Meados de abril de 1964, sob um céu cinza chumbo a terra em transe ganhava certo colorido com um rapaz de 29 anos, cabelos tingidos de loiro, vestindo uma camisa listrada de azul e branco que saía por ali, pelo bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, para fazer uma entrega de comida. Não muito em voga em 1964, o hoje famoso delivery levava aquele jovem às portas da Embaixada do México. Entregou a encomenda não solicitada e ficou no prédio. Era Cláudio Braga, deputado estadual pernambucano cassado, que entrava naquele prédio para depois desembarcar no México ao lado de mais de 50 outros companheiros da esquerda, perseguidos pela ditadura militar.
Líder ferroviário, parlamentar durante dois anos no Partido Socialista Brasileiro (PSB), Cláudio estava no Rio de Janeiro quando eclodiu o golpe militar. O marco para os militares é 31 de março, mas os militantes da esquerda como Cláudio Braga sempre acentuam que, embora tristemente verdadeiro, o golpe se deu em primeiro de abril.
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Até aquela data do disfarce de entregador, o parlamentar teve uma carreira ascendente à frente do Sindicato dos Ferroviários de Pernambuco, convivendo com figuras de proa da esquerda, como Miguel Arraes, Gregório Bezerra, Francisco Julião, Santiago Dantas, Leonel Brizola e o presidente João Goulart, que veio, no exílio, a fazer parte constante da vida de Cláudio Braga, como veremos a seguir.
Da apertada sala na embaixada, os mais de 50 esquerdistas foram para o México em pequenos grupos. A sala só ficou vazia mais de um mês depois do golpe. Cláudio morou nesse país da América do Norte durante um ano, com a esposa Irene e os filhos Eduardo e Carlos, que saíram do Brasil com 7 e 6 anos, respectivamente. A caçula, Vilma, nasceu no ano de 1966 em Montevidéu, para onde Cláudio seguiu, convidado por João Goulart para ser seu secretário particular.
Conviveram no Uruguai vários anos até o golpe de 1973, indo residir na Argentina. Com os militares tomando o poder também nesse país, Cláudio voltou para Montevidéu.
Neste ínterim, quando programavam o retorno ao Brasil, acontece a morte de João Goulart, o que até hoje suscita polêmica. Mas Cláudio acredita que o ex-presidente brasileiro faleceu de um enfarte, colocando em dúvida qualquer ilação, sem desmerecer as investigações feitas e aquelas que porventura venham a ser feitas. Assegura que não teria nenhum problema em reconhecer e denunciar se tivesse a certeza de um assassinato, mas não vê como colocar o acontecido com João Goulart ao lado do que houve com aqueles que realmente foram sacrificados durante as muitas ditaduras que assolaram a América Latina.
Cláudio estava com 29 anos e 16 dias quando foi ajudado pelo futuro ministro da Educação do governo João Baptista Figueiredo a bater nas portas da Embaixada do México com o subterfúgio de entregar o alimento encomendado. Eduardo Portela, aquele que marcou sua história ao afirmar que não era, porém estava ministro, idealizou o disfarce para que Cláudio Braga fizesse parte do rol dos que partiram num rabo de foguete.
Entre idas e vindas ao Brasil, com parte da família regressando definitivamente, Cláudio separou-se da esposa Irene, conheceu a advogada argentina Marcela, com quem vive até hoje, aos 74 anos, de frente para o Rio da Prata, no aprazível bairro de Pocitos, em Montevidéu. E foi neste agradável local que Brasileiros o encontrou para conversar a respeito da sua trajetória política antes do golpe e dos 45 anos de vida seguidos em que a ditadura militar ditou o seu destino.
Cláudio falou de tudo durante mais de quatro horas, mas antes fez uma imposição: “Se continuar a me chamar de senhor, não falo mais nada”.
Brasileiros – Como foi sua infância?
