Inspiração para milhares de compositores de música popular ao redor do mundo, o recurso de exaltação à fossa e à dor-de-cotovelo é artifício ardiloso. Em forma de canção, peito escancarado e emoção à flor da pele geralmente resultam em lamúrias insuportáveis (alguém aí falou em sertanejo universitário e pagode romântico?!), mas também é fato que certas dores de amor foram cantadas por grandes autores e alçadas ao status de arte, visto que fossa é desses sentimentos universais (quem nunca?!).
No Brasil, esse personagem secular do cancioneiro mundial, o trovador despudorado em expor suas cicatrizes afetivas, tem em Lupicínio Rodrigues a figura de um dos maiores poetas, artífice de uma tradição que também nos deu outro gênio chamado Nelson Cavaquinho – como Lupicínio, sambista de um existencialismo incapaz de nos deixar impunes à sua dor e de fazer arrepiar até os mais insensíveis.
Primogênito de uma família composta por 18 filhos, Lupicínio Rodrigues nasceu há exatos cem anos em Porto Alegre, no bairro da Ilhota. Apesar de abrir caminho à essa extensa prole, o cantor e compositor teve infância simples, mas de poucas privações. O pai, Seu Francisco, e a mãe, Dona Abigail, pretendiam que o filho fosse médico e a partir dos cinco anos de idade, quando tentaram em vão matriculá-lo em uma escola para aprender a ler, passaram a incentivar a formação do menino.
Fascinado por futebol, o menino Lupi, como era chamado pelos pais e amigos, era assíduo nos campinhos de várzea da Ilhota – tanto que a paixão pelo Grêmio, posteriormente, em 1953, levou Lupicínio a compor o hino oficial do tricolor gaúcho.
No Colégio São Sebastião, de irmãos Maristas, Lupi teve os primeiros ensinamentos musicais com os professores Irmão Stanislau e Irmão Alfredo. Apesar da boa intenção dos pais em oferecer ao garoto a melhor formação possível, dificuldades financeiras fizeram com que Seu Francisco inscrevesse o filho, aos 12 doze anos de idade, como aprendiz de mecânico na Companhia Carris Portoalegrense, administradora do serviço de bondes da capital gaúcha.
Pouco depois, Lupicínio começou a escrever as primeiras composições para alguns blocos carnavalescos da Ilhota e passou a frequentar a boêmia local, especialmente o “Bar do Seu Belarmino”, onde a embriaguez emparelhava com a cantoria, fato que alarmou em Seu Francisco a necessidade de regrar a vida do filho e o fez obrigar Lupicínio a apresentar-se no Exército, como voluntário, em 1931. No ano seguinte, em excursão pelo Rio Grande do Sul ao lado de Francisco Alves e Mário Reis, Noel Rosa testemunhou Lupicínio em ação e foi um dos primeiros entusiastas de seus sambas-canção impregnados de dramaticidade e singeleza. Noel foi profético ao sentenciar “Esse garoto é bom! Esse garoto vai longe!”.
A vida militar do compositor foi breve. Durou apenas três anos e teve início no Batalhão de Caçadores de Porto Alegre. Lupicínio logo passou a integrar, como cantor, o conjunto musical dos soldados da corporação e jamais deixou de escrever sambas para os blocos carnavalescos. Aos 21 anos, em 1935, então cabo no batalhão e atuando na cidade de Santa Maria, o compositor abandonou o Exército e voltou a capital gaúcha para, recomendado por seu pai, trabalhar na Faculdade de Direito de Porto Alegre como bedel (profissional extinto há décadas, responsável por fazer a chamada e apontar as faltas dos alunos).
Nesse mesmo período, Lupicínio viveu sua primeira grande paixão, nutrida por uma moça mais jovem, chamada Iná, que com ele chegou a noivar, mas abriu mão do relacionamento por não concordar com a vida boêmia do rapaz. Décadas mais tarde, o cantor afirmou que a grande desilusão amorosa serviu de inspiração para muitos de seus sambas, impregnados de melancolia e uma poética incomparável em nossa música popular.
A frustração do rompimento com Iná e o êxito de uma de suas mais famosas composições, Se Acaso Você Chegasse (registrada em 1938, na interpretação que revelou o cantor Cyro Monteiro, o saudoso “Formigão”), fizeram com que Lupicínio decidisse encarar um período no Rio de Janeiro a partir de 1939. Na Cidade Maravilhosa, Lupi logo se aproximou da boêmia malandra da Lapa e passou a frequentar o Café Nice, onde travou os primeiros contatos com personalidades locais como Germano Augusto, Ataúlfo Alves e Wilson Batista. Foi também no Café Nice que Lupicínio conheceu um de seus maiores intérpretes, o cantor Francisco Alves.
