Ok, vamos falar sobre corrupção

Foto: EBC
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Reconheço que é muito arriscado falar sobre a corrupção no Brasil em um artigo. É muito assunto para poucas páginas. Se encararmos a questão da corrupção de maneira um pouco mais distanciada, tentando escapar da personalização e da partidarização que estão dando o tom do “debate” nacional, talvez não sobre nenhuma instituição deste País isenta desta chaga. Nenhuma! Certamente, quero crer, sobrariam pessoas decentes em todas as instituições, grupos e partidos. Poderíamos até levar em conta vários graus de dolo e culpa dos indivíduos envolvidos, mas chegaríamos à (óbvia) conclusão de que a corrupção, em níveis diversos de gravidade e consequências, é histórica e endêmica em nosso triste Brasil. Seria a corrupção mais um dos nossos “males de origem”, como se dizia antigamente para explicar a inviabilidade do Brasil como sociedade democrática e moderna? Seria uma consequência normal “ser corrupto”, em um país no qual ainda não se tem noção consolidada das fronteiras entre o público e o privado?

Para pensar sobre essas questões, devemos tomar cuidado com a síndrome de Simão Bacamarte, o “alienista” de Machado de Assis, sob o risco de acabarmos como o famoso personagem literário. Bacamarte, cientista obsessivo, chegou à conclusão “científica” de que ele era o único louco na pequena Itaguaí, autointernando-se para sempre na Casa Verde, asilo por ele mesmo fundado para cuidar dos doentes mentais da cidade. Afinal, depois de prescrever a internação de 75% da população, o alienista se viu obrigado a rever seus padrões científicos para classificar a loucura geral. Se tantos eram aqueles que apresentavam distúrbios de comportamento, então o louco era quem se supunha racional e portador de conduta social exemplar. Trazendo a moral do conto machadiano para o nosso debate atual, se partirmos do princípio de que a corrupção é mal de origem e regra geral da sociedade por causa de algum defeito coletivo, todos os corruptos poderiam ser absolvidos. Se tudo é corrupção, se todos são corruptos, então, por derivação lógica da nossa “dialética da malandragem”, não há corrupção.

Tomemos outro caminho, o de cientista social sempre desconfiado das leis científicas absolutas, ao contrário de Simão Bacamarte. Para começar o debate, é preciso dizer que tanto o dedo acusador da corrupção direcionado a alguns partidos políticos quanto seu contrário, as explicações genéricas para o fenômeno da corrupção, só ajudam a manter o sistema que a produz. Em outras palavras, para analisar a corrupção in concreto, é preciso evitar a explicação da corrupção in abstracto.

Dado o enorme volume de matérias jornalísticas (sérias), processos judiciais e de trabalhos acadêmicos sobre o tema, já é possível arriscar uma síntese sobre a estrutura da corrupção na vida brasileira. Historicamente falando, a arquitetura da corrupção no Brasil parece se estruturar em três grandes conjuntos de ações ilegais contra o bem público, que têm origens e impactos diferenciados sobre a vida social e política. Para cada qual deveria haver um conjunto de ações específicas para combater o problema geral da corrupção.

Há um primeiro conjunto de práticas de corrupção que podem ser classificadas como “práticas sociais” arraigadas no comportamento do cidadão médio brasileiro. Essas práticas são filhas do clientelismo e do favor, constituintes da nossa vida social, ainda nos tempos da escravidão, como já analisou Roberto Schwarz. Aqui se enquadram ações ilegais ou contravencionais cotidianas, mais ou menos graves: da tradicional aposta no jogo do bicho à tentativa de suborno de guardas de trânsito, do mau uso da pequena verba local em um obscuro órgão de governo à carteirada da pequena “otoridade” para ter alguma vantagem no serviço público. Do médico que cobra por fora as cirurgias pagas pelo Estado ao funcionário público que falsifica atestado médico para abonar faltas. Do candidato que tenta fraudar um vestibular para o ensino superior ao aluno que compra trabalhos acadêmicos pela internet.