Cláudio Braga – Eu nasci na Bahia numa ocasional viagem de meus pais, embora tenha passado minha infância e juventude em Pernambuco. Sou filho de uma mãe extremamente culta, que pintava e tocava. Meu pai veio muito menino de Portugal para fazer a vida, descobrir a América, desembarcando em Recife. Aos 17 anos de idade comecei a trabalhar no cargo mais humilde que existia na ferrovia do Nordeste, que era o de vigilante de safras. Fazia a vigilância nos armazéns de açúcar na época de safra. Em virtude de ter estudado código Morse quando fiz o serviço militar, na volta ascendi para ajudante de agente de estação e, posteriormente, agente de estação. Estudei administração de serviço público, com especialidade em ferrovia, e cheguei a administrador.
Brasileiros – Como se iniciou no sindicalismo?
C.B. – Quando eu tinha 21 anos, no início de minha carreira de dirigente sindical, foi criada a Rede Ferroviária Federal. No fundo, o intuito era o de destruir as ferrovias. Quem impunha essa política era a América do Norte, que dava empréstimos para o Brasil construir estradas paralelas às ferrovias, sendo que em toda parte do mundo elas são complementares e nunca paralelas. Com isso, as ferrovias perdiam sua produtividade e nas estradas começavam a circular caminhões Ford e Chevrolet, com pneus Firestone e Goodyear, importações que o Brasil fazia da América do Norte. Deixávamos de ter reservas genuínas e ainda obrigavam o Brasil a consumir produtos de fora. Isso me impactou muito e foi uma constante nas minhas denúncias. Ecoava mal porque diziam que esta tese era dos comunistas e antiamericanos, mas na verdade era a dos nacionalistas, como era Monteiro Lobato quando defendia que nós tínhamos petróleo e Juarez Távora dizia que não. Nesse movimento nacionalista eu fui tomando contato com as bases ferroviárias e, aos 24 anos, era presidente do Sindicato dos Empregados de Empresas Ferroviárias do Nordeste, com base territorial em Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte.Tivemos aí uma atuação que nos levou a ser eleitos para a Federação Nacional dos Ferroviários, numa eleição renhida contra pelegos. Conseguimos vencer com a liderança de um paulista, Rafael Martinelli, que está vivo, a quem eu rendo minhas homenagens, um homem com uma capacidade tremenda que na ditadura esteve seis anos preso numa injustiça tremenda e a Demisthoclides Batista, o Batistinha, dirigente sindical do Rio de Janeiro, deputado federal negro que se salvou da prática hedionda de se destruir os pobres e os pretos, formando-se em direito e sendo um dos grandes dirigentes sindicais do Brasil. Formávamos uma direção que estava aliada a uma ramificação da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), que era o Pacto de Unidade e Ação (PUA). Fizemos um pacto com os ferroviários, portuários e marítimos. Tínhamos as mesmas aspirações com referência às demandas da navegação e exploração do porto. Um episódio que ficou célebre naquela época foi a lei de paridade, que pleiteava igualdade salarial entre civis e militares. Na verdade não estávamos defendo os militares, pois eles tinham um poder muito grande. Eles tinham mais aumento do que a gente e nisso queríamos estar juntos. Foi um movimento muito interessante para nós, mas com muitas prisões. Eu estava no Rio e quando voltei para Recife o avião foi interditado e fui para prisão. No Rio, o Martinelli e o Batistinha também foram para o cárcere. Mas o movimento foi vitorioso. Só veio a ser derrubado com a força das baionetas dos militares. Quando assumiram não respeitaram mais nenhum desses acordos salariais, nem nada.
Brasileiros – Quando teve os primeiros contatos com João Goulart?
C.B. – Já tinha algumas demandas com o então vice-presidente João Goulart, em questões voltadas aos ferroviários. Com o apoio destes trabalhadores, Jango solicitou que fosse entregue ao meu comando a superintendência do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Ferroviários Empregados em Serviço Público (IAPFESP). Juscelino intercedeu positivamente. Aí, passei a atender o sindicato e a questão previdenciária, o que me permitiu trabalhar pela moralização daquele serviço.
Brasileiros – Da liderança, partiu para a vida política?
C.B. – Correto. Licenciei-me, para atender às forças sindicais que entendiam que eu devia me candidatar a deputado. Tive a honra de ser o deputado mais votado em Pernambuco, em 1962, quando eu tinha 26 anos. Mesmo disputando com políticos velhos e detentores do poder econômico. No meu primeiro ano de mandato não abandonei o sindicato, mas saí do Instituto de Previdência, por ser um cargo executivo não compatível com o cargo de deputado. Tivemos atuação de apoio ao governo de João Goulart, no meu entender o governo mais democrático que existiu. Apoiamos o governo naquilo que era de interesse dos trabalhadores.
