Com voz mansa e tranquila ele atende o telefone. Marcamos a entrevista para a manhã de 18 de maio, uma segunda-feira. Ele me recebe em seu apartamento na Alameda Itu, Jardim Paulista, em São Paulo. Apesar do horário, as ruas já borbulham e a cidade parece não combinar com o estado zen do ator João Signorelli, mineiro criado em São Paulo, que vem há anos interpretando o líder espiritual indiano Mahatma Gandhi. Em junho de 2003, ele foi convidado pelo Fórum de Recursos Humanos a interpretar Gandhi – um Líder Servidor, monólogo sobre a vida do indiano. Desde então passou a confundir sua vida com a peça, que no mês de junho completou seis anos em cartaz.
O espetáculo passou por algumas adaptações em seu texto original, escrito pelo jornalista e também diretor de teatro Miguel Filiage. Em 2005, quem entrou em cena para apoiar e dirigir João nessa batalha foi um ex-aluno seu, o jovem Paulo Moretti. Uma das principais mudanças foi a inclusão de canções brasileiras na trilha sonora. Nesses seis anos de estrada, a montagem correu pelo circuito alternativo de São Paulo, além de ser apresentada em projetos e programas culturais em todo o Brasil. “Esta é uma peça muito adaptável, um texto aberto, que pode ser transformada conforme o público”, conta o ator, que antes de interpretar Gandhi pouco conhecia de sua história e da cultura oriental. “Alguns atores têm a sorte de um dia encontrarem o seu monólogo, aquele que o acompanhará para sempre, e eu felizmente pude encontrar o meu”, afirma Signorelli.
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Essa aproximação com a figura de Mahatma Gandhi não se deu apenas no plano da encenação; foi além, algumas coisas em sua vida mudaram radicalmente. A começar pela aparência: um pouco antes da sua estreia, em 2003, contrariado, raspou o cabelo, mas logo que se olhou no espelho reconheceu as semelhanças físicas entre ele e Gandhi, talvez vindas de seus próprios antepassados – a mãe com forte descendência moura, do sul da Itália, e o pai, manauara, com seus traços indígenas peculiares. João diz ter construído um outro jeito de enxergar o mundo, o discurso da não-violência como forma de luta, o amor e as palavras de força de Gandhi passaram a fazer parte de sua mente e rotina.
Em sua casa, Gandhi está presente em todos os cantos: são fotos, livros, bonecos e objetos espalhados pela sala. “Quando a personagem escolhe o ator, a conexão é impressionante, muito mais forte”, acredita Signorelli, que nasceu em 1956 em Cambuquira, Minas Gerais, mas migrou para São Paulo aos sete anos com o pai, advogado, e a mãe, comerciante. Em seus 31 anos de carreira, até 2003, interpretou dezenas de papéis na televisão. Levado pelo ator Grande Otelo, teve sua primeira participação na novela Supermanoela, em 1974. Depois do pontapé inicial, seguiu anualmente com papéis de peso. Participou de Top Model, Tieta, da série Você Decide, da minissérie Aquarela do Brasil, entre outras. Talvez por conta de sua fisionomia de traços fortes, maxilar largo e sobrancelhas grossas, teve carreira marcada por vários papéis de vilões. A fórmula vingou com o personagem Celso de Bebê a Bordo, em 1988.
Paralelamente a sua vida de ator, João também cursou jornalismo, trabalhou em rádios, foi locutor da madrugada em São Paulo. Viveu dez anos no Rio de Janeiro, período em que não saiu das telas da Globo. Mas gosta mesmo é da forte pulsação cultural de São Paulo. Aos 53 anos, pela primeira vez ele tem sua carreira nas mãos. “Antes de Gandhi eu levava uma vida normal de ator, como qualquer outro, mas esta peça me fez perceber que se um ator quer sua independência, tanto financeira quanto artística, tem de se autoproduzir.”