Enfim, a lista seria imensa, e cobriria uma gama infindável de pequenas e grandes concordatas éticas no cotidiano de todos nós. A corrupção não se traduz, propriamente, em transgredir ou questionar as leis, muitas delas claramente absurdas, mas lesar o interesse público e tentar obter vantagens pessoais em relação às regras aplicáveis aos outros cidadãos iguais a você. Obviamente, em condições de luta cruel pela sobrevivência diária, sem amparo de um Estado de bem-estar social minimamente eficaz, os deslizes do cidadão se veem muitas vezes justificados pela necessidade.
Em outras circunstâncias sociais ou históricas, a mesma pessoa que pratica os pequenos atos de corrupção cotidiana poderia ser um cidadão honesto e propenso à boa conduta pública.

Ao apontar essas pequenas ações de corrupção, não quero engrossar o coro dos falsos moralistas, pois dessa turma o Brasil já está lotado. Não é o deslize eventual, premido pela necessidade ou pelo descuido moral pontual na vida de alguém, que alimenta uma cultura social da corrupção, mas o fato de um conjunto grande de indivíduos de uma coletividade achar absolutamente normal, e até necessário, driblar as convenções éticas de comportamento público e “levar vantagem em tudo”, às expensas dos outros cidadãos e do erário público.

O segundo conjunto de ações que podem ser classificadas como “corrupção” envolve agentes e autoridades públicas que cometem desvios na sua função, tráfico de influência ou fraudes sistêmicas de toda ordem, visando puro enriquecimento pessoal ou favorecimento de grupos empresariais privados, em detrimento do dinheiro público. Nesse conjunto de práticas corruptas, é preciso separar violações de regras meramente formais, sem intenção de vantagens pessoais ou privadas, das práticas que envolvem dolo e prevaricação. Por exemplo, o não cumprimento de uma determinada regra formal de um processo de licitação de serviços e obras ou a revisão de preços de um contrato que estejam dentro da margem razoável (a chamada “faixa de preço médio do mercado”) para a conclusão de uma obra pública de grande escala não devem ser confundidos com má-fé do agente público ou do contratado privado. Há muito se discute a alteração nas regras de licitações para obras públicas, com propostas razoáveis por parte do Ministério Público e das próprias empresas que trabalham com o Estado, visando evitar que distorções técnicas da legislação estimulem práticas lesivas ao dinheiro público.

Neste segundo conjunto de práticas de corrupção, não podemos esquecer os grandes sonegadores fiscais que, sob o manto do “planejamento tributário”, apostam na lentidão do Judiciário para deixar de pagar bilhões em impostos para o Estado. Ainda neste campo, algumas modificações administrativas e legais, na Justiça e na burocracia, poderiam diminuir o tamanho do rombo nos cofres públicos. Para se ter uma ideia, no final de 2014, os 500 maiores devedores da União somavam R$ 392 bilhões de dívidas ao fisco (dados do Ministério da Fazenda) e, em outubro de 2015, o Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda estimou que a sonegação chegue a R$ 420 bilhões. E aqui não estamos incluindo as isenções aos mais ricos, que transformam o Brasil no “paraíso fiscal” para a alta renda, conforme dados do insuspeito Banco Mundial. É pura sonegação mesmo, na base do “devo, não nego, mas não vou pagar a não ser que me peguem no pulo e me obriguem na Justiça”. E também não estamos falando do cidadão que tem de escolher entre pagar o imposto devido e o aluguel, mas de grandes corporações que movimentam bilhões de dólares por ano.