Além de Alves, Lupicínio teve outros célebres defensores de seu repertório como, entre outros, Jamelão, Francisco Egydio, Noite Ilustrada, Elis Regina, Leny Andrade, Gal Costa, João Gilberto e Paulinho da Viola. Além de compor, Lupicínio passou as últimas duas décadas de vida também se dedicando a abrir e conduzir bares e restaurantes – como a churrascaria Jardim da Saudade, também chamada de Galpão do Lupi – ao lado da mulher Cerenita, com quem se casou em 1949.
O gaúcho deixou editadas cerca de 150 canções. Pesquisadores defendem que, entre obras perdidas, esquecidas pelo autor e não gravadas, esse número pode chegar a 300. Algumas dessas composições foram feitas a quatro mãos com parceiros como Alcides Gonçalves, Felisberto Martins, Rubens Santos e Hamilton Chaves.
Em 1956, depois de inúmeros sucessos na voz de outros cantores, chegou ao mercado Roteiro de um Boêmio, compilação dos primeiros registros em 78 rpm de Lupicínio interpretando suas canções. A despeito de clássicos como Se Acaso Você Chegasse, Volta, Nervos de Aço, Nunca, Esses Moços (Pobres Moços), Vingança, Meu Pecado, Cadeira Vazia, Felicidade, Judiaria e Ela Disse-me Assim, registros de Lupicínio por Lupicínio somente voltaram as lojas de LP’s no início dos anos 1970, pouco antes de sua morte, em 27 de agosto de 1974, quando o rei da dor-de-cotovelo partiu, aos 59 anos, vitimado por uma trombose.
Nesse hiato, em 1967, o poeta e crítico musical Augusto de Campos publicou no livro Balanço da Bossa (editora Perspectiva) um artigo, intitulado Lupicínio Esquecido?, texto essencial para compreender a importância e a dimensão poética da obra do gaúcho. Naquele mesmo ano, Augusto teve um encontro com o compositor, relatado no texto, que segue reproduzido após os vídeos a seguir (trata-se de um excerto de Lupicínio Esquecido?, leia a íntegra do artigo e do livro).
Em tempo: A Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre, abriu hoje a exposição Lupi, o Poeta da Dor-de-Cotovelo. Confira detalhes.
Ouça a íntegra do programa MPB Especial, de Fernando Faro, exibido na TV Cultura em 1972
Ouça a íntegra do álbum Jamelão Interpreta Lupicínio Rodrigues, também de 1972, no qual o sambista interpreta grandes clássicos do compositor com a Orquestra Tabajara regida pelo maestro Severino Araújo
Veja a cantora Elza Soares interpretando um pout-pourri de sucessos do gaúcho
Veja a interpretação de Gal Costa para o clássico Volta, durante show do álbum Índia em 1973
O ENCONTRO DE LUPI E AUGUSTO DE CAMPOS
por Augusto de Campos*
“Aproveitando uma breve estada em Porto Alegre, com Haroldo de Campos e Décio Pignatari, para a realização de uma exposição de poesia concreta, sob o patrocínio do Instituto dos Arquitetos do Brasil, quis entrevistar Lupicínio Rodrigues. Descobri a música de Lupicínio por volta de 1952, mais ou menos na mesma época em que descobri a música de Webern e a poesia concreta. Este era, pois, um encontro fundamental.
Nas vésperas da inauguração da mostra, fomos assim, Haroldo, Décio e eu, levados por bons amigos porto-alegrenses, desentocar o autor de Vingança no Clube dos Cozinheiros, pequeno reduto de música popular, que o cantor Rubens Santos administra dando-lhe um certo ar de santuário: nas paredes, recobertas de partituras, o visitante bate logo com os olhos no cartaz-aviso: “Quem fala quando alguém faz música coloca a própria ignorância na vitrina (provérbio chinês)”; depois da meia-noite a norma é aplaudir com estalidos dos dedos, em vez de palmas…
Lupicínio nos esperava, já temperando o instrumento vocal com umas quantas biritas (elas contribuem para dar à sua voz aquele pathos inimitável). E logo depois das apresentações, desrespeitando (que remédio) o provérbio chinês enquanto outros cantavam, fui arrancando Lupicínio (que fala pouco) algumas observações sobre ele próprio e sua música.
Relembro-lhe o Roteiro de um Boêmio, o seu long-play de pobre. Vamos recuperando, uma a uma, as composições do álbum. Lupicínio se anima. Volta a 1952. Tudo começou no programa que, sob aquele título, ele fazia na Rádio Farroupilha. Depois, em São Paulo, as audições, noite adentro, na Rádio Record. E o êxito surpreendente, como cantor, na Boite Oasis: dois meses de sucesso. Mais do que qualquer cartaz internacional. A noite paulista parava para ouvir a voz suave e embargada de Lupicínio. Depois daquela fase, só tem voltado a São Paulo esporadicamente. E há cinco anos que não grava. Resolvo cutucá-lo sobre a Bossa Nova. Lupicínio resiste um pouco, diz que não a acha tão nova, a batida no fundo é a mesma. Mas admira João Gilberto. Conheceu-o no começo da carreira, em Porto Alegre mesmo, numa temporada em que JG apareceu por lá. Segundo Lupi, João Gilberto passava até fome por essa época. Ninguém o entendia. Ninguém o levava a sério. “Antes de João Gilberto – diz Lupicínio – eu já cantava daquele jeito, quase falado. Mas não fui o primeiro. Antes de mim, Mario Reis, que, quando eu era criança, gostava de imitar”. “Chico Buarque vem de Noel Rosa” (e de João Gilberto, acrescentaria eu). Roberto Carlos? Lupicínio lembra uma velha composição sua: “Você parece uma brasa / Toda vez que chego em casa / Dá se logo uma explosão…” (Brasa).
