O cara da Bienal

Ele quer seduzir -   O curador Charles Esche  planeja uma Bienal atraente sem nostalgia com o legado do Modernismo. Foto: Pablo de Sousa
Ele quer seduzir – O curador Charles Esche planeja uma Bienal atraente sem nostalgia com o legado do Modernismo. Foto: Pablo de Sousa

As mãos de Charles Esche falam alto: criam curvas e se chocam no ar, apontam para várias direções, jogam-se na mesa e batucam. São a expressão mais evidente do entusiasmo do curador-chefe da 31a Bienal de São Paulo (a curadoria é dividida com mais seis pessoas), que começa em 6 de setembro e vai até 7 de dezembro, e traz o enigmático título Como Falar das Coisas que não Existem. Aos 50 anos, Esche é um sujeito jovial, sorridente, com uma vasta experiência curando bienais e grandes eventos pelo mundo, de Kosovo, Londres e Istambul, a Ramallah, na Palestina. Também dirigiu museus, como o Van Abbemuseum, na Holanda, além de escrever frequentemente – e criticamente – sobre instituições de arte.

Defende o trabalho coletivo, a quebra da lógica neocapitalista do mercado de arte, o retorno da magia e da imaginação como formas transgressoras e, mais que tudo, a formação de um público com pensamento crítico. Propõe, entre muitas coisas, o acesso livre à Bienal, que será gratuita, e a comunhão do espaço do prédio assinado por Oscar Niemeyer com o Parque Ibirapuera.

Esche vive com a mulher e os filhos no bairro do Sumaré, em São Paulo, desde o começo do ano, o qual passou visitando cidades Brasil afora, para conhecer de perto o trabalho dos artistas e a realidade do País. Dessas conversas, surgiram ideias e projetos, também tocados pelo educativo da Bienal, a cargo de Stela Barbieri, parceira constante em todo o processo da mostra. Acredita na antiga frase de que o Brasil é o país do futuro e é otimista em relação ao que chama de sociedade coletiva: “Se pessoas como Julian Assange e Edward Snowden existem, a gente deve ser otimista. Eles quebraram o controle dos oligarcas, então há esperança na Terra”.

Em conversa bastante informal e divertida, na sala da presidência da Fundação Bienal, Esche expôs mais claramente seus conceitos e usou com frequência a palavra sedução. “Acho que a nossa responsabilidade é seduzir as pessoas. A melhor maneira de mudar as relações no mundo da arte e das instituições de arte é pela sedução. Não adianta simplesmente pedir para que as coisas se transformem, é preciso criar condições para que as mudanças sejam atraentes. Uma das nossas primeiras questões foi: ‘O que esse prédio precisa para atrair as pessoas?’. Ele é muito grande, impressionante para ser atraente, seduzir. Como fazer dele um lugar mais confortável, em que as pessoas possam se apropriar de seus espaços, e fazer algo, interagir. Foi um processo paralelo: pensar na arquitetura do prédio e, ao mesmo tempo, na arte a ser exposta. Ou seja, colocar as duas variantes na mesma equação”.

Ele explica como isso aconteceu e adianta como será a próxima Bienal. “Dividimos o prédio em três grandes espaços, cada qual com uma atmosfera própria, bem diferente. Em termos de sedução, o visitante pode passar de uma área para a outra, escolher sua favorita, etc. Outra maneira que pensamos para atrair o público é tirar as catracas do térreo e deixar esse piso aberto para o parque, para quem estiver por ali: a turma do skate, os casais de namorados, as crianças jogando bola. Todo mundo poderá entrar na Bienal, sem que isso seja um exercício formal, e decidir se quer ou não entrar na exposição. O térreo será tão livre quanto o parque. A ideia é que a transição para a exposição seja suave. A lógica do prédio pede por isso. As atuais barreiras de vidro obrigam as pessoas a darem uma volta imensa. É bem simples, na verdade. As melhores coisas são simples.”

É, de fato, uma homenagem a Oscar Niemeyer (1907-2012), o arquiteto que desenhou o prédio originalmente com o vão livre no térreo, mas ainda assim uma constatação do fim do Modernismo. “Vivemos nessa transição entre o moderno e o contemporâneo, que tem implicações em vários níveis, cultural, emocional e também político e econômico. E é esse o desafio: transitar num mundo moderno com uma cabeça contemporânea. Desde o começo, essa foi uma das nossas principais questões: como fazer esse prédio funcionar de um modo diferente? Essa é a primeira Bienal realizada depois da morte do Niemeyer. De certa forma, é uma maneira de deixar esse legado na história, sua morte representa o fim de uma era modernista. E algo novo está surgindo. Enfim, isso não quer dizer que somos contra o Modernismo, eu amo o Modernismo, mas ele acabou, é apenas uma constatação. Manter esse sistema seria cruel, algo como criar um zumbi, um símbolo que também pode ser aplicado para filosofias e visões de mundo. Precisamos deixar que o approach modernista termine. E estamos fazendo isso, tentando inserir uma visão contemporânea.”