Os dois primeiros conjuntos de práticas corruptas – a do cidadão no seu cotidiano e as grandes maracutaias envolvendo agentes públicos e privados – vêm de longa data e se confundem com a história da formação do Brasil como nação. Já o terceiro conjunto de práticas corruptas foi potencializado mais recentemente, embora sempre tenha existido. Trata-se do famigerado “financiamento ilegal de campanhas eleitorais”. Quando digo “recentemente”, não se entenda que este problema surgiu em 2003. Mas, inegavelmente, é um fenômeno que se potencializou a partir do final da ditadura. Como nas democracias todos podem vigiar todos (embora alguns vigiem mais do que são vigiados, sobretudo no caso brasileiro…), é natural que nesse tipo de regime político abundem as denúncias de corrupção mais do que nas ditaduras. Mas também é fato que os problemas com financiamento irregular de campanhas eleitorais cresceram à medida que elas ficaram cada vez mais dependentes do marketing profissional e da propaganda audiovisual superproduzida a preços estratosféricos ou de peregrinações dos candidatos por um grande território eleitoral, transformando as campanhas em um turismo político muito caro.

O desvio de dinheiro público que normalmente está ligado a esse tipo de corrupção foi potencializado pelo financiamento privado de campanhas, produto muitas vezes de superfaturamento de contratos públicos ou sonegações fiscais em grande escala, sob as vistas grossas do governo e dos políticos favorecidos. Por outro lado, não tenho muita ilusão de que o financiamento público e a proibição do financiamento privado para candidatos vão resolver o problema. A ver.

Uma ilusão que pode acometer políticos comprometidos com causas sociais sérias é a de que desviar dinheiro público para o partido não é tão grave quanto para o próprio bolso, posto que há um projeto político maior que justificaria tal prática em um ambiente de raposas em busca de galinheiros. Inegavelmente, há um dilema que se apresenta aos partidos que, por princípio, se propõem a mudar a sociedade para melhor e qualificar a vida política brasileira, sobretudo os de esquerda: como sobreviver eleitoralmente e ser viável como alternativa de poder em meio a campanhas políticas tão vazias quanto caras? Entretanto, ao aderirem a um pragmatismo excessivo e à concordata ético-moral para fins eleitorais, a esquerda abre um flanco que será inexoravelmente explorado pelos partidos e setores políticos mais conservadores que dominam o establishment. Vale lembrar que, no Brasil, o tema da corrupção é historicamente utilizado para combater os projetos progressistas e inclusivos, menos pelas suas (muitas) inconsistências e defeitos e mais pelas suas (poucas) conquistas e virtudes, como dizia o falecido Darcy Ribeiro. Foi assim em 1954, em 1964 e em 2015-2016.

Os três grandes conjuntos de práticas de corrupção se interpenetram, por isso o problema é mais complexo do que a visão esquemática aqui resumida. O cidadão corrupto, formado nos pequenos e grandes desvios éticos no seu cotidiano, preocupado com seu enriquecimento pessoal, muitas vezes se tornará o operador de negócios entre interesses privados e agentes públicos, e não raro pode ser o elo do financiamento privado ilegal de campanhas eleitorais. Os operadores da corrupção têm carreira promissora, de pequenos a grandes negócios. E, ao que parece, nem o vexame público da exposição dos seus nomes na imprensa e na Justiça desestimula novos candidatos ao posto.

Atualmente, há um otimismo interessado na imprensa mais conservadora, achando que a Justiça está passando o Brasil a limpo, de que o Brasil não será o mesmo depois do mensalão e da Lava Jato. Sem dúvida, o Brasil não será o mesmo, pois uma parte da esquerda será varrida do mapa eleitoral, ao menos dentro do médio prazo. Mas isso não significa que teremos uma política mais qualificada ou um país eticamente superior ao do passado recente, por alguns motivos básicos.

Primeiro, os paladinos que saem às ruas contra a “corrupção do PT” ou “dos políticos em geral” tratam a corrupção como questão muito genérica ou como questão muito partidária, esvaziando o potencial de um movimento social sério e eficaz contra a corrupção. Segundo, tudo indica que há um viés de investigação e punição nitidamente seletivo contra os corruptos do momento, voltado para alguns partidos da base do governo deposto e suas conexões empresariais. Terceiro, a maior parte das pessoas que batem panelas se coloca como vítima passiva dos “políticos” que ela mesma elegeu (ou reelegeu…), diga-se. Muitas vezes, o discurso de que “todos os políticos são iguais”, “fora todos” e slogans do tipo escondem uma visão autoritária de mundo, um desprezo pela política e, sobretudo, pela democracia. Essa postura, quando contamina o eleitorado, só alimenta aventureiros, justiceiros e candidatos à salvadores da pátria.

