O clínico-geral liberiano Melvin Korkor soube pela televisão que apenas ele e outras 16 pessoas tinham sobrevivido ao vírus ebola em toda a Libéria desde o início deste ano. A notícia chegou uma semana depois de sua alta, quando já se recuperava da doença em casa. Surpreso por ser o único médico da lista, Korkor acredita que contraiu o vírus de uma paciente que mentiu sobre seu itinerário, durante uma consulta no Phebe Hospital, em Bong, região central do país, onde trabalhava.
“Ela disse que tinha saído de uma região da Libéria que registrou pouquíssimos registros de ebola. Como apresentava vômito, mas não tinha febre, sintoma típico de doentes do vírus, achei que se tratava de uma gripe simples, e a atendi sem grandes cuidados. Alguns dias depois, descobri que ela havia mentido”, afirmou Korkor, em entrevista, por e-mail, à Brasileiros. Na verdade, a paciente tinha deixado a cidade de Lofa, epicentro da doença, na fronteira entre Libéria, Serra Leoa e Guiné-Conacri. “Provavelmente, ela já estava infectada naquele momento.”
Assim que apresentou os primeiros sintomas, em meados de julho, Korkor foi internado em um hospital público de Lofa. Ficou 15 dias em isolamento total até receber o diagnóstico de cura no início de agosto último. “Todos os dias via pessoas se conformando com a morte. Eu renasci.” Durante o período de internação, ele não teve contato físico direto com enfermeiras e especialistas, que precisam usar roupas especiais para cuidar dos pacientes: macacão, capuz, óculos e luvas que, posteriormente, são queimados, seguindo as normas exigidas pela OMS.
O vírus ebola tem preocupado os órgãos internacionais de Medicina, a ONU e os governos do mundo todo por ser um dos vírus mais fatais da história da humanidade, com taxas de 70% de mortalidade. Até agora, não há casos confirmados no Brasil.
Histórias como a de Korkor, porém, são exceções nos quatro países da chamada África Ocidental, no litoral Atlântico do continente, afetados pelo surto do ebola: Serra Leoa, Libéria, Guiné-Conacri e Nigéria (em proporção menor), além da República Dominicana do Congo (RDC), já na África Central. Em cinco meses, a epidemia de ebola, a pior desde o surgimento da doença, em 1976, causou 2.107 mortes, de acordo com o relatório da OMS do dia 5 de setembro: 1.089 na Libéria, 517 na Guiné, 491 em Serra Leoa, oito na Nigéria e dois na RDC, que foram confirmados pelo Ministério da Saúde do país, mas não pela OMS. Há ainda 3.984 casos de infecção pelo vírus no continente. Segundo a revista científica The New England Journal of Medicine, a epidemia começou com uma criança de 2 anos, na Guiné, que infectou a mãe, a irmã e a avó. A conclusão foi divulgada após pesquisadores britânicos rastrearem os casos da doença na África até chegarem à morte da criança, em dezembro do ano passado.
Em agosto, a OMS declarou “estado de emergência sanitária mundial” e chegou a afirmar que suas estatísticas podem estar subestimadas devido ao difícil acesso de especialistas em áreas remotas do continente africano. Para a ONG Médicos sem Fronteiras, a situação no continente só será controlada em fevereiro, quando for possível manter os casos isolados. Os governos africanos, no entanto, já decretaram: a doença está fora de controle. “Precisamos aumentar as ações do governo para tentar controlar o vírus”, disse a presidente da Libéria, Ellen Johnson, em recente declaração na televisão nacional.
Na África, o vírus ebola se tornou epicentro de discussões sociais e culturais, como os hábitos de alimentação, a convivência com animais, o contato com cadáveres e a crença de que a doença é uma invenção. “Há quem diga que o ebola é um demônio ou um deus inimigo de suas crenças. Elas não acreditam que o vírus existe. Vi até motins em tendas de atendimento médico e em casas que abrigavam doentes em que manifestantes afirmam que o ebola é uma mentira”, afirma a missionária brasileira Ana Lúcia Pereira, da Igreja Batista, que faz trabalho doutrinário na Guiné-Conacri.
