Subprocurador-geral da República, professor de Processo Penal da Universidade de Brasília e ex-ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff, Eugênio Aragão defende que, diante de um fato complexo, é legítimo investigar a partir de um modelo teórico. Por princípio, esse modelo deve ser flexível, para ser alterado à medida que as provas se acumulam e as investigações avançam para um ou outro lado. Pela análise de Aragão, é justamente nesse ponto que começam os problemas da Operação Lava Jato: “Os integrantes da força-tarefa, até por uma questão de vaidade, insistem no modelo original. E ficam socando a prova obtida dentro das categorias que criaram”.
Em alguns casos, afirma, a acusação formulada pelos procuradores da República instalados em Curitiba parece mais “uma questão de fé do que prova”. Foi o que aconteceu quando os procuradores Deltan Dallagnol e Henrique Possobon apresentaram denúncia contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, criticada até pelos mais ferrenhos aliados da Lava Jato, mas aceita seis dias depois pelo juiz Sergio Moro: “Trata-se de um jogo combinado, inconstitucional. Lá em Curitiba, a Polícia Federal, os procuradores e o juiz atuam em conjunto”. Aragão comenta ainda que foi o próprio Dallagnol, coordenador da força-tarefa, que admitiu em entrevista o trabalho conjunto: “Os dois são amigos, dão aulas na mesma instituição de ensino, agem como se fossem um só”.
Avesso à ideia de assistir impassivelmente à atuação que considera nociva à democracia, Aragão escreveu uma carta aberta ao procurador-geral da República assim que ele, Rodrigo Janot, fez um discurso considerando “desonesto” qualquer tipo de crítica feita à Lava Jato. Na carta, Aragão lembra inclusive comentário feito por Janot em encontro entre os dois, no qual o procurador-geral disse que a Lava Jato era “muito maior” do que ambos. Naquele momento, Aragão tinha externado seu temor quanto ao impacto provocado pela Lava Jato na economia do País, também tema de sua entrevista à Brasileiros: “Eles se gabam de ter devolvido à Petrobras US$ 2 bilhões, mas não veem o estrago que causaram na economia, que é muito superior. Por baixo, US$ 100 bilhões, se a gente pensar nos empregos que foram perdidos e nas indústrias, com seus artigos tecnológicos desmantelados”.
Brasileiros – O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se tornou réu após uma denúncia criticada até por seus mais ferrenhos adversários. O ex-ministro Guido Mantega foi preso num hospital. Como o senhor recebeu essas decisões?
Eugênio Aragão – É um jogo combinado, inconstitucional, entre o juiz Sergio Moro e os procuradores. Lá em Curitiba, a Polícia Federal, os procuradores e o juiz atuam em conjunto. No caso de Guido Mantega, o juiz admitiu, indiretamente, que não havia motivo para a prisão, ao mandar soltá-lo cinco horas depois. E prisão é um ato extremamente grave, que estigmatiza a pessoa. O Ministério Público só pode pedir a prisão a um juiz se houver indícios veementes da autoria de um crime e se a pessoa for de extrema periculosidade.
No episódio do ex-presidente, sobraram críticas à apresentação dos procuradores. Como a denúncia prosperou?
Trata-se de um grupo de pessoas que estão agindo sem nenhum controle e sem nenhuma accountability. Estão correndo soltas, completamente descontroladas. Quando as pessoas se colocam em cima de um pedestal, se achando os salvadores do mundo, não aceitam sugestões nem conselhos. No episódio de Lula, apresentaram um Power Point chulé, com uma série de ilações. A apresentação foi de tal generalidade que eles poderiam colocar qualquer um de nós lá dentro. Outro erro recorrente do Ministério Público é sacrificar a realidade para manter os seus castelos teóricos.
Como?
Quando tem um fato complexo, o Ministério Público trabalha com um modelo. É legítimo, desde que o modelo seja uma referência preliminar. À medida que a investigação avança, esse modelo tem de ter flexibilidade para ser alterado, conforme as novas constatações. Só que os integrantes da força-tarefa, até por uma questão de vaidade, insistem no modelo original. E ficam socando a prova obtida dentro das categorias que criaram. O que sai dali é um quadro de Salvador Dali. Um quadro de absurdos. Nada daquilo que foi apresentado em Curitiba é minimamente plausível. Parece muito mais uma questão de fé do que prova.