A corrupção deve ser enfrentada não apenas com voluntarismo e moralismo fácil. Também não se trata de um “mal de origem” intransponível. Mas reconheço que uma revolução cultural, que parta do cotidiano de todos nós, é necessária e saudável para enfrentar o primeiro conjunto de práticas corruptas inscritas nas práticas sociais do cidadão médio, oriundo de classes, etnias, escolaridades, religiões e origens sociais diferentes entre si. Se quiser realmente mudar a política, o cidadão brasileiro não pode mais pactuar com a corrupção, sobretudo aquela que parte da ideia de que os pequenos delitos sistemáticos são perdoáveis e inofensivos. Se for vítima de uma extorsão praticada pelo agente do Estado, deve aprender a denunciar, além de evitar as situações propícias à extorsão.
Mas não sejamos ingênuos: essa revolução cultural seria inócua para melhorar o sistema político, pois o voluntarismo pessoal e coletivo tem limites.

Nesse ponto, trata-se de lutar por novas estruturas e regras institucionais, revendo as leis que acobertam ou propiciam práticas de corrupção. É piada corrente neste País que a selva de leis brasileiras inferniza a vida do cidadão comum honesto, e facilita as maracutaias dos grandes golpistas, que conhecem as brechas de um sistema legal formalista, lento e confuso. Precisamos de um Ministério Público independente e atuante (em tempo, que evite o protagonismo político-partidário no seu interior), de leis mais simples e claras contra a corrupção envolvendo agentes públicos e privados, de campanhas eleitorais mais baratas e qualificadas. Precisamos de reforma política (que, aliás, até já saiu de pauta, se é que algum dia entrou).

Precisamos de políticos que se dediquem a defender os interesses dos cidadãos e não exclusivamente os dos seus familiares, financiadores e agregados. Mas, para isso, precisamos de eleitores que reflitam mais sobre o seu voto, bem como de um sistema eleitoral e político que concilie o funcionamento do regime presidencialista com os jogos e demandas parlamentares, sem ameaçar a tal “governabilidade”.

Para os pessimistas, como eu, é sempre bom lembrar que o Brasil conseguiu vencer uma longa chaga no seu histórico de corrupção: a fraude eleitoral sistêmica, talvez a mais grave de todas as corrupções no campo da política. Entre 1840, quando ocorreram as famosas “eleições do cacete”, e 1930, todos os pleitos eleitorais no Brasil eram, invariavelmente, fraudados pelos grupos de maior poder político local e regional. Só conseguimos vencer a fraude eleitoral sistêmica depois de 1930, quando a sociedade brasileira se mobilizou em torno do tema. Isso fez com que novos grupos políticos que ascenderam ao poder depois de 1930 começassem a combater a fraude eleitoral, até para quebrar a hegemonia absoluta dos antigos donos do poder, as oligarquias rurais.

A partir de então, o Estado brasileiro começou a criar as bases de uma Justiça Eleitoral independente, consolidada nos anos 1950. Desde então, as eleições gerais são limpas e, via de regra, respeitam a vontade do eleitor. Se as fraudes e tentativas de fraudes ainda existem, são residuais e localizadas, não interferindo no resultado dos pleitos nacionais, a não ser nos delírios da extrema-direita abrigada nas redes sociais. Pena que o próprio sistema político brasileiro, muitas vezes, não respeitou o resultado limpo das urnas, mas isso já é outra história.

Se o Brasil, como sociedade nacional, venceu essa chaga secular, que parecia insuperável, há uma esperança de que a corrupção sistêmica também seja vencida. E vamos seguir acreditando que os cidadãos honestos deste País não sejam tão poucos que até caibam em um asilo para loucos.


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