Brasileiros – E como estava o clima em torno dos militares?
C.B. – Não foi num só dia que os militares resolveram partir para o golpe. Aquilo foi anunciado. Inclusive ensaiado em Pernambuco quando o Justino Bastos (comandante do III Exército) cercou o Palácio das Princesas com o governador Arraes dentro, em plena democracia. Arraes protestou e telefonou para o Rio. Disseram que estavam apenas fazendo um ensaio de defesa do palácio. Mas não era, era um ensaio para poder prender todo mundo. E tudo isso era analisado por nós e víamos Carlos Lacerda (governador do Rio) prender dirigentes sindicais por dar entrevistas. Uma coisa que não era compatível com a democracia. Agrupamo-nos todos no Rio de Janeiro, onde era a capital política do Brasil, e ficamos todos nos organizando para o golpe que viria.
Brasileiros – E como se deu esta “espera de Godot?”
C.B. – Ficamos arregimentando forças ali, mas na verdade a classe média e o governo americano tinham feito a cabeça da maioria das pessoas e das mulheres que marchavam por Deus e pela liberdade e que depois marcharam pela liberdade contra aqueles que acreditavam em Deus, porque no início éramos nós o bicho-papão, os comunistas, os subversivos. Mas depois de dois ou três anos de ditadura, quando começou a rebeldia estudantil, foram os filhos dessas madames que fizeram a marcha, que foram presos. Então, elas, revoltadas, fizeram a marcha dos cem mil e tudo aquilo. Viram que tinham se equivocado.
Brasileiros – Havia uma ideia inicial de que a ditadura seria breve.
C.B. – Sim, mas a ditadura veio para ficar. Veio com um programa de extinguir tudo aquilo que perturbasse a sua decisão de servir aos interesses norte-americanos. Haja vista a desfaçatez de Lincoln Gordon, embaixador americano que circulava pelos ministérios exigindo coisas. Lembro-me de um grande brasileiro que aqui quero fazer referência: Valdir Pires que hoje está no PT, e era consultor-geral da República. Lincoln ligou para ele antes do golpe e disse que tinha uma lei circulando no Congresso que não era de interesse da América do Norte e gostaria de conversar sobre essas leis. Valdir disse não ter nenhum problema. Então ele perguntou: ‘O senhor quer audiência para quando?’ E Valdir respondeu: ‘Não, eu não estou pedindo audiência, o senhor é que me pede audiência e eu vou ver quando posso dar. Assuntos do Brasil eu discuto com brasileiro, mas posso conversar com o senhor’.
Brasileiros – Você entende que Juscelino foi conivente com essa política americana de industrialização e a imposição de automóveis e caminhões?
C.B. – Lamentavelmente, foi. Ele se portava como moderno, que fazia muita estrada, mas estrada de rodagem, não ferrovia. Estamos sofrendo até hoje, esse negócio do sucateamento das ferrovias. O Brasil ainda perde muito com isso.
Brasileiros – Antes do golpe quais eram os seus planos políticos?
C.B. – O objetivo era me candidatar para deputado federal. Havia uma Câmara Federal fabulosa: o Almino Affonso, em primeiro mandato e que depois foi ministro de Trabalho do governo João Goulart; o Paulo de Tarso, que mais tarde ocuparia a Pasta de Educação de Jango; o sargento Garcia, um militar que se rebelou contra a direita, se candidatando mesmo contrariando o regulamento do Exército; o José Carlos Guerra, integrante da chamada “bossa nova” da União Democrática Nacional (UDN), e Lamartine Távora, o mais jovem deputado federal. Ou seja, havia um time de deputados bons. Um momento efervescente muito lindo no Brasil com o cheiro do êxito da revolução cubana em 1958. Era importante sairmos vitoriosos com as reformas que Jango pregava, que não era nenhuma reforma revolucionária. Reforma bancária, reforma tributária, reforma agrária que era muito mais leve do que se fala agora. Jango, como disse Brizola, não caiu pelos seus pecados, caiu pelas virtudes.