Qual a origem dessa postura?
A escola, essa ideia de se criar um modelo de atuação, começou com o mensalão. O problema é que o processo vai avançando e o modelo ficando superado. E o Ministério Público insiste em manter o castelo teórico. As teorias científicas têm de ter flexibilidade. Paul Feyerabend (filósofo austríaco) diz que os cientistas são todos desonestos porque são extremamente vaidosos. Quando acham um problema na teoria, eles botam a sujeira debaixo do tapete e fazem um puxadinho para que a teoria deles continue valendo. Então, as teorias não vão sendo automaticamente refeitas quando falseadas, mas submetidas a uma cosmética. E me parece que esses colegas estão agindo muito nessa linha feyerabendiana.
Dentro do Ministério Público, não existe uma forma de controlar situações desse tipo?
Para mim, essa coisa de força-tarefa é para FBI, para Miami Vice (série americana de tevê). Não tem tradição no Brasil. A primeira que houve foi durante a gestão do procurador da República Claudio Fonteles, para tratar do caso Banestado, que também, por sinal, tinha como juiz-coordenador o Sergio Moro.
E alguns dos procuradores da força-tarefa.
Também. Não foi uma boa experiência. Tanto não foi que quando Antonio Fernando de Souza (o sucessor de Fonteles) assumiu, a primeira coisa que fez foi acabar com a força-tarefa. O procurador-geral seguinte, Roberto Gurgel, também nunca aceitou força-tarefa. Por duas razões. A primeira é de política processual. Quem cria uma força-tarefa tem obrigação de apresentar um resultado estrambólico. Forças-tarefas não são criadas para arquivar processos. Há pressão para resultados, para uma condenação. Já existe um pré-julgamento.
E a segunda razão?
É o processo penal brasileiro, que tem características distintas de outros países. No processo penal brasileiro, o Ministério Público, a polícia e o Judiciário são atores extremamente empoderados. Muito mais do que em qualquer outro modelo no Direito Comparado. No Brasil você tem uma polícia que é tão forte que derruba ministro da Justiça. Vários ministros da Justiça tiveram que deixar o cargo porque brigaram com o diretor-geral da Polícia Federal.
Por exemplo?
Paulo Brossard. Quando Paulo Brossard começou a se desentender com Romeu Tuma (diretor da Polícia Federal entre 1985 e 1992), o que aconteceu? Sarney (o então presidente José Sarney) teve que colocá-lo no Supremo Tribunal Federal.
Foi preciso tirar do ministério?
Sim, porque não podia tirar o Romeu Tuma. Ou seja, o diretor-geral é mais forte do que o ministro de Estado. O Ministério Público, por sua vez, é um império. Ninguém toca nele. O Judiciário não fica atrás. Tem hoje um poder tão grande que manda até projeto de lei para o Congresso, para fixar seus vencimentos. Quando se tem três atores tão empoderados, é preciso um sistema de freios e contrapesos para controlá-los, o que eu chamo de filtros processuais. A polícia faz a investigação e qualquer tipo de reclamação de abusos da polícia é dirigido ao Ministério Público, que pode corrigi-los. Se o Ministério Público estiver fazendo algum tipo de abuso, o recurso é o juiz, que também corrige. E, se o juiz estiver fazendo alguma coisa errada, recorre-se à segunda instância. Então, existe um controle de cada um desses agentes, um pelo outro.
Isso na teoria.
Numa força-tarefa, onde existe uma verdadeira mescla, uma mancomunagem desses três atores e eles trabalhando de mãozinhas dadas, a quem é que o jurisdicionado vai recorrer?
A defesa fica inviabilizada?
Não só a defesa. Inviabiliza qualquer tipo de controle, qualquer tipo de prestação de contas ao público. Imagine, por exemplo, se alguém quiser reclamar contra a Lava Jato. Para quem vai reclamar? Até o Tribunal Regional da 4ª Região (a segunda instância) com muita dificuldade contraria os desígnios da Lava Jato.
O próprio ministro Teori Zavascki foi criticado pelo juiz Sergio Moro em artigo de jornal.
Eles perderam completamente a noção de limite. Não tem ninguém que controle isso.
Se perderam a noção, por que as instâncias superiores aceitam?
