Coração da terra

Nem mesmo as varadinhas educativas nos dedos foram capazes de melhorar o desempenho nas aulas de piano e aumentar o interesse daquele aluno pelas partituras. Após muita insistência, veio o veredicto: “Melhor parar, o menino não tem jeito para música, não!” Mal sabia dona Aparecida, a professora, que o garoto, então com 10 anos, se tornaria um respeitado compositor e multiinstrumentista. Marcus Viana diverte-se ao lembrar a história. Mas admite que no início tinha muita dificuldade com o formalismo das partituras e a rigidez do ensino tradicional de música. Um dos músicos brasileiros com o maior número de obras em catálogo (são 1.300 músicas, 58 CDs e DVDs) e autor de algumas das mais festejadas trilhas sonoras de TV e cinema, como a novela Pantanal, a minissérie Casa das Sete Mulheres e o filme Olga, ele até hoje se sente muito mais à vontade com o seu quase caótico método de criação musical. São arranjos livres que começam com imagens mentais, que remetem às harmonias. Coisa de quem cresceu ouvindo Villa-Lobos sentado no colo paterno, aprendendo o significado de cada passagem das obras do grande maestro brasileiro e depois transformando em desenhos o que as músicas o faziam imaginar.

A sua musicalidade ele credita em boa parte ao pai, o maestro Sebastião Viana, também flautista, pianista, acordeonista, responsável por fazer com que, no seu ambiente familiar, diariamente se respirassem notas, compassos e acordes. Resultado: os seus três filhos tornaram-se músicos. O pai foi assistente e revisor de Villa-Lobos e professor de nomes consagrados como Luiz Gonzaga, antes de se mudar para Belo Horizonte, na década de 1950, para montar a orquestra sinfônica da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), que chegou a abastecer o meio musical do Rio e São Paulo com alguns dos seus melhores profissionais. Marcus Viana deixou aflorar sua herança musical e durante a adolescência frequentou diariamente a Escola de Formação Musical da PMMG, onde aprendeu a tocar violino. Mas por insistência do pai, que achava que a profissão de músico não dava futuro no Brasil, acabou estudando direito, curso que abandonou no terceiro ano para desespero da família. “Larguei tudo e tornei-me artista profissional ao ser admitido na Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, onde fiquei por sete anos”, afirma.
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Aos 22 anos, depois de uma temporada nos Estados Unidos, onde aprendeu sozinho a tocar piano e criar suas próprias melodias, Viana tornou-se compositor e letrista das suas próprias obras. Enterrou de vez a futura carreira de diplomata – sonho da família. “Comecei a participar e fui premiado em quase todos os festivais de música que aconteceram em Belo Horizonte e em diversas cidades do interior de Minas, apresentando uma inédita combinação de MPB com o clássico. Num deles descobri que também podia cantar”, diz Viana. Ele lembra de um desses festivais com especial carinho. Foi no antigo Hipódromo Serra Verde, na capital mineira, em 1975, onde aconteceu uma apresentação dos Mutantes. O músico Sérgio Dias, guitarrista da banda paulista, ficou impressionado com sua performance ao violino e como incentivo prometeu-lhe enviar dos Estados Unidos um componente eletrônico (cristal) que melhoraria, e muito, o som do seu instrumento. Promessa cumprida. Foi também nessa época que Viana conheceu o rock progressivo do Saecula Saeculorum e se autoconvidou para participar da criação coletiva das suas obras e das apresentações públicas. Mas o grupo sobreviveu pouco tempo, de 1974 a 1977, mesmo tendo sido chamado a gravar por André Midani, então todo-poderoso da multinacional Warner Music, com apoio do conhecido produtor Liminha. O insucesso foi atribuído à imaturidade dos integrantes da banda.

Órfão da energia criativa do Saecula, vieram outras tentativas com as bandas Conclave dos Druidas e Ícaro, que não passaram dos ensaios de garagem. Depois, em 1979, foi a vez do Sagrado Coração da Terra, considerado a síntese do pensamento e estilo musical que é a marca registrada de Marcus Viana até hoje: o rock sinfônico progressivo baseado nos mistérios das galáxias, no esoterismo e na natureza. Foram várias turnês e gravações com Milton Nascimento e outros integrantes do Clube da Esquina, como Beto Guedes, Lô Borges e Flávio Venturini. A banda, que já naqueles tempos – há cerca de 30 anos – falava de buracos na camada de ozônio e da destruição do meio ambiente pelos seres humanos, sobrevivia com dificuldade. Sem gravadora, em 1984, Marcus Viana produziu por conta própria o álbum Sagrado Coração da Terra, contendo canções e sinfonias compostas e orquestradas por ele. O sucesso desse trabalho levou ao segundo disco, Flecha, com repercussão nacional. A música título foi o tema do personagem principal da novela Que Rei Sou Eu? e clipe no programa Fantástico, ambos da Rede Globo. O Sagrado lançou ainda mais três CDs: Grande Espírito, com participação especial de Milton Nascimento, Farol da Liberdade e A Leste do Sol, Oeste da Lua.

