Seria trágico, se não fosse cômico

Fui apresentado ao estranho poder da voz de Florence Foster Jenkins na década de 1970 por Naum Alves de Souza, um criador antenado, renomado autor e diretor de teatro. Lembro-me claramente como fui atingido por aqueles grunhidos extraterrestres como se fosse hoje. Estranhávamos àquela época como alguém com aquela voz e com aquele visual poderia ter ficado tanto tempo desconhecido dos verdadeiros amantes da arte como nós. Passávamos horas ouvindo aquele long-play falando sobre a Florence e tentando entender o que a levou a tomar atitudes tão contundentes e radicais em sua vida e, também, o que levaria um ser humano tão desprovido de talento vocal a perseguir uma carreira lírica com tanto afinco. Ríamos muito, de nos contorcer, e ao mesmo tempo nos enternecia saborear as poucas imagens às quais podíamos ter acesso daquela figura quase uma precursora das drag queens. Fazíamos cópias piratas de suas músicas em fitas cassete e distribuíamos para os amigos mais íntimos. Estava criado, antes mesmo do evento da internet, o twitter da Florence Foster Jenkins. Éramos seus fiéis seguidores, só falávamos dela, só pensávamos nela.

O tempo passou e com a chegada da rede global de comunicação aprendemos que a Florence não é muito diferente dos milhares de usuários da web que hoje se expõem sem pudores em pequenos vídeos caseiros. Basta uma “googada” e qualquer um pode apreciar os mistérios e as esquisitices da raça humana.
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A ideia de se montar um musical sobre a vida dessa admirável criatura é no mínimo uma homenagem àqueles que têm um sonho e o perseguem até o fim. Florence had a dream (tinha um sonho) e o realizou. Sem pudores, como Martin Luther King, Barack Obama e Susan Boyle.

Dando uma pesquisada na internet encontrei várias montagens, mundo afora, da vida de Florence e fiquei feliz em saber que finalmente depois de mais de 50 anos de sua morte, e quase 130 de seu nascimento, ela finalmente teve seu talento reconhecido.

O roteiro de Peter Quilter, escolhido para a montagem de Gloriosa, em cartaz no Teatro Procópio Ferreira, em São Paulo, dá apenas uma pequena ideia do que deve ter sido essa grande figura do universo lírico americano do início do século passado e mostra que Florence Foster Jenkins era a “piada” mais popular de Nova York nos anos 1940. E por conta disso, era amada pela sua plateia. Dizem que os ingressos para os recitais anuais que protagonizava no Hotel Ritz eram disputados a tapa. Com medo de atrair uma plateia hostil ela entrevistava cada um dos compradores dos ingressos. Para seu público, formado em sua maioria por mulheres que pertenciam às instituições de caridade que ela presidia, além de grandes nomes como Cole Porter, Irving Berlin e Noël Coward, oferecia um repertório caprichado (Mozart, Verdi, Strauss) com uma peculiaridade: conseguia realizar as piores interpretações que estes compositores já tiveram em toda a história. Seria trágico, se não fosse cômico.

A vida de Florence chega aos palcos brasileiros pelas mãos dos diretores Charles Möeller e Cláudio Botelho, com produção de Sandro Chaim, e na interpretação da talentosa artista multitarefas Marília Pêra que transita com tranquilidade entre o drama e a comédia com a mesma qualidade de interpretação. O elenco conta ainda com as competentes interpretações de Eduardo Galvão, como o fiel pianista Cosme McMoon, e de Guida Viana em variados papéis.

É difícil dizer o que Marília Pêra faz melhor, mas vendo sua Jenkins ouso afirmar que é na comédia deslavada, ou ainda nos exageros técnicos, que ela se sente mais em casa. Seu saltitar, sua cara-de-pau em dizer as bobagens contidas no texto e seu despudor são no mínimo o crème de la crème do teatro popular contemporâneo.

“A composição desta personagem foi extremamente difícil para mim, porque passei a minha vida inteira aprendendo a cantar e me aprimorando. De repente, tenho que fazer justamente o contrário, desafinar. Foi uma verdadeira desconstrução da minha voz”, comenta Marília. Ela que passou toda a sua vida cuidando da voz e de seus gorjeios é obrigada a desafinar como uma galinha estrangulada e cumpre muito bem a tarefa. Suas interpretações de “Rainha da Noite”, de Mozart, e de “A Risada de Adele”, de Strauss, são um verdadeiro delírio. A plateia ao vê-la e ouvi-la aplaude seus acertados erros propositais.

Florence, esteja onde estiver, deve estar se sentindo presenteada.


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