Isso é uma técnica, a articulação da jurisdição com a mídia. No momento em que o juiz Sergio Moro encontra apoio quase unânime da mídia, os outros juízes ficam com dificuldade de justificar publicamente algum tipo de censura. A maioria fica desconfortável, até porque no Judiciário existe uma cultura de um juiz não falar mal de outro.
Deixam de tomar uma atitude mesmo diante de medidas contrárias à lei?
A cultura do Judiciário é de autocomedimento, de autorrestrição. Quando um juiz vira o mascote da imprensa, gera uma perplexidade, uma insegurança por parte de muitos atores do Judiciário. E isso se reflete no processo de decisão, porque a pressão da opinião pública é enorme. Não é à toa que nos Estados Unidos qualquer prova que venha a público antes de ser submetida ao Grande Júri é nula. O Grande Júri não pode ser submetido à pressão da opinião pública. O juiz é humano como nós. Alguns são mais fortes, outros mais fracos.
Quem faz crítica corre o risco de ser confundido com quem não quer combater a corrupção?
Tem um pouco disso, mas as pessoas que pensam sabem que esse discurso hoje está desgastado. Quando a corrupção é sistêmica, não se combate apenas com Direito Penal. Não estou dizendo que o Direito Penal deva cruzar os braços e ver as pessoas surrupiarem os bens públicos. Não se trata disso, mas de dar mais ênfase a políticas estruturantes da administração. Para isso, é preciso entender um mínimo de economia da administração pública, o que o Ministério Público não entende. Quando é posto na frente de um problema, o Ministério Público quer um culpado, um bode expiatório. Não quer resolver o problema. E vem com um discurso moralista.
Como criar a impressão de que a corrupção no Brasil começou há poucos anos?
A corrupção sistêmica existe há séculos no Brasil. O problema é eles acharem que podem resolver essa corrupção sistêmica dando murro em cima da mesa. E na base de cassetete, colocando todo mundo dentro da cadeia. Não vai ter cadeia para tanto corrupto no Brasil. Eles vivem sob a ilusão de que o Direito Penal tem capacidade de resolver isso. O Direito Penal foi feito para a corrupção eventual. O sujeito, digamos, que tenta tirar proveito de um guarda de trânsito. Diante de todo um sistema de concorrência pública, de cartelização de empresas que funcionam na base de remunerações paralelas para atores políticos, é preciso rever não só a dinâmica política do País, para que os atores políticos não sejam mais clientela desse dinheiro desviado, como também criar defesas dentro da administração, para que ela não fique sujeita à extorsão por parte de agentes privados.
Mecanismos de transparência ajudariam?
É um aspecto. Um Estado como o nosso, em que os processos administrativos são extremamente atravancados, é natural que a peita (o suborno) funcione como uma forma de liberar o processo de decisão. Se eu quiser construir um frigorífico, construo em dois meses, mas para botar esse frigorífico para funcionar vou precisar de oito anos para conseguir as licenças. A administração cria dificuldades para vender facilidades.
Teria então que começar diminuindo a burocracia?
Digamos assim. Se um estrangeiro está querendo investir meio bilhão de dólares no Brasil, não vou tratá-lo como o Zé das Couves que está querendo abrir uma banquinha de legumes na esquina. Da mesma forma que os grandes bancos têm gerentes pessoais para os correntistas de contas mais graúdas, deveria ser criado um balcão especial para esse tipo de investidor. Ele não tem de correr atrás dos fiscais, das licenças, de entrar na cozinha do governo. Ele tem que ficar na sala de visitas. Um gerente geral de investimentos vai dizer o que ele precisa entregar em termos de papelada, o que deve pagar de taxas. E esse gerente-geral é quem deveria correr atrás dos órgãos da administração para eles tomarem a decisão o mais rápido possível sobre as licenças. Precisamos de boas práticas na administração para lidar com o setor privado.
E nesse momento, em que há uma série de episódios de corrupção comprovada na Petrobras, o que a Justiça deveria fazer com os corruptores?
Em primeiro lugar, para mim, essa prova tirada pela Lava Jato é altamente suspeita. Eu não sei se tem essa prova toda. Existem informações. Como o Ministério Público é escandaloso, mas não é nem um pouco transparente, não sabemos ao certo o que aconteceu, o que não aconteceu. O fato é que não podemos matar a iniciativa privada, por causa de más práticas na relação com o governo. A gente não mata barata botando fogo na casa.
A Lava Jato afeta a economia?