Brasileiros – Conte de sua entrada na Embaixada do México.
C.B. – Antes me deixe contar uma outra história. O Batistinha (deputado federal Demisthoclides Batista) tentou entrar na Embaixada do Uruguai, que já não aceitava mais ninguém. Na hora em que ele entrou, o porteiro da embaixada puxou o revólver e deu um tiro e Batistinha deu outro tiro. Entrou aos tiros, estourou a porta, pediu visto e conseguiu o asilo político. Tenho por Demisthoclides Batista muita admiração. Talvez o mais brilhante dirigente do sindicato da Leopoldina e deputado federal muito bem votado. Na época do golpe foi um dos primeiros cassados. Lembro-me de dois episódios interessantes: na Câmara Federal se discutia a mortandade infantil no Brasil e a direita dizia que a porcentagem de 60% era exagerada. Batistinha pediu a palavra e afirmou: ‘Olha, eu tenho no meu bolso o atestado de óbito de seis irmãos, sobraram três: duas irmãs e eu. Portanto, esta estatística de 60% é a de dentro de minha casa’. Outra vez, também na Câmara Federal, estava na tribuna Brito Velho, que era um deputado que todo mundo conhecia, de renome, e o Batistinha pede um aparte. Brito Velho respondeu: ‘Permito, mas o senhor é deputado?’ ‘Sou’, disse Batistinha, ‘mas nessa casa eu sou a sombra, eu sou preto, o senhor é branco, o senhor é o sol, de forma que o que eu queria lhe dizer deputado Gustavo Capanema…’
‘Mas eu não sou Gustavo Capanema, eu sou Brito Velho’. Batistinha respondeu: ‘Mas o senhor também não se apresentou…’
Batistinha era um moleque no bom sentido, muito vivo, muito simpático, pena que eu não tenha uma foto dele por aqui. Sinto até uma emoção quando falo dele. (Em 5 de julho de 1993, no Rio de Janeiro, dois homens armados com metralhadoras entraram no quarto quando Batistinha ainda dormia e o mataram. Crime considerado político. Ninguém foi punido.)
Brasileiros – E quanto à sua entrada na embaixada?
C.B. – A entrada na embaixada foi cômica. Depois de fazer contato com Eduardo Portela, um pernambucano que até foi ministro do Figueiredo, mas que me ajudava em sigilo, por ter admiração por mim. Eduardo disse: ‘Vá para a Embaixada do México. Lá está o Heron de Alencar (intelectual, perseguido pela ditadura). No domingo, se fantasie, que eles, lá dentro, vão fazer um movimento para você ficar’. Tava difícil, rapaz. O Osvaldo Pacheco, por exemplo, da Central Geral dos Trabalhadores, era estivador, e quando ele foi entrar na embaixada a polícia estava lá e tentou barrá-lo. Dezesseis estivadores foram pra cima e fizeram com que ele entrasse. Mas eu, como não tinha estivador comigo, coloquei minha camisa listrada de branco e azul, óculos, cabelo oxigenado e um prato na mão e disse que era entrega ao Heron de Alencar, que era primo de Arraes que estava exilado. O que me impulsionou a buscar exílio na embaixada foi por estar cansado de ficar clandestino no Rio. Morava num apartamento de uma tia, em Copacabana, em cima de uma delegacia de polícia. Um dia minha tia me convidou para dar uma voltinha para eu sair da depressão em que me encontrava. Eu, todo fantasiado, fui de braço com ela, quando ouço: ‘Cláaaaudio que alegria. Você não tá preso’. E eu pensando que ninguém me reconheceria. Era o Miguelito, um amigo. Decidi: ‘Amanhã entro na embaixada’.
Não tinha jeito. Era susto atrás de susto. Numa galeria ali perto tinha um cinema. Para me distrair, de tarde, eu ia ao cinema e ficava lá sentadinho assistindo ao filme. Um dia, de repente, acendem-se as luzes do local e ecoam os gritos: ‘Tá preso, tá preso ladrão!’
Levanta-se Carlos Marighella, que diz: ‘Ladrão não, eu sou é comunista. Não sou ladrão’.
