem uma visão muito pobre da ética, uma visão para a qual ética é apenas não haver corrupção. Não pensa que é ético acabar com a miséria. Uma oposição que acha possível um país com miséria e com desigualdade ser ético, desde que não haja corrupção. Nesse ponto, o PT perdeu a oportunidade de disputar a ética com essa oposição que não vê problema ético na miséria. Sim, o partido precisava administrar o Estado, o que é difícil, dialogar com setores com quem nunca tinha tido conversa, ter uma política para as Forças Armadas, o que nunca foi a praia dele. Ficou sobrecarregado, mas foi ruim perder uma de suas principais bandeiras. E isso não tem nada a ver com se corromper ou traição. A gente volta aqui à questão da inabilidade política, mas a passagem da ética para o segundo plano começa já no primeiro mandato petista.
Voltando à esquerda e à classe média. Essa parcela da população está à margem da esquerda?
Há um discurso de parte desses partidos, especialmente do PT, contra a classe média. Penso que está na hora de pegar certas pautas, que mundo afora são pautas de uma classe média esclarecida, como fazer a cidade mais humana, que é o que Paris fez, Barcelona fez e mesmo Nova York, que é mais problemática, também fez. A classe média quer ou aprenderá a querer isso. Haddad percebeu. E está na hora de fazer novas composições.
De que tipo?
Temos de pegar as três questões. A primeira é a retomada do crescimento econômico porque sem dinheiro não há inclusão social, verba para Educação e Saúde. Temos de crescer, mas com o cuidado de garantir que Mariana nunca mais. Não dá para crescer com economias porcas que, depois, custam bem mais do que o ganho obtido. Mas temos de crescer, ainda mais num país onde tanta coisa precisa ser feita. Mais dois pontos: crescimento com sustentabilidade, para a inclusão social. Fiz uma série de três artigos, anos atrás, que falam sobre a inclusão social pelo consumo, a inclusão social pela educação e a inclusão social pela cultura. O consumo é importante. Mas, se não houver os outros dois… O prefeito Doria tem uma cabeça de consumo. Se tivéssemos fortalecido nas pessoas uma cabeça para a Educação e a Cultura, teríamos anticorpos para evitar um retrocesso na cidade.
Leia o especial: Lava Jato, a Derrota do PT e o Futuro da Esquerda
Deixe um comentário