Não tenha dúvida. Eles se gabam de ter devolvido à Petrobras
US$ 2 bilhões, mas não veem o estrago que causaram na economia, que é muito superior. Por baixo, US$ 100 bilhões, se a gente pensar nos empregos que foram perdidos e nas indústrias, com seus artigos tecnológicos desmantelados. A indústria naval está indo para a estaca zero de novo. Já passamos por isso uma vez, na década de 1980, quando ela quebrou. Conseguimos reconstruir a indústria naval e estamos quebrando-a de novo.
E a indústria petroleira?
São ativos que vão demorar décadas para serem reconstituídos. Outro setor essencial, a indústria da construção civil, ficou fortissimamente abalado. Esses gigantes da construção civil são os responsáveis por construir a nossa infraestrutura. Não adianta pensar como economista liberal, no sentido de que haverá novas ofertas no dia em que esses gigantes quebrarem. Não é simples assim. Para entrar no Brasil e substituir uma Camargo Corrêa ou uma Norberto Odebrecht, as empresas estrangeiras vão querer saber qual é a segurança jurídica para fazer contrato com o governo. E quais são os custos logísticos, já que não têm canteiros de obras no Brasil. Até essas empresas estabelecerem a sua logística, os projetos vão custar mais caros. E tem algumas obras que essas empresas não sabem fazer, que só as nacionais sabem.
Como por exemplo?
Uma estrada na Amazônia, em terreno pantanoso, atravessando um rio atrás do outro. Quem tem tecnologia para isso são as nossas empresas. Se elas quebrarem, por um período de cinco a dez anos as obras de infraestrutura vão ficar comprometidas.Vamos perder o bonde da vez na economia global. Não podemos, por conta de uma luta moralista, afundar o País. O que vai sobrar? Empresas quebradas? Políticos de ocasião, os Berlusconis brasileiros?
Como punir, sem quebrar, uma empresa envolvida em corrupção?
Nós temos dois modelos possíveis. Converter as multas que forem aplicadas em um programa social, em projetos que o governo deveria fazer, mas tem poucos recursos, como na área educacional. Ao mesmo tempo, a empresa seria obrigada a mudar suas práticas, no sentido de criar um código de compliance e garantir que essas normas vigorem.
E a outra alternativa?
Se as multas forem de tal porte que prejudiquem a própria estrutura da companhia, a outra possibilidade seria negociar o valor, transferindo parte do controle da empresa para a União. A União poderia capitalizar a empresa e revender as ações capitalizadas no mercado, para ressarcir o prejuízo. A empresa muda de mão, mas sobrevive, até porque os administradores continuam os mesmos, para que seu know how permaneça.
E o administrador que foi responsável pelo ato de corrupção?
Esse deve ser punido, mas é uma questão pessoal. Deve-se distinguir o que acontece com a empresa e o que acontece com o indivíduo achado com a mão na cumbuca. Hoje no Brasil as empresas sofrem consequências horrorosas, como a proibição de contratar com a União. Impedidas de contratar com a Fazenda Pública, que constrói infraestrutura, elas vão para o buraco. É como jogar fora o neném junto com a água suja do banho.
E as medidas contra a corrupção que os procuradores da República mandaram para o Congresso?
São fruto de um populismo judicial-legislativo. Para começar, elas não têm nada de iniciativa popular. Foram gestadas no grupo da Lava Jato. Fizeram um pacotinho e venderam para a sociedade como se fosse a solução contra a corrupção. O Ministério Público já faz esse tipo de marketing há algum tempo.
Desde quando?
Desde 2013, quando a polícia apresentou na Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda Constitucional, a PEC 37, criando uma exclusividade para a polícia investigar em matéria criminal. O Ministério Público tomou aquilo como um risco a seu interesse corporativo. Naquela época, pululavam manifestações por todo território nacional. E o Ministério Público conseguiu inocular nessas manifestações o protesto contra a PEC 37, vendendo a ideia de que gente desonesta estava querendo impedi-lo de fazer a coisa certa. A maioria das pessoas nem sabia do que tratava a PEC 37, mas o que mais se viu nas manifestações foram cartazes dizendo “Abaixo a PEC 37”. Ou seja, o Ministério Público usou o movimento rueiro de 2013 para inocular uma agenda que era tipicamente corporativa.
Todo o Ministério Público?