Um susto danado. Eu não queria deixar o Brasil. Mas não tinha como ficar. Decidi ir para a embaixada para proteger inclusive minha tia, porque a qualquer momento poderiam entrar no apartamento e seria muito doloroso para ela.
Brasileiros – E sua família, como ficou sabendo?
C.B – Eu estava casado e tinha os dois filhos. Minha tia os comunicou que naquela data eu tinha entrado na embaixada e não podia fazer ligação telefônica. A Irene, então minha esposa, foi ao Rio, porque soube que eu estava querendo deixar a embaixada e me apresentar em Recife. Seria uma loucura. Foi para me dar uma força, me animar a ir para o México. Eu entrei em depressão. Tinha medo de sair do Brasil e enfrentar o desconhecido. Eu nunca tinha saído do País. Com 29 anos naquela época pensava: ‘O que vou fazer lá fora?’ Mas sempre se encontra o que fazer.
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Brasileiros – O que vocês faziam para passar o tempo. Qual era o assunto entre o grupo?
C.B. – Tinha de tudo. Primeiro existia uma irritação tremenda. Um achando que o outro era o culpado, querendo saber de quem era a culpa, quem deveria ter feito isso ou aquilo. Na sala da embaixada encontravam-se umas 50 pessoas. Todo mundo dormia nos cantos, numas camas armadas que de manhã encostavam na parede. O tratamento social do embaixador era o melhor possível. Depois ele foi retirado da embaixada, mas ficou um encarregado que também dava comida boa, tratamento bom, mas conforto nenhum. Não tinha espaço para ter aquela gente toda. Dos que estavam lá, recordo, além do Heron de Alencar, do Gildo Guerra, do jornalista Felix Ataíde, do Luis Mario Camargo Xavier que foi secretário de Prestes, uns dirigentes sindicais de São Paulo. Enfim, um número grande. Deprimido, eu só dormia, desnutrido, estava que era um fio de magro. Tanto, que no voo da Varig a aeromoça me dava suco na boca de tão fraco. Perdi muitos quilos. Outras pessoas reagiram diferente. Notei que isso tinha a ver com a capacidade econômica, pessoas com maior giro para o exterior. Além disso, eu não tinha nenhum dinheiro. Ia chegar lá sem nada. Eu via os bancários com seus colegas ajudando, mas meus amigos ferroviários estavam todos presos.
Brasileiros – E que solução encontrou?
C.B – Tive que fazer remate dos móveis de minha casa para Irene comprar passagem e ir com os meninos para o México. Tive muita sorte, fiz amizade com um espanhol da resistência que vendia umas pinturas como se fossem européias, mas eram feitas lá mesmo. E assim fui sobrevivendo. Ao embarcar pensei que não voltava mais, pensei que ia ficar no México. Aquela coisa horrível que era o México para mim. Não tinha jogo de futebol, a distração de domingo eram as touradas.Quando houve um contato do dr. Jango me convidando para ir ao Uruguai, o grande problema era a falta de documentos. Então tínhamos que conseguir junto ao governo mexicano um tipo de documento apátrida, o que era muito difícil. Mas o dr. Jango antes de ser deposto tinha feito uma viagem ao México, onde ele teve o primeiro mal-estar cardíaco. O presidente estava sendo homenageado num teatro quando sofreu um desmaio. Foi diagnosticado problemas no coração agravados pela altitude mexicana.Como esta viagem estava muito recente, um telefonema dele ao governo mexicano nos facilitou os procedimentos da vinda.Ao chegar ao Uruguai me senti em casa, não só pelo panorama, mas também pela proximidade do mar e, principalmente, o apoio do dr. João Goulart.
Brasileiros – Você tinha plano do que iria fazer no Uruguai?
C.B. – Não. O dr. Jango precisava de um secretário que o acompanhasse, pois não gostava de andar só. Aqui tem um hotel com 90 habitações que estava para ser arrendado. Por idealização do dr. João Goulart, tornei-me um dos sócios. Trabalhei muito, muito, mas passamos 15 anos bem. Proporcionei boa educação aos meus filhos. Com o tempo o dr. Jango me incorporou em outros negócios na administração de suas fazendas. Em 1974, quando o dr. Jango foi para a Argentina, efetivou minha função de secretário dele. Ano em que conheci Marcela, esposa que me acompanha até hoje.
