Voto certo é voto apurado. Por mais que as análises e as pesquisas eleitorais se aprimorem, eleição só se define depois de contabilizadas as urnas. No Brasil, o mais rumoroso episódio confirmando essa máxima ocorreu durante disputa pela Prefeitura de São Paulo, em novembro de 1985. Convicto de que estava eleito, o então senador do PMDB Fernando Henrique Cardoso deixou-se fotografar sentado na cadeira do prefeito. A imagem acabou publicada na manhã do dia das eleições, que culminaram com a vitória do ex-presidente Jânio Quadros, pela coligação PTB-PFL. Assim que assumiu, Jânio apareceu no gabinete com uma lata de Baygon e desinfetou a cadeira diante das câmeras. A cena entrou para a história recente do País como símbolo dos deslizes dos políticos, das variações de humor do eleitorado e da sempre possível mudança nos rumos de uma campanha eleitoral.
Quase três décadas depois, o imponderável surgiu na sequência de uma tragédia – a morte do ex-governador e presidenciável Eduardo Campos (PSB) e de seis de seus assessores em um acidente aéreo. Alçada à cabeça da chapa, a ex-senadora Marina Silva passou a se equilibrar entre as próprias convicções e o PSB, partido que abraçou por motivos circunstanciais. O desempenho de Marina nas urnas é uma das duas incógnitas destas eleições. A outra, convergente, é a força eleitoral dos evangélicos, que representam 25% dos brasileiros. Evangélica desde 1997, Marina aparece, por enquanto, como a principal beneficiária do voto de seus irmãos de fé. Isso ficou evidenciado na primeira pesquisa que apontou sua vitória no segundo turno contra a presidenta Dilma Rousseff. De acordo com o levantamento do Ibope, 53% dos evangélicos votariam em Marina, enquanto 27% escolheriam Dilma Rousseff.
Trata-se, porém, de um segmento muito suscetível, que não aceita sequer discutir a possibilidade de casamento gay, aborto, descriminalização do uso de drogas e pesquisas com células-tronco embrionárias. Marina partilha posições similares. Só que seu programa de governo rendeu manchetes por dizer o contrário. “Plano defende causa gay e aborto no SUS”, estampou o jornal O Estado de S.Paulo, no sábado 30 de agosto. A reação evangélica foi imediata, capitaneada pelo líder da igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, pastor Silas Malafaia, que classificou o programa de Marina como “uma vergonha”. Pelo Twitter, Malafaia deu um ultimato: “Aguardo até segunda uma posição de Marina. Se isso não acontecer, na terça será a mais dura fala que já dei até hj sobre um presidenciável”.
Não foi preciso esperar três dias. Horas depois do ultimato do pastor, estava revisado o plano de governo de Marina, que é missionária da Assembleia de Deus do Plano Piloto. “Marina divulga ‘errata’ e reduz apoio à causa gay”, anunciou O Estado de S.Paulo no dia seguinte. A explicação para a mudança é que havia ocorrido uma “falha processual na editoração do texto”. Ativista dos direitos dos homossexuais, o deputado Jean Willys (PSOL-RJ) não se conformou com a desculpa. Lembrou que “bastaram quatro tuítes do pastor Malafaia” para a candidata mudar de posição: “Marina, você não merece a confiança do povo brasileiro! Você mentiu a todos nós e brincou com a esperança de milhões de pessoas”. O pastor Malafaia, por sua vez, tripudiou antes de declarar voto em Marina em um provável segundo turno: “O ativismo gay está irado com Marina, começo a ficar satisfeito kkkk valeu a pressão de todos, não estamos aqui para engolir agenda gay”.