Outra questão cultural a ser enfrentada é que em algumas tribos costuma-se cultuar o corpo dos mortos por dias e, não raro, os cadáveres são lavados antes de enterrados, prática que, pelo contato físico, favorece a contaminação.
Mesmo depois do primeiro caso da doença, no Rio Ebola, no antigo Zaire, a Medicina tem poucas respostas para a existência da epidemia. Ainda não se sabe exatamente qual é a sua origem nem quais são as fórmulas eficazes de tratamento ou os procedimentos para conter a doença e prevenir regiões contra novos surtos. Por enquanto, a ciência tem um conhecimento básico sobre as cinco espécies do vírus (quatro africanas e uma asiática). Os especialistas também sabem que os primeiros seres infectados foram os morcegos, que passaram os vírus para os macacos e, depois, para os humanos por meio de contato físico ou ingestão da carne desses animais (hábito comum em algumas tribos africanas). Sabe-se ainda que a transmissão do vírus se dá por meio de qualquer contato com secreções de doentes (sangramentos, catarros, lágrimas, suor) e que uma pessoa infectada pelo ebola – se não tiver a sorte do doutor Korkor – morre, em média, três semanas depois do primeiro contato com a doenças.
“O ebola assusta porque não temos todas as informações sobre ele e porque está se disseminando rapidamente”, afirma Ralcyon Teixeira, supervisor do pronto-socorro do Instituto de Infectologia Emílio Ribas de São Paulo. Ele é um dos responsáveis pelo treinamento e organização dos centros de prevenção e tratamento de ebola que a Secretaria de Saúde do Estado instalou no mês passado. “Achávamos que era pouco provável encontrar casos no Brasil, mas agora passamos para um tratamento mais real da questão.” Em São Paulo, a secretaria já enviou orientações para os hospitais de referência e está financiando treinamento específico para tratar doentes de ebola. No Rio Grande do Sul, o Hospital Conceição, em Porto Alegre, criou uma ala apenas para tratamento de infectados. Até agora, três casos suspeitos aconteceram no País e, recentemente, o Ministério da Saúde negou um boato que estava sendo compartilhado nas redes sociais de que um africano contaminado havia morrido no Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão, em São Luís. De acordo com a OMS e com o Ministério da Saúde, o risco da doença chegar ao Brasil é baixo.
O surto de ebola na África faz também com que teorias da conspiração surjam na internet. Um texto compartilhado nas redes sociais anuncia que o vírus foi criado pela indústria bélica americana, que o testou em povos africanos. Outro, assinado por Karen Méndez, correspondente em Caracas do jornal mexicano RT, afirma que a indústria farmacêutica dos Estados Unidos criou o vírus ebola, visando lucro com a medicação para a cura da doença. Nenhum deles, porém, apresenta qualquer prova.
Sobreviventes do ebola encontram ainda um forte desafio depois de tratados: a reintegração à sociedade. Na Guiné, alguns ex-pacientes pedem aos médicos que atestem por escrito que estão livres da doença, na esperança de serem aceitos novamente em suas comunidades. Muitos temem ser mortos violentamente por terem contraído o vírus. Na Libéria, os tratados perderam o contato físico com as pessoas ao redor, como vem acontecendo com o médico Melvin Korkor. “As pessoas dizem estar felizes com o meu retorno, mas ninguém quer apertar a minha mão. Digo que esta é a terceira fase do ebola: quando você não tem mais o vírus, mas continua com ele.”
Patrícia Campos Mello, repórter especial da Folha de S.Paulo, e o repórter fotográfico Avener Prado, do mesmo jornal, estiveram dez dias em Serra Leoa, um dos países africanos com o maior número de casos da doença. A seguir, Patrícia conta, em detalhes, como foi a experiência de conviver com as vítimas do ebola
Brasileiros – Uma das histórias mais impressionantes publicadas na Folha foi a do filho que cuidou da mãe. Esse é o personagem que mais a emocionou?