Peço-lhe que cante. Lupicínio não gosta de cantar suas composições de maior sucesso. Prefere interpretar músicas novas, muitas delas, por incrível que pareça, ainda não gravadas. E de repente: “Vocês vão querem ouvir uma federal ou estadual?”. Fico sabendo que há uma “dor-de-cotovelo” estadual e uma federal. Mas esta última, a mais aguda, Lupi só canta depois de uma boa “embiritação”. Canta duas ou três, acompanhado só de violão, e eu fico pensando nos acompanhamentos que tem desservido Lupicínio. Sua voz, como a de João Gilberto, pede, essencialmente, acompanhamento de violão, e o resto, se houver, em segundo plano ou surdina. Pergunto-lhe se acha alguma relação entre o seu samba e o tango. Ele nega, peremptoriamente. Mas suponho que, em parte, é uma autodefesa contra a exploração xenofobista. Vingança já fez sucesso como tango em Buenos Aires e muitas de suas composições poderiam ser tocadas diretamente em ritmo de tango. O que não quer dizer nada de mau. Seria estranhável é que sua música, produzida no Sul, tivesse jeito de norte-americana. De resto, o tango não é a mesma coisa que o bolero – tem outra tradição e outro conteúdo. Num pequeno estudo sobre as letras e tango, Jorge Luís Borges aventura a profecia de que as letras de tango formarão, com o tempo, um grande poema civil. “Musicalmente – diz ele – o tango não deve ser importante; a sua única importância e a que lhe atribuímos.” E acrescenta: “A reflexão é justa, mas talvez possa aplicar-se a todas as coisas. À nossa morte pessoal, por exemplo, ou à mulher que nos despreza…”.
Lá pelas duas horas da manhã, o Clube dos Cozinheiros dá por encerrada sua sessão. Levantamo-nos, mas Lupicínio me segura pelo braço. Sentamos novamente. Lupicínio começa a cantar a palo seco, sem nenhum acompanhamento. Explica: “Tudo que canto é verdade. A minha vida”. E de vez em quando solta uma frase lapidar que já parece nascer letra de samba: “Quem vê as pingas que eu tomo, não sabe os tombos que eu levo”. Agora vai cantar uma “federal” – Um Favor –, fantástica, e ainda não gravada. “Quem puder gritar que grite / Quem tiver apito apite / Faça esse mundo acordar / Para que onde ela esteja / Saiba que alguém rasteja / Pedindo para ela voltar”. Vou anotando na semiobscuridade fragmentos incríveis de outras composições novas: “Eu hoje preciso fazer uso da minha ignorância”. E este, semi-edipiano: “Eu fui um dos bebês mais bem ninados deste mundo” (Meu Natal). E ainda: “A minha dor é enorme / Mas eu sei que não dorme / Quem vela por mim”. E mais este, final: “Parte meu coração em pedacinhos / E distribui a quem quiser”. Entre uma birita e outra, entre uma canção e outra, Lupicínio resume: “Tudo é confusão entre matriz e filial” (matriz = esposa). São 4 horas. Eu deixara de levar o instrumento certo para a entrevista – o gravador. Da grande noite que nos deu Lupicínio sobraram apenas esses estilhaços de conversa, esses s.o.s’s musicais que reproduzo para mim mesmo e para quem possa interessar…
As gerações mais novas fariam bem de – mesmo considerando o quanto o caminho de Lupicínio tem de solitário e incontinuável – procurar compreender o seu estranho e autêntico roteiro. E as gravadoras e os colecionadores de sons (e às vezes até alguns “ruídos” literários) para museus, fariam melhor se não perdessem de lhe registrar o depoimento e a interpretação, para que não venham lamentar-se depois, quando já for tarde para partir em busca do canto perdido. Que Lupicínio Rodrigues não tenha, hoje, um ou mais álbuns de suas músicas interpretadas por ele mesmo, com acompanhamento adequado, é um crime de lesa-música do qual são cúmplices não só os que têm o direito de exigi-los: os meios musicais de São Paulo, do Rio e de Porto Alegre – os gaúchos em especial, que às vezes parecem consentir na omissão de que é vítima o seu maior valor em música popular.”
* Excerto do artigo Lupicínio Esquecido?, originalmente publicado em Balanço da Bossa (Editora Perspectiva, 1967)
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