Antes do recuo de Marina, os evangélicos já estavam desfrutando de uma visibilidade sem precedentes em uma disputa presidencial. Ganhava evidência a candidatura do Pastor Everaldo, da Assembleia de Deus e do Partido Social Cristão (PSC). O líder religioso, no entanto, também perde para Marina entre os fiéis. Pela pesquisa Ibope, quando o candidato era Eduardo Campos, o pastor tinha 8% dos votos evangélicos. Com Marina, a porcentagem caiu para 3%. Apesar disso, no primeiro debate entre os presidenciáveis, não houve nenhuma referência à opção religiosa de Marina. Já o Pastor Everaldo foi questionado pela candidata Luciana Genro (PSOL) sobre o fato de misturar política com religião e sobre a suspensão do programa federal “Escola sem Homofobia”, por pressão dos evangélicos. Ele se esquivou de responder se sentia responsabilidade por mortes decorrentes da homofobia, mas demonstrou convicção ao defender a incorporação de um título religioso ao próprio nome. E não titubeou ao se dirigir aos telespectadores como “meus irmãos”, “minhas irmãs”, e se posicionar contra o casamento gay, o aborto e a descriminalização do uso de drogas.
Até o episódio da “falha processual” do programa de governo, Marina conseguiu centrar seu discurso no que classifica como uma “nova forma de fazer política”. Nas eleições presidenciais de 2010, ela amealhou quase 20 milhões de votos no primeiro turno. Depois, ela tentou, mas não conseguiu registrar a agremiação política que idealizou, a Rede. Como candidata do PSB, defende alguns valores alheios ao partido, mas sintonizados com uma parcela significativa da população. Dos 203 milhões de habitantes do País, 51,2 milhões são evangélicos, de acordo com Luis André Bruneto, diretor de pesquisas do Sepal (Serviço aos Pastores e Líderes). A projeção tem como base o Censo 2010, do IBGE, que somou 42,3 milhões de evangélicos. O mesmo levantamento registrou que 123 milhões de brasileiros são católicos. Embora os católicos sejam o grupo majoritário do Brasil, eles vêm diminuindo desde a primeira pesquisa feita pelo IBGE, em 1872. Sim, a Diretoria Geral de Estatística, embrião do IBGE, já pesquisava a população em 1872. Na ocasião, os católicos correspondiam a 99,7% da população. Se a proporção tivesse se mantido, eles seriam hoje 202,4 milhões de pessoas.
Ao contrário dos católicos, os evangélicos são um grupo em ascensão. Por isso, no segundo debate entre os presidenciáveis, no SBT, ao ser questionada sobre o aborto, Marina disse que o tema envolvia “questões éticas, morais e espirituais” e deveria ser objeto de um plebiscito. A presença dos evangélicos na sociedade se reflete no Congresso, onde eles têm 73 parlamentares (70 deputados federais e três senadores), reunidos na Frente Parlamentar Evangélica. O crescimento da bancada é notável: em 1985, o ano em que Fernando Henrique sentou-se na cadeira do prefeito, a representação evangélica na Casa era de apenas dois deputados. (Por falar em cadeira, leia sobre os debates entre os presidenciáveis à página 48.) Hoje, só o partido do Pastor Everaldo tem nove deputados federais, entre eles, seu filho Filipe Pereira. Como os parlamentares, Pastor Everaldo defende “a vida desde a concepção” e a família “como está na Constituição”.
Com 1 minuto e 10 segundos no horário eleitoral, ele perde terreno para Marina entre os evangélicos, mas começa a ficar tão conhecido quanto o mais famoso de seus correligionários, o deputado Marco Feliciano (PSC-SP), aquele que, no ano passado, produzia declarações consideradas racistas e homofóbicas ao mesmo tempo que presidia a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. No período, Feliciano provocou tanta controvérsia que, para contestá-lo, o movimento “Feliciano não me representa” se espalhou pelas redes sociais. No pior momento da crise, o deputado, que é pastor da igreja Catedral do Avivamento, recebeu o suporte de Marina Silva.