Patrícia Campos Mello – Foi sim, inclusive porque foi algo recorrente na viagem. Várias pessoas me diziam que a cultura africana tem esse laço forte do filho cuidar do pai, um dos problemas para quebrar a cadeia de transição da doença. Esse cara me falou, outras pessoas me falaram, inclusive médicos, que é uma doença que atinge sempre a família inteira porque um vai ajudando o outro e um vai contaminando o outro. As histórias dos sobreviventes são pesadas. Às vezes, eu queria pegar uma criança no colo, abraçar, e não poder fazer isso é muito difícil.
Você contou sobre catadores de secreções…
Eles são chamados de higienistas. São serventes em hospitais que precisam limpar materiais de alto risco de contaminação. Se você olhar a epidemia, vai ver que os que mais se contaminaram foram famílias e os profissionais de saúde: enfermeiras, médicos e esses catadores.
Você encontrou alguém que não acreditava na existência do ebola?
Não, isso mudou. Pelo que conversei com algumas pessoas, quando o surto começou ainda existiam superstições, como as que diziam que a doença era bruxaria, que tinha sido trazida pelos brancos, ou que para se infectar bastava entrar em um hospital. Agora, estão fazendo uma campanha de conscientização nos países afetados e a situação melhorou. Pessoas da ONG Médicos sem Fronteiras e dos governos entram nos vilarejos para avisar as pessoas que o ebola existe, que é doença contagiosa, que não pode comer carne de caça (morcego, macaco, porco-espinho), que não pode encostar em doentes. Tem muitas pessoas na rua com camisetas impressas com a frase: “Ebola is real”.
As pessoas evitam mesmo o toque?
Tem muita gente conscientizada sobre isso, principalmente em setores onde as pessoas são mais instruídas, como hotéis e hospitais. Mas se você vai a um mercado, é meio utópico acreditar que não vai esbarrar em ninguém. Todo mundo lava as mãos com água e cloro, mas em algumas circunstâncias é impossível não acontecer o encontro entre pessoas.
Há presença do governo de Serra Leoa, assim como na Libéria?
O conceito de Estado é muito diferente na África, ainda mais em um país que viveu um período de guerra civil. Lá, as instituições não funcionam muito bem. Mas eles estão tentando, fazendo campanha de conscientização, declarando que quem esconder doentes terá pena de dois anos de prisão e colocando o Exército para visitar as áreas afetadas. Só que existem problemas, como a corrupção, propinas sendo pagas nas barreiras de isolamento. O governo tenta, mas é difícil. Uma coisa que ilustra bem isso e me deixou decepcionada acontece em Kailahun, na Serra Leoa, um dos lugares mais afetados: existem quatro ambulâncias para atender 480 mil pessoas. Isso é o governo. E pese nisso o fato de o governo já ter boa parte do orçamento baseado em doações externas. Mesmo assim, são quatro ambulâncias para 480 mil pessoas!
O que mais chamou a sua atenção em Freetown, capital de Serra Leoa?
A cidade é pobre, há muitas favelas. Mas, em relação à doença, não dá para sentir o vírus. Não que as pessoas não estejam neuróticas, mas não é como na Libéria, onde a capital, Monróvia, foi muito afetada pelo surto. Duas coisas me chamaram a atenção: a pobreza e a sujeira, com lixões a céu aberto por toda a cidade.
Clóvis Rossi, também jornalista da Folha, ao saber de sua viagem, a chamou de louca. Você teve medo de se infectar?
Várias pessoas tiveram essa reação, mas não foi loucura. Tomamos todos os tipos de cuidados, e encontrei outros jornalistas lá, como os do New York Times, do Washington Post. As pessoas sabem como acontece a contaminação e tomam cuidados. Tem risco? Tem, mas foi tudo feito com cautela.
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