Brasileiros – Concomitante ao hotel, prestava serviços ao ex-presidente como secretário?
C.B. – Sim. Fiquei administrando o hotel, mas Jango falava comigo todos os dias. Acordava e eu ia buscá-lo, tomávamos chimarrão juntos. Foi aí que eu comecei a tomar chimarrão. Para mim era ótimo porque fui criando uma intimidade de pensamento. Saíamos para almoçar…
Brasileiros – Como era a convivência?
C.B. – Ele era um homem muito cauteloso, para pedir opinião ele dizia: ‘O que tu acha?’ Já na Argentina, ele passava a questão e dizia ‘estuda isso e depois conversamos’, sendo que sempre prevalecia a opinião dele. Eu o considero até hoje como o homem mais correto, seus pecados eram contra ele, o cigarro e a bebida. Era um companheiro, camarada que contribuía para o coletivo do sindicalismo. Havia vários sindicalistas exilados aqui. Teve uma passagem quando uma pessoa foi na casa do dr. Jango porque queria que ele assinasse uma nomeação com data atrasada como se Jango ainda fosse presidente. O malandro pensou: ‘O ex-presidente assina minha nomeação com data retroativa, vou à Justiça e ganho’. Jango tomou o papel e rasgou. Outra passagem. Um dia teve um encontro aqui no Uruguai. O Sigemundo Hoiser, deputado pelo Rio Grande do Sul, marcou um encontro lá em Paso de Los Toros. Um lugar escondido, pois era tempo de ditadura. Marcou para uma hora da manhã. Dr. João Goulart foi de cachecol, chapéu e poncho. Terminada a conversa, Jango se levanta e sai em direção da porta quando um velhinho, bebendo lá num cantinho, se dirige a ele: ‘Em breve voltaremos, presidente’. Ou seja: o disfarce não deu em nada.
Brasileiros – Jango falava em voltar para o País?
C.B. – A vontade de voltar para o Brasil era muito grande. Ele sentia a ingratidão de alguns políticos que desapareceram, só aparecia gente para fazer negócio ou pedir dinheiro. Ele tinha vontade de voltar para o Brasil, lembrava o nome das pessoas… A vida dele aqui era cuidar das fazendas e viver das recordações e contatos políticos, inclusive com militares, que vinham mais disfarçados. Aqueles que serviram com ele. A família de Jango era ele, a Maria Teresa, o seu filho João Vicente com 7 anos e a sua filha Denise um pouco mais nova.
Brasileiros – Quais eram as propriedades de Jango?
C.B. – Ele tinha duas fazendas no Uruguai, uma grande de seis mil hectares em Taquarimbó, a cem quilômetros do Brasil, e uma em Maldonado, com mil hectares. Na Argentina tinha uma fazenda em Mercedes na província de Corrientes. No Brasil ele tinha em São Borja.
Passagem: Um dia, em plena ditadura, chegou uma carta para ele em São Borja, que o administrador dele veio trazer. Era do Banco do Brasil oferecendo ao pecuarista João Goulart um crédito para melhoramento da fazenda a fundo perdido. Era um crédito especial que existia como prêmio a quem tinha produtividade alta, num valor de US$ 200 mil, como incentivo do governo, porque havia necessidade de carne para exportar. Agora, o estranho era oferecer dinheiro para um pecuarista que está banido do País por questões políticas.
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Brasileiros – E as denúncias de corrupção por parte dos militares contra o Jango?
C.B. – De todo o inquérito que houve em Brasília, a única coisa que disseram que provaram é que ele, para planificar o terreno de uma de suas chácaras, havia tomado emprestado um trator à Novacap (empresa estatal responsável pelas obras de construção de Brasília).
Brasileiros – Como Jango projetava voltar pro Brasil?
C.B. – Várias pessoas opinaram sobre isso. A ditadura ia se demorando muito e não podia se desmilinguir sem nenhum marco do ex-presidente que forçasse ela cair. Ainda que fosse arriscado para ele. Então, foi feita uma operação de forma cautelosa. Primeiro Amauri Silva, depois Valdir Pires, depois Almino Affonso, que chegou a ser preso durante horas. Agora era a vez do Jango chegar lá com a força toda do ex-presidente e iam ter que tratar bem, porque teria apoio internacional e forçaria a abertura, pois não seria justificável ele estar solto no Brasil e o resto exilado. Mas ele morreu, voltando ao País num caixão.
