O exemplo da Revolução dos Cravos: fascismo nunca mais!

 

Foto: Olivia Pedroso
Ato na cidade do Porto. Foto: Olivia Pedroso

Desde pequeno ouço falar da Revolução dos Cravos – o “25 de Abril”, como dizem os portugueses, dia que marcou a derrubada do regime salazarista em 1974. Não que eu tenha aprendido sobre o assunto na escola. A queda da ditadura fascista que oprimiu os portugueses por 41 anos, o breve período revolucionário que se seguiu a ela e a posterior consolidação da democracia em terras lusitanas não parecem suficientemente importantes para estarem no currículo escolar brasileiro.

Se com Portugal compartilhamos a mesma língua e tantos traços culturais, um passado de colonização, independência e grandes movimentos migratórios (nas duas direções), isso não importa. Portugal foi um país pobre e pouco influente geopoliticamente por quase todo o século 20. Para as escolas, importa mais ensinar – não que isso não seja fundamental – sobre o governo de qualquer presidente norte-americano (Roosevelt, Kennedy, Nixon…), o Maio de 68 na França, o período de Thatcher na Inglaterra, as revoltas contra a URSS no Leste Europeu e assim por diante. Mas é somente a história das grandes potências, sempre.   

Pois bem. Sobre a Revolução dos Cravos, eu ouvia falar em conversas em casa, em algumas músicas (como “Tanto Mar”, de Chico Buarque) ou no filme “Capitães de Abril”, que por algum motivo assisti mais de uma vez na adolescência. Mas mais do que isso, um evento em particular, bastante íntimo à família, mas que diz muito sobre a história do século 20, sempre me comoveu. Foi o encontro de minha tia-avó – Clara Charf, ativista comunista e feminista, viúva de Carlos Marighella, irmã de minha avó Sarita – com o resto da família em Portugal, em 1975, após anos de exílio em Cuba.

Em 1970, na sequência do assassinato de Marighella (1911-1969) e após anos de luta contra a ditadura – primeiro pelo Partido Comunista e depois na luta armada com a Aliança Nacional Libertadora – o cerco da repressão se fechou de vez, e a permanência no Brasil, para a tia Clara e tantos outros guerrilheiros, seria uma escolha pela prisão, tortura e, possivelmente, a morte. Com documentos falsos e uma plástica no rosto (sua fisionomia já era bastante conhecida pelos agentes do regime militar), ela conseguiu sair do país e, após uma longa jornada, chegar a Cuba.

A família ficou sem notícias, por muito tempo. Não podia ir atrás, trocar cartas, nem mesmo para confirmar se ela havia chegado viva em Havana. Eram tempos de medo no Brasil – sempre bom lembrar, especialmente quando alguns ainda saem às ruas pedindo a intervenção militar. Pois em 1975, após uma comunicação cuidadosa e com a ajuda do governo cubano (realmente não sei dos detalhes, ainda hoje pouco falados na família, de como isso foi possível), minha avó e seus três filhos adolescentes embarcaram para Lisboa para encontrar a tia Clara.

Foto: Olivia Pedroso
Ato na cidade do Porto. Foto: Olivia Pedroso

Vivia-se o período do governo revolucionário em Portugal, e o país era território seguro para o encontro. O clima, segundo conta minha mãe, era de euforia e esperança na construção de um outro país possível. A emoção do reencontro familiar não posso descrever, já que eu nem era nascido. Sei vagamente de um quase desmaio, de horas de choro e por aí vai. Foram duas semanas passadas em Lisboa antes de minha tia voltar para Cuba, onde ficou por mais quatro anos até a anistia, em 1979.

Seja como for, escrevo este texto porque neste 25 de abril de 2017 estive nas ruas do Porto, acompanhando as celebrações, discursos, atos e shows organizados na cidade. A data da revolução é feriado nacional, motivo de orgulho para a grande maioria dos portugueses, que saem às ruas com cravos vermelhos e entoam a célebre “Grândola, Vila Morena”. Se reivindicações se fazem presentes – notadamente por melhores salários, direitos trabalhistas e contra a desigualdade de gênero –, o clima foi festivo e esperançoso com um governo que há cerca de um ano direciona Portugal para a esquerda, na contramão da tendência global.

Chamada de Geringonça, a união de quatro partidos de centro-esquerda e esquerda – Socialista, Comunista, Bloco de Esquerda e Verde –, capitaneados pelo mais moderado deles, tem conquistado bons resultados no país, seja em aspectos sociais, econômicos, no incentivo à revitalização urbana e à vida turística e cultural.

Voltando aos atos, o que mais se ouvia pelas ruas era o grito: “25 de abril sempre, fascismo nunca mais!”. Ouviam-se também falas sobre o inestimável valor da liberdade, a mesma que parece estar violenta e velozmente sendo retirada da população no Brasil pós-golpe, onde executivo, legislativo e judiciário demonstram pouca (ou nenhuma) simpatia pelo Estado de Direito, pelas liberdades individuais e pelos valores democráticos.  

E como escreveu o historiador Rui Tavares – fundador do Livre, um novo partido de esquerda português – em sua coluna no jornal “Público”, “fascismo nunca mais” é para levar a sério. Não se trata de um grito vazio ou de um slogan ultrapassado em um mundo que já amargou o poder dos sanguinários Salazar, Franco, Hitler, Mussolini, Pinochet, Stroessner e, no nosso caso, Costa e Silva, Médici, Geisel e tantos outros. Trata-se sim, de um grito necessário em um mundo que convive com Trump, Marie Le Pan, Geert Wilders, Yisrael Beiteinu ou, no nosso caso, Bolsonaro, Temer e seus comparsas, e tantos outros fascistóides ao redor do mundo.

Alguns deles são ainda ameaças; outros estão no poder. Por isso, especialmente em semana de greve geral contra mais retrocessos no Brasil, gritemos como os portugueses fizeram neste 25 de Abril: “Fascismo nunca mais!”.


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