Desde que se firmou com o monólogo, Signorelli pode ter a liberdade profissional de não aceitar certos trabalhos e atingiu uma estabilidade financeira. Esporadicamente faz pontas em novelas e algumas minisséries de televisão. O último papel de vilão que foi chamado a fazer foi para a minissérie Amazônia, da Rede Globo. Ele negou-se a interpretar o assassino de Chico Mendes, alegando que seria completamente incoerente com o discurso e a história de Gandhi. “Mantendo minha coerência, consigo atingir minha consciência”, relata Signorelli, que desde o começo optou pelas escolhas que mantiveram o monólogo vivo e presente.
Atrás das grades
Em outubro de 2006, Gandhi – um Líder Servidor parte para um novo universo e se atira na busca de tocar no imaginário dos que estão do lado de lá do muro. A montagem passa a ser mensalmente apresentada nas unidades da Fundação Casa de São Paulo, além de outros espaços.
Em parceria com a ONG Fundação Palas Athena e com o Departamento de Esportes da Fundação Casa, João Signorelli e Paulo Moretti apresentam para os menores internos a possibilidade da mudança, da revolução social a partir da não-violência.
O trabalho de inclusão, que também envolve prática da yoga e do futebol, conta com a participação da gestora do Projeto de Yoga da Casa, Eliana Batista Schmidt, e o ex-lateral direito do Corinthians, Zé Maria, coordenador de futebol. Os resultados aparecem aos poucos: um dos garotos, hoje em regime semiaberto, que foi apresentado para a yoga e às idéias de Gandhi lá, atualmente faz uma especialização em yoga na FMU.
A primeira reação dos internos ao assistirem à montagem foi de espanto, mas fez Signorelli acreditar que estava no lugar certo com a peça certa. “Os meninos cochichavam: ética, o que é ética? O que é conduta única? Ao fim, perguntei o que eles acharam e um me disse: ‘Isso tudo faz sentido porque precisamos ver o outro lado. Aqui dentro só se fala de violência, só pensamos em violência’”, lembra o ator, emocionado.
Depois de algumas apresentações, a equipe percebeu que era preciso oferecer um pouco da história de Gandhi aos jovens, antes de eles assistirem à peça. Por isso, agora os jovens assistem a um filme sobre a vida do mestre indiano. A Brasileiros acompanhou uma das apresentações do monólogo na Unidade Feminina da Mooca. No refeitório, meninas entre 12 e 21 anos, todas uniformizadas com roupa bege e cabelos presos em rabos-de-cavalo muito bem cuidados. “Este trabalho é muito importante. Mostrar a eles que um dia um homem conseguiu libertar um país inteiro sem um tiro é algo muito forte”, diz Signorelli. Após a peça, ele deixa uma cópia da carta que Gandhi escreveu à sua mulher e a ONG organiza mensagens de paz para os internos sortearem e guardarem. É uma tentativa de diminuir as fronteiras que existem entre estes dois mundos, dentro e fora dos muros -, e como o próprio Gandhi foi preso diversas vezes, há uma importante aproximação entre eles. As reações após a apresentação variam: “Mas o senhor acha que uma pessoa seria capaz de mudar o mundo sozinha?” Ou a menina que, emocionada, afirma que pela primeira vez sentiu uma mão amiga em seu ombro. Houve ainda aquela mais cética, que diz ter gostado da peça, mas afirmou que a mudança não pode ficar somente na teoria, tem de ser colocada em prática. Tudo é válido.
Apesar da delicadeza do ambiente e da relação com o espectador, o ator diz nunca ter se sentido intimidado ou correndo riscos. Conta que nestes seis anos de peça muita coisa mudou, mas não a essência do projeto teatral que permanece muito flexível. Os olhos de João Signorelli brilham ao falar de Gandhi e ele garante, “este é o tipo de coisa que sei que irei fazer para o resto de minha vida”.
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