Brasileiros – Você teve umas idas e vindas ao Brasil.
C.B. – Em 1972, o Supremo Tribunal Militar me absolveu. Cheguei ao Rio de Janeiro, onde fui recebido pelo meu irmão, que era militar da Marinha, e um delegado da Polícia Federal, que disse: ‘O senhor fique tranquilo, vá pra casa tome um banho de mar e daqui a três dias venha depor’. Eu disse ‘não tenho estes nervos,meu amigo, pra tomar banho de mar e vir daqui a três dias. Eu quero depor amanhã’. Depois de depor segui para Recife, visitar o meu pessoal. Num almoço com dois amigos, ao chegar eles me avisaram, ‘estão ali no terraço dois cidadãos que têm os terrenos na Bahia que você quer comprar’. Mas eu não tinha interesse em terreno nenhum na Bahia. Que história era aquela? Eles se apresentam: ‘O senhor almoce tranquilo, nós somos da Polícia Federal e viemos aqui lhe buscar’. ‘Vamos agora, pois eu não tenho apetite para almoçar com esta ameaça de prisão’, eu falei. Um dos meus amigos era um deputado que se ofereceu para ir comigo. Na sede da Polícia Federal o delegado ao me interrogar insistia: ‘O senhor disse em um discurso em praça pública que assim como os médicos recomendam agitar o remédio antes de tomar, era recomendável agitar os problemas sociais pra se resolver?’ Eu nem sabia que tinha dito isso ou se foi o Francisco Julião. Dias de interrogatório se seguiram, até me deixarem sair. Telefonei para o dr. Jango e ele disse: ‘Rapaz, tu vai ficar aí sendo preso de hora em hora? Vem embora de uma vez’.
Brasileiros – E voltou?
C.B. – Voltei e fiquei por aqui, pensando: ‘agora só com anistia mesmo. O negócio do tribunal não vale nada’.
Depois desta volta do Brasil, em 1973, aconteceu o golpe aqui que durou até 1985. O golpe foi comandado por Juan Maria Bordaberry, que decretou o fechamento do Congresso e iniciou uma feroz perseguição à esquerda. Em razão disso, em 1974 fomos embora para a Argentina. E fiquei lá, onde, descuidadamente, peguei outra cana. Em 1976, cometi a estupidez ao estacionar, quando coloquei as duas rodas do carro sobre a calçada, a polícia me identificou e me prendeu. Mas saí em seguida. Permaneci na Argentina até 1978, com o tremendo desgosto pelo falecimento do dr. João Goulart. Depois voltei, com a Marcela, para o Uruguai. Irene, Carlos, Eduardo e Vilma estavam no Uruguai quando voltei da Argentina. Já estava separado de fato de Irene.
Brasileiros – Mas parte da família voltou para o Brasil depois?
C.B. – Sim, Irene quis voltar, mas resolvemos que os meninos só voltariam formados. Em 1983, ela foi para o Brasil com Eduardo, meu filho mais velho, então com 25 anos, e Vilminha, com 17. Como Carlos, o do meio, não estava formado ficou em Montevidéu. Então Eduardo acompanhou a mãe até o Rio de Janeiro e ficou por lá. Ela não quis ficar e seguiu para Pernambuco. Eduardo chegou ao Rio formado em medicina e revalidou o título. Em 1990, eu e Marcela também fomos para o Rio de Janeiro, onde ficamos até 1996. Depois seguimos para Recife. Mas meu filho Carlos se divorciou e, como estava sozinho, voltei com Marcela para o Uruguai. Somos uma família muito ligada.
Brasileiros – Você sentiu algum peso na consciência por ter levado a família para o exílio?
C.B. – Sim, senti muito. Mas estou aliviado porque tudo deu certo para mim e para a família. Aqui os exilados eram obrigados a se apresentar na polícia uma vez na semana. Íamos todos. Uma coisa muito humilhante. Mas, agora, estamos todos felizes.
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