“Feliciano está sendo mais hostilizado por ser evangélico que por suas declarações equivocadas”, afirmou Marina, durante palestra na Universidade Católica de Pernambuco, em Recife. Na mesma época, o deputado de ultradireita Jair Bolsonaro (PP/RJ) também perfilou-se junto ao parlamentar: “Como capitão do Exército, sou um soldado de Feliciano”. Nesta campanha, o “soldado de Feliciano” participa com frequência de eventos do PSC. É que seu filho caçula, o delegado federal Eduardo Bolsonaro, da Igreja Batista, concorre a uma vaga de deputado federal pelo PSC de São Paulo. No partido, o candidato mais efusivo é o cirurgião plástico Roberto Miguel Rey Júnior, cujo nome político é o mesmo que o tornou conhecido nos reality shows, primeiro nos Estados Unidos, depois no Brasil: Doutor Rey. A decisão de trocar Beverly Hills por São Paulo, garante Doutor Rey, se deve ao fato de estar milionário e querer ajudar o País: “Quero baixar os tributos loucamente, como Reagan (o presidente americano Ronald Reagan) fez. Algum dia quero dizer para o gringo: ‘Venha para o Brasil que não tem crime’. Roubou bicicleta? Dez anos. Matou menina? 20 anos. Peidou na praça? Cadeia para sempre”.
Nos bastidores do PSC, Doutor Rey é celebrado como um grande “puxador de votos”, embora seja neófito em política. O entusiasmo com o cirurgião plástico é tamanho que nem o deputado Feliciano resistiu à tietagem. “Uau, temos uma estrela hollywoodiana! Isso dá um upgrade para o partido”, disse Feliciano, ao final de uma convenção do PSC. Doutor Rey, por sua vez, faz campanha rodeado por belas garotas, todas de salto agulha e calças coladinhas ao corpo. Com esses trajes, nenhuma delas conseguiria entrar no maior símbolo da força evangélica no Brasil: o Templo de Salomão, no bairro do Brás, em São Paulo, que exige sobriedade dos fiéis, no comportamento e nas roupas. O guia preparado para as potenciais frequentadoras do templo é categórico: “Esqueça a legging (faça disso um mantra para sua vida). Jeans são megaconfortáveis, mas, para essa ocasião, não devem sair do armário. Aliás, por mais que as calças prezem pelo conforto que tanto queremos, confira bem como ficam em frente ao espelho. Observe se algo está marcando e, se estiver, não saia assim de casa”.
Inspirado no primeiro templo construído pelo rei Salomão em Jerusalém, a obra erguida pela Igreja Universal do Reino de Deus ao custo de R$ 680 milhões só conhece superlativos. Em um terreno de cerca de 35 mil m2, soma quase 100 mil m2 de área construída, que consumiram duas toneladas de aço e 40 mil m2 de pedras trazidas de Israel. Com capacidade para abrigar dez mil pessoas sentadas, tem 55 m de altura, 104 m de largura e 126 m de comprimento. Em vários aspectos, o Templo de Salomão supera as dimensões da Basílica de Aparecida, santuário de peregrinação católica no interior paulista, que, no mundo, só é menor que a Basílica de São Pedro, no Vaticano. Em forma de uma Cruz Grega, a Basílica de Aparecida possui área total de 23 mil m2, sendo 18 mil m2 cobertos, com cúpula de 70 m de altura e 78 m de diâmetro. Na prática, católicos e evangélicos construíram templos que se distinguem na arquitetura brasileira, mas os últimos vêm conquistando dianteira inédita na política institucional.
No Congresso, a bancada evangélica atua de forma organizada. Todas as quartas-feiras, às 8h30, o capelão João Campos, que é deputado pelo PSDB de Goiás e pastor da Assembleia de Deus, conduz cerimônia durante a qual os deputados e senadores oram e acompanham os cânticos de louvor. No final da celebração, recebem também avisos e orientações sobre a pauta parlamentar. Na cartilha da Frente Parlamentar Evangélica, as propostas são muito claras. Entre elas estão “elaborar projetos de lei salvaguardando a moral e os bons costumes” e “promover ações visando a agregação familiar”. No que diz respeito à filiação partidária, a bancada é eclética. Agrega parlamentares de 18 partidos – PMDB, PSDB, PR, PRB, PSC, PP, SD, PTC, DEM, PT, PTdoB, PSB, PDT, PROS, PTB, PV, PRTB e PMN.