SHOW NA PRAÇA
A forte tempestade que caiu naquela tarde, final de temporada de verão, não foi suficiente para assustar os moradores da periferia da cidade que embarcam diariamente de volta para casa na região da Praça da Estação, hoje um lugar de cultura ao ar livre montado pela prefeitura. Era a última apresentação pública de Marcus Viana e suas bandas em 2008, em Belo Horizonte. Esta foi a plateia que acompanhou, sem arredar pé, as empolgantes performances da clássica Transfônica Orkestra e do rock progressivo sinfônico do Saecula Saeculorum. Para eles, foi como um inesperado presente caído do céu, junto com a chuva e a espiritualidade da música interpretada por Naiana Papini, uma jovem soprano descoberta por Marcus Viana. Em pé ou sentados, desfrutando o vibrante espetáculo de sons e luzes, sob chuva, mal se davam conta de quem se apresentava no palco. Numa das principais fileiras, Walace Borges, 38 anos, operário de uma fábrica de tijolos, arriscou: “É da novela Pantanal, não é? Gosto muito. Nunca ia pensar que estou aqui agora, ouvindo essas músicas de graça. Mesmo querendo, nunca tive dinheiro pra pagar isso, não”. Normalmente suas apresentações são em casas de espetáculos que cobram preços proibitivos para a maioria da população. Entre esses “excluídos”, na definição de um dos integrantes das bandas, estava Ana Luiza Fialho, 28 anos, sua filha de três anos, Lana Luiza e sua mãe, Maria de Fátima, que as trouxe de ônibus para ver Marcus Viana, que conheceu quando participava do coral e ele era violinista da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais. Passando por um novo momento em sua vida, morando sozinho numa casa no alto das montanhas próximas a Belo Horizonte, após o recente final de um relacionamento de vários anos, Viana não se considera numa fase produtiva e, por isso, resistiu o quanto pôde a conceder a entrevista. Pura modéstia.

Encontro marcado
Ao participar de um programa especial sobre o álbum Flecha, em 1989, na extinta TV Manchete, Marcus Viana conheceu o diretor Jayme Monjardim, com quem começou uma parceria que já dura 20 anos e rendeu algumas das melhores e mais conhecidas trilhas sonoras produzidas no País para TV e cinema. O primeiro trabalho bem-sucedido da dupla foi Pantanal, seguido das novelas Kananga do Japão e Ana Raio e Zé Trovão. Viana tem ainda participações em Meu Pé de Laranja Lima e Serras Azuis, na TV Bandeirantes; Terra Nostra, O Clone e minisséries como Aquarela do Brasil, Chiquinha Gonzaga, Casa das Sete Mulheres e, mais recentemente, o especial sobre a vida da cantora Maysa, mãe do parceiro Monjardim, todas na Rede Globo.

No cinema, fez as trilhas de Olga, Filhas do Vento, O Mundo em Duas Voltas, da navegadora família Schürmann, e o documentário Entre a Luz e a Sombra, de Luciana Burlamarqui. Seu trabalho, porém, não se restringe às composições, letras e aos diversos instrumentos que domina com habilidade. Por meio da produtora Sonhos e Sons, é responsável pelo maior número de CDs e DVDs lançados por uma produtora independente em todo o mundo, com mais de 350 títulos entre música instrumental, MPB e trilhas sonoras, passando por canções infantis, new age, música clássica e contemporânea, world music e rock progressivo. Desde 1985, apresenta-se com a Transfônica Orkestra, grupo de música instrumental e cantada formada por ele, que funde elementos sinfônicos às raízes brasileiras e afro-ameríndias e o acompanha na execução das trilhas sonoras de filmes e novelas. E promove o retorno, 30 anos depois, do rock sinfônico progressivo do Saecula Saeculorum. Marcus Viana está com vários novos projetos. Um deles é escrever um livro sobre o poder oculto da música. Outro é ampliar a sua produção e torná-la mais diversificada, de forma a atingir igualmente as elites e as camadas populares, mas trabalhando a conexão entre os mundos físico e espiritual, de forma que as pessoas possam praticar sua religiosidade através da música e usar o poder curativo dela, contribuindo na limpeza planetária. Viana tem consciência de que suas idéias podem não ser bem compreendidas hoje, mas não se preocupa muito com isso. “Aos 55 anos, não preciso que o mundo acredite em mim. Importa colocar em prática o meu projeto espiritual ou, como disse certa vez o maestro Villa-Lobos, as músicas são cartas escritas para a posteridade, sem esperar a resposta”, conclui.


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