Introdução
Desde 2014 a Petrobras passou a incorporar em seus balanços notas e observações gerais sobre os impactos financeiros e políticos da Operação Lava Jato na empresa, via de regra, sob o argumento da transparência. Tais itens buscam estabelecer uma relação causal falaciosa entre a prevenção da corrupção e a política de desinvestimento e privatização da companhia. Há, portanto, que se desmontar qualquer suposta evidência entre a corrupção e o desmonte da Petrobras.
Nos últimos anos a Petrobras esteve no centro do projeto industrial e social-desenvolvimentista. A petrolífera estatal brasileira teve papel decisivo no crescimento econômico do País e na recuperação da crise iniciada em 2008. Seu plano de investimentos foi decisivo para os projetos do PAC, sua política de conteúdo tecnológico local foi fundamental para a reativação da indústria naval e de engenharia pesada, sua política de pesquisa e desenvolvimento foi essencial para a descoberta do pré-sal e este, por seu turno, permitiu a criação de um fundo social para a educação e a saúde.
Prova disso é que o investimento da Petrobras saltou de US$ 9 bilhões em 2004 para quase US$ 55 bilhões em 2013; os efeitos multiplicadores significaram a geração de 50 mil empregos na indústria naval e milhares de postos de trabalho na indústria metal-mecânica.
No entanto, o atual governo tem se valido dos desdobramentos da Operação Lava Jato para fazer a opinião pública crer que o combate à corrupção deve ser feito por meio, não do saneamento e do aperfeiçoamento dos instrumentos de governança da empresa estatal, mas sim do desinvestimento e da descapitalização da Petrobras.
Por trás dos argumentos de combate à corrupção escondem-se interesses que atentam contra a soberania nacional e em favor de ganhos exorbitantes para o capital privado internacional e de ganhos curto-prazistas para alguns setores do capital privado nacional.
Para desmistificar a relação indevida estabelecida entre a corrupção e a Petrobras é preciso desmontar pelo menos três ideias que vêm se consolidando na opinião pública: (i) a ideia de que a corrupção é um problema endêmico apenas da Petrobras; (ii) a ideia de que um Estado menor significa menos corrupção; (iii) a ideia de que investimentos menores significam menos corrupção.
Mito 1 – A corrupção como problema endêmico da Petrobras
Ao contrário do que postula o setor mais liberal-conservador no interior da direção da Petrobras, a corrupção não pode ser tratada como um problema peculiar do Brasil e tampouco como um problema singular da Petrobras.
Em 2014, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgou seu último estudo sobre corrupção, fraude e propina no meio empresarial. O relatório chama a atenção para o fato de que o setor de mineração e extração é aquele com o maior número de casos de corrupção envolvendo grandes empresas, com 19% (conforme a tabela acima).
A explicação para tal constatação, segundo a própria OCDE, situa-se no fato de que esse setor é justamente aquele que mobiliza, comparativamente, o maior volume de investimentos e o maior número de contratos envolvendo valores vultosos. Sendo assim, a corrupção deve ser encarada menos como uma peculiaridade nacional ou como um problema endêmico de uma única empresa e mais como um problema sistêmico do setor que, para ser enfrentado, exige a implementação de medidas coordenadas de governança em âmbito nacional e internacional.
Mito 2 – O Estado mínimo como forma de combate à corrupção
A segunda ideia equivocada que tem permeado a opinião pública no Brasil é a de que a corrupção é resultado de um Estado grande, ineficiente e antimercado. Há pelo menos dois indicadores fundamentais para a mensuração da corrupção e da percepção sobre a corrupção, o primeiro organizado pelo Fórum Econômico Mundial (FEM) e o segundo pela Transparência Internacional (TI).
Nos dados divulgados pelas duas instituições no início deste ano, o Brasil aparece, respectivamente, na posição 135 (FEM) e na posição 79 (TI). O que chama a atenção, no entanto, é que, se considerarmos os 24 países sedes das principais indústrias petrolíferas, notaremos uma relação inversamente proporcional entre o nível de investimento e endividamento e o grau de presença ou percepção da corrupção.
Em outras palavras, os países considerados menos corruptos, como Noruega, Canadá, Holanda, Reino Unido e EUA, são justamente aqueles que dispõem de um maior nível de dívida pública sobre o PIB. Trata-se de Estados robustos e não de Estados mínimos (conforme a tabela à pág. 44).
A propósito, todos esses países dispõem de grandes empresas petrolíferas, tais como: Statoil, Suncor, Shell, BP, BG, Group, Exxon Mobil e Chevron, entre outras.
Mais ainda, os países considerados menos corruptos também dispõem de significativo nível de investimentos, contando com taxas mais elevadas de Formação Bruta do Capital Fixo (FBCF), que é o investimento em máquinas, equipamentos e tecnologia. Ao passo que os países considerados mais corruptos são aqueles que dispõem de menores níveis de endividamento público e investimento, como é o caso da Arábia da Saudi Aramco, da Argélia da Sonatrach, do México da Petroleos Mexicanos ou da Venezuela da PDVSA.
Ou seja, quanto mais fortalecido é o Estado e quanto mais intenso é o investimento menor é o nível de corrupção.