É uma maioria do Ministério Público que pensa assim. Pensa que temos, realmente, que apoiar as Dez Medidas contra a Corrupção e considera o que está sendo feito em Curitiba como um modelo de ação. Poucos já viram que é um tiro no pé. Eu sou um deles, talvez o que mais fala, mas no País inteiro nós talvez tenhamos uns 200 que pensam desse jeito. Isso entre cerca de 20 mil agentes, se considerarmos o Ministério Público estadual, do trabalho, militar e o federal.
Qual é o papel do procurador-geral, Rodrigo Janot, nesse contexto?
Na posse da ministra Cármem Lúcia como presidente do Supremo, ele fez uma defesa agressiva da atuação da Lava Jato, dizendo ser desonesto qualquer tipo de crítica feita à operação. E ele prorrogou a Lava Jato por mais um ano, apesar de todas essas distorções. Ou seja, ele é parte desse problema. Não é a solução.
Por isso o senhor escreveu uma carta aberta para ele?
Eu tinha que fazer isso. Aprendi a fazer denúncia de modo absolutamente frio. Tem que dizer que no dia tal, fulano de tal, com a intenção tal, fez tal coisa e com isso prejudicou beltrano de tal. Não vou chamá-lo de meliante, de vagabundo. Uma denúncia não é um drama. Agora, uma denúncia de 147 páginas, como a que tinha sido feita contra o ex-presidente Lula, significa muita coisa mal explicada. Aliás, doutor Aristides Junqueira Alvarenga (procurador-geral da República entre 1989 e 1995) costumava dizer que denúncia com mais de 20 páginas era inepta. Ou seja, se há um fato claro para incriminar alguém, pode-se fazê-lo com poucas palavras.
Na carta aberta ao procurador-geral, o senhor citou o livro das Ordenações Filipinas para criticar a exibição de investigados e réus como se fossem troféus. Qual é a dimensão desse retrocesso?
Do ponto de vista do Direito Penal pós-iluminismo, isso é um retrocesso até a práticas medievais, porque Foucault (o filósofo francês Michel Foucault), um estudioso da criminologia moderna, distingue o Direito Penal moderno do pré-iluminista. No pré-iluminismo, o alvo era o corpo do inculpado. O Estado se apoderava do corpo. Flagelava, esquartejava, matava o inculpado na fogueira. O Direito Penal moderno, em vez de se apoderar do corpo do inculpado, se apodera do tempo. Ele bota o sujeito na cadeia. Ele não gosta de exibir o indivíduo porque é ciente das suas limitações do Direito Penal. Os operadores do Direito sabem que podem ser responsabilizados por isso. Nos Estados Unidos, não se pode nem fotografar um julgamento. Tamanha é a timidez do processo penal que lá tem pintor para retratar o julgamento. No Brasil, estamos voltando à época em que o Estado se apoderava da pessoa e a exibia, usava como troféu.
A Lava Jato faz mal para a democracia?
A meu ver faz. Faz mal quando os poderes não se autocontêm, quando são exercidos sem limite. E muito mais ainda quando eles têm alvos que são não muito claramente explicados para a população, em termos de seletividade. São ruins também para a democracia quando operações desse tipo servem para emprestar musculação para demandas corporativas.
Pela postura crítica, o senhor não é hostilizado por seus pares?
Na cara não. Mas na rede corporativa, onde todos conversam dentro da instituição, sou persona non grata já há muito tempo. Não me preocupa, porque eu devo lealdade não a uma corporação e sim ao serviço público, ao Brasil e sobretudo ao contribuinte que me paga. Minha crítica não é a colegas. Os colegas, em sua grande maioria, são pessoas discretas, que fazem o seu trabalho. São profissionais de boa-fé. A Lava Jato, como forma de atuar, não é regra geral do Ministério Público.
Qual a preocupação?
Estou olhando reflexivamente, como jurisdicionado. E se fosse eu que estivesse exposto ao superpoder deles? A quem eu iria recorrer? Como cidadão e como professor de Processo Penal, que também sou, na Universidade de Brasília, tenho que estar preocupado com isso. Os brasileiros têm que estar preocupados com o estrago na economia. Como eleitor, tenho que estar preocupado com a influência desse processo sobre o sistema político. O Ministério Público tem como função muito nobre, que é o artigo 127 da Constituição, ser o defensor da democracia. E, agindo dessa forma, não me parece que está desempenhando o papel de defensor da democracia.
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