Os ventos da temporada 2015/2016 parecem ter deixado uma marca forte – devastadora – sobre a esquerda. E também sobre o que chamamos política. Ao menos política representativa.
Estamos digerindo e, como todo processo histórico que se preze, talvez ainda precisemos de ao menos algumas décadas para ajustar o foco. Mas como somos seres de desejo, de pensamento e ousadia, arrisquemos uns dois ou três fios da meada.
O primeiro. Seria legítimo nomear hoje, século XXI, algo como esquerda? Para começar, os acontecimentos nos mostram que estamos falando, na melhor das hipóteses, de um campo vasto, complexo- e que, como tal, tem um objeto plural: as esquerdas. São diversas, sobrepostas e revelam conflitos por vezes irreconciliáveis, a ponto de o território esquerdista lançar duas propostas ou candidaturas que se anulam uma a outra, dando margem para a velha – disfarçada ou não – manutenção da direita no poder. Para dar alguns nomes a alguns bois, podemos ir desde um sectarismo ortodoxo à la XIX, em que filiações de origem, Lenin, Trotsky ou Mao, para não citar o uber-pai, e “tendências” intra ou extrapartidárias são relevantes, até uma social-democracia amparada na ideia de bem-estar (chamada por alguns de direita), passando por movimentos antiglobalização e/ou anticapitalistas que podem apontar para o suprassumo do futuro ou para um retorno nostálgico à ideia de reconciliação com a natureza e o orgânico, de viés romântico à la fin do XVIII. Embora muito sucinto e inevitavelmente impreciso, esse desenho nos ajuda a formular a questão: como as esquerdas poderiam não se digladiar na arena e de fato propor uma nova matriz, para além de econômica, social-política-subjetiva?
Aí esbarramos em um segundo ponto. Teríamos essa pretensão? Debater com formatos capitalistas contemporâneos e propor novas formas de vida? Talvez. Então que ao menos se saiba disso. Que se saiba calma e conscientemente que o projeto é ambicioso: acusamos uma crise generalizada de coisas e processos que não funcionariam mais e debatemos uma nova matriz de vida. Novas formas de um vizinho conversar com o vizinho, novas formas de circulação de dinheiro e juros, nova forma de não legislar sobre os corpos, as sexualidades e os afetos, de se movimentar no tecido urbano, de inclusão social, de ajuizamento e hierarquização cultural e por aí vai.
O detalhe é que talvez nem todos estejamos de acordo com isso. O que fazer diante da RealPolitik? Pactos, ductos, tractos? Tradings? Os últimos governos de “esquerda” mundo afora nos mostraram que essa não é uma questão menor. As últimas eleições no Brasil nos mostraram que as pautas mais modernas, pós-modernas mesmo, não foram contempladas. Sim, se esquerda é projeto, é liberdade e construção de um outro viver, há uma outra questão que se levanta: todos estariam engajados nesse projeto? O que seriam ‘todos’? A população humana do planeta? O Brasil? A cidade? O seu prédio?
Essa pergunta pode levar a uma outra, mais geral: por que para a maioria ir à reunião de condomínio é muito chato e debater o futuro do mundo é muito interessante?
Sou do segundo time, certamente: leio inúmeras teorias, propostas, ideias e converso com muito bons interlocutores – com ou sem cerveja – para ajudar a delinear linhas de força centrais. Certamente não gostaria de menosprezar esse esforço e essa necessidade. Mas o mundo intelectual é desafiante e ao mesmo tempo muito livre, pois a imaginação pode tecer muitas teorias. É nesse ponto que críticos dos ópios das esquerdas e dos intelectuais fazem a festa. A submissão do pensamento a conceitos abstratos é seu maior dom e mais sagaz armadilha. Daí o emaranhado quase intransponível entre teoria e prática, velho debate. Mas não podemos somente criticar o dualismo; o conflito entre mais ou menos práxis, entre mais ou menos falação, existe.
E estar, permanecer, viver no real é estar, afinal, sempre no limite do insuportável. Não é à toa que permanecemos os dez primeiros anos da vida num longo processo de transição entre a fantasia e a realidade. Pelo menos os dez primeiros, quando a necessidade inevitável de ler, escrever, calcular, pensar e fazer prova se impõe. Claro que podemos enganar mais algumas décadas. Fazemos isso todos os dias. Não só com as drogas, os líquidos e as pílulas, mas sobretudo com mecanismos mentais levemente delirantes.
Exagero? Vislumbremos três breves sequências desse intrincado filme de ficção que é o imaginário político. Depois de Inácio trabalhador, aliás rei dos trabalhadores, self made man bem-sucedido que do ápice do carisma pop caiu como frágil bode expiatório no poço do antipetismo, tentamos quem sabe João Trabalhador, aquele que já é O rico e O gestor (aliás, o melhor e mais rico gestor hoje é aquele que conhece gente rica e importante e ajuda-as a se tornar gente mais rica e poderosa ainda, num trabalho de relações público-privadas tão clássico da teia brasil). Da fantasia do nosso irmão vencedor à de pai-patrão.
Lá fora continuamos na mesma, com delírios de grandeza e de recuperação de grandeza – tornar grande novamente o império perdido: de fato grande defesa contra a fantasia de uma iminência de perda apocalíptica. Vamos fazer muros e deixar as escórias de fora disso, por favor. Europa, América, Israel, Alphaville.
E nós, brasileiros tão coitados e vira-latas, admirando tudo isso. Chega, não? Podemos talvez parar de fugir da realidade concreta de todo dia, parar de invejar os outros e colocar nossa cabeça para funcionar e debater, como gente grande.
Por que insistimos em permanecer numa posição tão infantil? Não é possível que todo o desenrolar histórico nos tenha levado a posições cada vez mais regressivas.
Crescer de fato não é e não precisa ser tão impossível.
*Psicanalista. Pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP
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