Sua defesa do trabalho comum é clara e convincente: “Essa ideia do coletivo é uma reposta necessária à forma como a informação circula hoje em dia. Uma pessoa não pode saber tudo. Não dá para se fingir de ignorante e ficar preso a uma só região, como por exemplo, Estados Unidos e Europa do Norte, a uma só visão de mundo, seja ela política, social ou emocional. Por isso, decidimos formar um grupo de sete pessoas com opiniões diferentes, cada qual com sua experiência. Não se trata de decidir o que é certo ou errado, mas de pensar o que é mais adequado nessa situação. Um coletivo permite uma base maior de conhecimento e também um exercício de como tomar decisões. Gosto de trabalhar assim. Sei o que tenho na cabeça, por isso tenho mais interesse no que os outros pensam”.

Esche se diz frustrado com o conformismo da arte atual, contra o qual propõe mudanças estruturais. “Fico especialmente irritado com pseudointelectualismos, que me parecem feitos para excluir as pessoas, e não incluí-las. Acho que a arte deve olhar para si mesma e dizer: ‘Isso é o que eu acho importante e é o que quero mostrar para as pessoas’. Os curadores devem articular isso da maneira mais clara possível e é o que tento sempre fazer, comunicar a arte para além da elite. Não tenho interesse nessa discussão fechada, elitista da arte. Por outro lado, não se trata de dar o que o povo quer, mas de estimular o pensamento crítico, então deve haver um grau de dificuldade. A questão é se essa dificuldade deve estar logo na cara, de forma arrogante, como se dissesse: ‘Não estou interessada em você, arraia miúda’. Mas ela pode seduzir e apresentar dificuldade. E isso é justamente o que me interessa nesse trabalho. Nossa tarefa é escolher arte e artistas que trabalham nessa mesma direção, com essa questão. E a outra grande tarefa é tornar a Bienal mais acessível para as pessoas. Por isso, é importante que a entrada seja gratuita”.

Ele continua: “Existe uma estética inclusiva e uma que exclui. Mas a estética apenas não é suficiente, só a beleza não serve. É preciso ter conteúdo, estimular o pensamento. Ela é necessária, mas não suficiente. Precisa ter uma relação com a ética de alguma maneira. Não acredito na arte pela arte, que é a crença da burguesia e dos galeristas. Quanto mais a arte critica seu modo de vida, mais valorizada ela é. Jeff Koons é ótimo exemplo disso. Eles gastam milhões com essa arte. Assim, podem rir de si mesmos e se sentir mais poderosos, justamente porque podem rir de si mesmos. A arte autônoma não é mais uma questão, foi totalmente assimilada. A arte de conexões, que traz em si a massa que a burguesia afasta com seus muros e cercas elétricas é que hoje faz sentido e realmente provoca”.

Sobre o conceito “trans”, ele tem teorias curiosas. “Um dos aspectos mais interessantes desta Bienal é combinar elementos religiosos ou místicos com a ideia do trans, de transcendência, de sair do corpo, também no sentido de se tornar outra coisa, cujo gênero não é claro. Há trabalhos de pessoas que jogam com o código do vestuário católico e do candomblé de maneira que não se sabe mais a que gênero pertencem. Bem, Deus, nesse sentido é meio trans, não é claro seu gênero. Há um vídeo muito bom de Virginia Medeiros, que mostra um trans se transformando em um pastor evangélico e depois em um homem. Enfim, essa é a graça, unir o universo underground, transgressor, que confunde as identidades, ao mundo formal, cheio de regras.”

Das visitas pelo País, Esche lembra especialmente de duas experiências, uma bem negativa e outra bem positiva. “Fiquei chocado numa reunião que tive na Universidade do Ceará, em Fortaleza. Parecia que eu estava em um episódio do Game of Thrones, em que o rei manda cortar cabeças. Ouvi literalmente isso: ‘Está vendo essas pessoas, posso demiti-las amanhã, se quiser’. Foi algo realmente arcaico, brutal. Já em Recife, conversando com a curadora Cristina Tejo, e conhecendo a cidade, vi que parecia quase uma república independente, com uma visão própria do mundo, uma ligação forte com a África, até mais do que em Salvador. Senti que algo de muito poderoso pode acontecer lá nos próximos 10, 15 anos. A comunidade de lá é muito criativa. Salvador me pareceu mais melancólica, mais nostálgica, e Recife mais contemporânea, bastante diversificada e com potencial para voar alto.”

E voar alto, para ele, é uma qualidade impressionante. “Venho do noroeste da Europa, onde muitas coisas são impossíveis ultimamente, e no Brasil elas são possíveis. Aqui, onde estou há quase um ano e me sinto em casa, dá para respirar. Há muita coisa a ser feita, o que é inspirador. Tornar as instituições culturais mais fortes e funcionais é uma delas. Outro dia, eu estava conversando com políticos da União Europeia sobre empatia e de como é importante que os europeus percebam que eles estão em um lugar do mundo e não no lugar do mundo, o que é completamente diferente e muito difícil para eles entenderem, pois ainda querem controlar o mundo, estar em tudo o que acontece. Eles não têm de se reproduzir em todos os lugares, reproduzir seus modelos. O desafio do Brasil é brigar por seu espaço no mundo e, ao mesmo tempo, resolver seus laços históricos com os colonizadores.” Esche fica no Brasil até pelo menos 2015, quando termina a exposição itinerante da Bienal. Depois, ele diz, com a mesma simplicidade de sempre e com o sorriso animado: “Não sei o que vou fazer ainda”. I


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