Quando o Partido dos Trabalhadores se consolidou como a principal agremiação política da esquerda latino-americana ainda nos anos 1980, parecia que ele tinha uma vantagem: uma liderança carismática submetida a um partido organizado, e não o contrário.
Ele não era nem como o peronismo, capaz de forjar tendências de direita e esquerda, nem como os partidos centristas sem uma liderança reconhecida, como foram nos anos 1980 o PMDB e o PSDB, no Brasil, e a APRA e a UCR, no Peru e Argentina.
O PT foi uma novidade até a maior campanha de massas da história brasileira: as Diretas Já em 1984. A partir de sua derrota, aquele partido federativo de núcleos de base cedeu lugar a um partido de uma direção majoritária: a Articulação dos 113. Anos depois, as tendências organizadas estabeleceram um modus vivendi e ingressaram no comando compartilhado do PT.
A disputa de tendências mais ou menos radicais escondeu o processo de sufocamento das organizações de base. Se, por um lado, a ala majoritária burocratizava o partido, por outro, as alas de esquerda substituíam a voz das bases.
À margem do processo, Lula permaneceu como elo direto entre as bases sociais sem organização reconhecida e a máquina partidária. Quando chegou ao poder, ele atendeu à maior parte das demandas populares básicas. Mas filtradas por propostas sociais do PT. Ele realizou o conteúdo, não o método. A exigência de baixo seria “atendida” pela expertise de burocratas de estado com sensibilidade social e não pela “doação” do líder, como no populismo que o PT execrava.
Assim, a esquerda usufruiu não do melhor do populismo latino-americano, mas do pior. Obviamente que o populismo aqui não guarda nenhuma relação com o seu uso jornalístico corrente. A liderança interpelada pelo povo se radicaliza dentro dos limites da ordem e contornava os obstáculos burocráticos de um Estado impermeável à realização da vontade popular.
Aqui se deu o contrário. Embora a capacidade de Lula se impor não fosse pequena, o partido tinha força suficiente para contrapor-lhe duas barreiras de contenção: uma forte burocracia dirigente que transitou do sindicalismo e das máquinas locais ao estado; e uma ideologia mista republicana e socialista. Não me refiro, aqui, a Lula como pessoa, é óbvio, mas como símbolo de uma vontade coletiva.
O ecletismo ideológico não seria um mal em si na indecisão barroca do líder, mas se torna um erro fundante num partido com o nível organizacional do PT. Ele oscilou, assim, entre a soberba dos socialistas de Estado (a “nova classe”) e o falso republicanismo. Não se tratava de ganhos pecuniários, mas no fato de que se achavam investidos de uma missão: a de organizar o bloco de classes e as formas de produção adequadas para a construção da Nação.
Não seria uma novidade se não se cometesse o erro básico de não preparar o dispositivo de coerção adequado para tal empreendimento. Afinal, a questão nunca foi o limite burguês dessa leitura, pois o partido não se propunha nenhuma revolução mesmo. E, sim, em esquecer que no Brasil não há uma classe burguesa nacional, só pode haver uma vanguarda nacional.
Não foi à toa que a política de redução de juros viesse acoplada à ilusão de que empresários industriais optariam por um projeto nacional com os trabalhadores, e não pela sua rentabilidade financeira. Ao fim das contas, era o ajuste fiscal e a diminuição do custo do trabalho que podiam unificar a burguesia.
Quanto ao republicanismo, ele foi a outra trava que impediu aos dirigentes desenvolverem uma teoria do estado Latino Americano ou ao menos uma visão pragmática do mesmo. Pois nem isso foi possível e o pragmatismo desceu ao nível elementar dos conchavos de centro acadêmico ou de manobras de eleições sindicais.
Uma liderança com sua capacidade populista restrita por um partido muito bem organizado, mas nada revolucionário, pode pouco diante da reação do aparelho ampliado de estado contra o seu governo.
Ao que tudo indica, o partido aprendeu pouco com isso tudo. O apoio velado ou explícito a candidatos golpistas nas Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais é apenas um exemplo. A contrapartida de um partido parado em seu comodismo de Estado é a força de Lula que retorna como o líder das eleições de 2018, caso haja eleições. E caso ele não seja condenado para que não possa concorrer. Mas ele só sabe fazer uma política que já foi sepultada pelo golpe de 2016. E o seu partido nem aquela.
Às vésperas do VI Congresso, o PT só pode retomar algum protagonismo se denunciar a natureza do Estado. Isso implica assumir a defesa de seus presos políticos, reconhecer a parcialidade do Judiciário e a manipulação midiática. Isso não será feito sem a diminuição de suas bancadas mediante a submissão das mesmas a uma direção compartilhada do partido com movimentos sociais e frentes de resistência ao golpe.
Quando há um retrocesso político, a classe trabalhadora se agarra às suas instituições tradicionais e se mostra pouco disposta ao risco da radicalização e de novas formas de luta. No entanto, estas também vieram para ficar e não podem correr o risco da irrelevância ou do desaparecimento sob o Direito de Exceção, o qual condena a militância por crimes “comuns”. É preciso unir partidos, sindicatos, organizações de negros e mulheres e movimentos de todas as gerações e interesses.
Houve uma derrota e ela não foi só do PT. Mas da população brasileira. A estratégia será de longo prazo. O golpe de Estado visa se legitimar como um regime político com novos instrumentos de força “nacional”, acomodação de interesses na cúpula política e mudanças constitucionais.
Seus artífices sabem que não se arriscaram para devolver o governo dois anos depois. Mas com eles não haverá “paz social” e eles não se importarão com isso. Teremos uma resistência organizada ou mergulharemos numa violência desconhecida? A resposta depende apenas dos que se comprometem com os requisitos mínimos da “civilização”, ou seja: uma esquerda que consiga ser popular.
Deixe um comentário