Mito 3 – A redução de investimento como forma de prevenção à corrupção
No plano de negócios para os próximos cinco anos anunciado em 2016 pelo presidente da Petrobras, merecem destaque as metas de (i) redução de 25% nos investimentos, que devem ser cortados de US$ 98,8 bilhões para US$ 74,1 bilhões; (ii) redução dos ativos da empresa, que deve sair integralmente de setores como os de gás liquefeito (GLP), biocombustíveis, petroquímicos e fertilizantes; (iii) realização de estudos para a venda da Liquigás e da BR Distribuidora; (iv) venda dos 47% de capital votante que a petroleira mantém na Braskem; (v) implementação de uma nova política mantendo os preços de derivados do petróleo em paridade com o mercado internacional.
A justificativa oficial para o desinvestimento, a descapitalização e a alienação patrimonial está ancorada na ideia de que a Petrobras precisa se refazer dos prejuízos
causados pela corrupção revelada pela Operação Lava Jato. Em 2014, a empresa estimou os prejuízos com corrupção em cerca de R$ 6,2 bilhões; nesse mesmo ano o lucro bruto da empresa foi de R$ 80,4 bilhões, ou seja, os problemas com corrupção, ainda que envolvendo montantes significativos, atingiram apenas 7,7% do lucro da empresa. O problema da corrupção não deve ser minimizado, mas certamente ele não justifica o encolhimento dos investimentos apontados pela atual direção da Petrobras.
Em 2015, o lucro bruto da empresa subiu para R$ 98,5 bilhões e as perdas com a Lava Jato efetivamente computadas nos resultados financeiros atingiram R$ 230 milhões, cerca de 0,23% do lucro; o mesmo se repete em 2016, de acordo com o último balanço divulgado pela empresa. Sendo assim, a redução dos investimentos não pode ser amparada pela justificativa da corrupção como um elemento capaz de desorganizar o conjunto das contas da empresa.
Nesse caso, vale tomar como exemplo comparativo duas situações do setor petrolífero em âmbito internacional. Em 2011, a Statoil, da Noruega, passou por um escândalo de corrupção envolvendo suas empresas na Líbia e em Angola. Tratava-se do pagamento sistemático de propinas para consultores desses dois países em valores anuais estimados em torno de US$ 100 milhões desde 2000. Passados três anos da descoberta do caso, os investimentos da empresa cresceram de US$ 84 bilhões em 2010 para US$ 133,6 bilhões em 2014. A propósito, nesse mesmo ano a empresa Shell foi flagrada em um escândalo na Nigéria envolvendo suborno da ordem de US$ 1,3 bilhão em uma licitação junto ao alto escalão do governo daquele país. Assim como a Statoil, passados três anos da revelação dos ilícitos, a Shell ampliou seu nível de investimento, tendo depois o reduzido em 2014, mas não pelo problema da corrupção e sim por uma mudança na estratégia de aquisições da empresa.
Sendo assim, passados três anos do início da Operação Lava Jato, não há essencialmente a necessidade de a Petrobras reduzir seus investimentos, como deixam claras as duas experiências internacionais acima mencionadas. Mais ainda, a corrupção, compreendida como um problema sistêmico e que afeta de modo mais intenso os Estados mais fracos, não deve ser tomada como justificativa para o encolhimento e o desmonte da Petrobras. E, de novo, aqui não se trata de defender qualquer forma de corrupção.
Conclusão
Ao contrário do que tem sugerido a atual gestão da Petrobras e na contramão do que a opinião pública tem admitido, não é lícito supor que (i) a corrupção é um problema endêmico do Brasil e da Petrobras – muito pelo contrário, trata-se de um problema sistêmico que impacta todo o setor de petróleo e mineração; (ii) de forma análoga, é equivocado supor que um Estado menor contribui para o combate à corrupção, os Estados considerados mais transparentes são justamente aqueles que dispõem de maiores níveis de investimento e de dívida pública/PIB; (iii) por fim, é errônea a ideia de que a redução de investimentos das empresas petrolíferas se apresenta como única saída ou como melhor alternativa para a prevenção à corrupção. Experiências internacionais demonstram que não deve haver uma correlação direta entre investimento e corrupção.
Com a perpetuação desses três mitos, sob o pretexto de solucionar um problema de curto prazo, o endividamento da Petrobras, a atual gestão utiliza a questão da corrupção como uma cortina de fumaça que afronta as possibilidades de construirmos, no médio e no longo prazo, um projeto baseado em um Estado soberano e em um desenvolvimento industrial nacional.
A concretização das propostas da atual direção da Petrobras faz com que a empresa deixe de ser o centro do desenvolvimento industrial do País. Dessa forma, além de o Estado perder autonomia relativa sobre parte de um recurso estratégico, diminui-se o efeito multiplicador da empresa na geração de emprego e renda e no estímulo ao desenvolvimento de tecnologia nacional. A corrupção não deve ser utilizada como mote ou pretexto para ofuscar e camuflar interesses outros que envolvem o ganho curto-prazista e rentista, sobretudo, do capital internacional.
*William Nozaki é cientista político, economista, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, membro do GEP-FUP
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