A maioria dos integrantes da bancada evangélica é conhecida apenas em suas regiões. Alguns, no entanto, têm projeção nacional. É o caso do deputado Anthony Garotinho (PR-RJ), da Igreja Presbiteriana, a mesma do senador Magno Malta (PR-ES) e da deputada Benedita da Silva (PT-RJ). Também pertencem à frente o senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), da Igreja Universal; o ex-pugilista Acelino Popó (PRB-BA) e o já citado Marco Feliciano (PSC-SP). Unidos pela fé, Garotinho e Crivella estão em campos opostos na disputa pelo governo do Rio de Janeiro. Na eleição para presidente, os evangélicos também se dividem. Por isso, a força eleitoral do segmento ainda é indefinida, na opinião do cientista político Ricardo Caldas, da Universidade de Brasília. “É grande pela mudança de perfil do eleitorado, com o aumento dos evangélicos. Por outro lado, é pequena, porque eles não estão unidos”, afirma Caldas. “Não existe um líder para conduzir todos esses votos. São muitas igrejas, descentralizadas. O fiel segue o seu pastor, não a igreja. O único que consegue conduzir votos é o bispo Edir Macedo, em relação à Igreja Universal, que está fechada com Dilma.”
Com quase dois milhões de seguidores, a Universal é a igreja evangélica de maior visibilidade no Brasil, até por seu poder na mídia, a começar pela Rede Record, propriedade do bispo Edir Macedo. Não por acaso, a concorrida inauguração do Templo de Salomão, contou com a presença da presidenta Dilma Rousseff, do governador Geraldo Alckmin e do prefeito Fernando Haddad. Na cerimônia, o líder da igreja usava elementos das cerimônias religiosas judaicas, como quipá, xale de orações e barba de profeta. “Ele está fazendo uma leitura bem literal da Bíblia, no sentido de que os judeus são o povo prometido”, lembra o cientista político Ricardo Caldas. A outra singularidade de Edir Macedo é o centralismo, como ressalta o cientista político: “Na Universal, o bispo tem o controle. Ele contrata, ele demite. Se ele disser que o candidato da Universal é o XYZ, todo mundo segue. Nas demais igrejas, a direção nacional não consegue influenciar tanto”.
O processo de definição do apoio acontece nas próprias igrejas ou em organismos como a Convenção Geral das Assembleias de Deus, muitas vezes diante dos próprios candidatos. Nesta campanha, há entre os evangélicos uma insatisfação generalizada quanto a promessas feitas em eleições passadas e não cumpridas nos termos que gostariam. “Na época da eleição, a gente é a noiva cortejada. Depois, se torna a amante indesejada”, compara o bispo Robson Rodovalho, fundador e líder da igreja Sara Nossa Terra, que contabiliza 1,1 milhão de seguidores. Filiado ao PP, o bispo já foi deputado federal e apoiou Dilma em 2010. Agora, afirma que, além de discutir os planos de governo, ele esperou o posicionamento dos presidenciáveis sobre temas caros à igreja, como família e vida: “Para nós, é importante saber como vai ser a tônica do próximo governo”.
O fato de existir a candidatura do Pastor Everaldo não altera de forma significativa o cenário geral. “Ele foi lançado por seu partido, não por um consenso entre líderes religiosos. Como ele é pastor, é natural que tenha maior convergência, mas o voto não é automático”, diz Rodovalho. Com relação à Marina, a situação era parecida até ela voltar atrás no trecho do programa de governo que tratava dos direitos dos homossexuais. “Foi uma sinalização muito boa, muito forte. Nós vamos somar com Marina”, avisou o bispo. Outros líderes evangélicos ainda estão por anunciar seus candidatos. Na prática, em pelo menos um aspecto, os evangélicos entram nas eleições de 2014 em condições similares às da maioria da população: não há um candidato único que os representem. Por outro lado, eles tendem a acompanhar a indicação feita pelo guia religioso, seja ele o pastor com uma centena de seguidores ou o líder de uma igreja com mais de um milhão de fiéis. É o imponderável rondando as urnas.
Deixe um comentário