Air France 447: A tragédia segundo um piloto

Como sempre acontece nas grandes tragédias aéreas nacionais, somos bombardeados por uma verdadeira enxurrada de informações. O desaparecimento do AF 447 fez com que centenas de jornalistas de todo o mundo desembarcassem no Brasil. O tenente-coronel Henry Munhoz, chefe da divisão de relacionamento com a imprensa do Centro de Comunicação Social da Aeronáutica, organizou uma enorme operação para abastecer a mídia com informações. O site oficial da Força Aérea Brasileira (FAB) teve um milhão e meio de acessos nos dez dias subsequentes ao acidente. Ainda assim, algumas figuras carimbadas extrapolam a análise simples dos fatos e antecipam, em muito, as conclusões oficiais sobre os motivos que levaram uma máquina extremamente moderna a não concluir sua viagem com a segurança de sempre. Enquanto o “achismo” atrai repórteres ao saguão dos aeroportos, colhendo depoimentos de pessoas amedrontadas com a próxima viagem, milhares de aviões transportando milhões de passageiros mantêm suas rotinas de voar em absoluta segurança, inclusive os modelos Airbus A330 idênticos ao acidentado.

O fato é que o voo 447 da Air France não chegou ao seu destino. O que aconteceu sobre o Oceano Atlântico ainda é um grande mistério e especialistas em segurança de voo já consideram que esta investigação poderá figurar entre as mais complexas em toda a história da aviação. O desaparecimento num trecho do percurso sem monitoramento adequado da posição do avião agigantou a área a ser vasculhada nas buscas. A profundidade das águas no suposto local da queda pode significar que nem os corpos nem os destroços venham a ser 100% resgatados. No tocante à investigação do acidente, o papel das caixas-pretas é imprescindível, uma vez que poderão fornecer dados importantes sobre centenas de parâmetros da aeronave e gravações de vozes e ruídos da cabine.
[nggallery id=15403]

A primeira manifestação da Air France já falava em tragédia. O motivo é bem simples: o Aircraft Communications Addressing and Reporting System (ACARS), que fornece informações atualizadas, em tempo real, deixou de transmitir. As últimas apontavam para o fato de que as indicações de velocidade não eram confiáveis. Sabe-se também que o sistema de navegação apresentou falha e que, quase simultaneamente, o piloto automático (PA) foi desengajado. Outra informação importante diz respeito à despressurização da cabine. Houve também problemas elétricos, dentre outros. Difícil imaginar em que situação essas nformações foram transmitidas. A interpretação dos dados disponíveis até o momento do desaparecimento do A330 pode nos revelar algo acerca do que aconteceu naquele voo.

Despressurização
A falta de dados referentes à navegação é um problema menor quando comparado à despressurização, que requer uma ação imediata da tripulação, ou seja, a aeronave deve descer rapidamente para uma altitude onde o ar exterior possa ser “respirável”. Para se ter uma ideia do que são os efeitos da falta de oxigênio, também conhecida por hipóxia, vou me permitir um breve relato de um exercício muito interessante a que fui submetido no Instituto de Fisiologia Aeroespacial (Ifisal). Sentado com outros pilotos numa câmara hipobárica, que simula situações de ar rarefeito, usando capacete e máscara de oxigênio, o ar foi retirado de uma só vez, simulando uma descompressão explosiva causada pela perda de parte da estrutura de uma aeronave. Após um estampido, o ambiente se encheu de uma névoa esbranquiçada e a concentração de oxigênio dentro da câmara passou a ser idêntica à encontrada a 35 mil pés (quase 12 quilômetros de altitude), nível de voo em que costumam cruzar os jatos comerciais. Num voo real, além do descrito, a cabine teria subitamente sua temperatura baixada para 30 ou 40 graus negativos. Os monitores retiraram a máscara de cada piloto enquanto estes realizavam uma tarefa bem simples. A minha foi escrever números em ordem decrescente a partir de 1.000. Em menos de 30 segundos a maioria perde a coordenação, achando que está tudo muito bem. Então o monitor recoloca a máscara, possibilitando novamente a respiração de oxigênio. Não há quem não se surpreenda com o resultado do que escreveu no papel, os números estão fora de ordem e não são mais que garranchos.

Quem explica os efeitos da hipóxia é o atual diretor do Ifisal, o tenente-coronel médico Eduardo Camerini. Ele diz que não há qualquer diferença no mecanismo da respiração que você experimenta enquanto lê este artigo, a pessoa não tem como sentir que respira ar com baixa concentração de oxigênio, porém, numa situação real, se o suprimento de oxigênio não for rapidamente restabelecido, enquanto o piloto inicia uma descida de emergência, em poucos segundos as funções do corpo vão se comprometendo gradativamente porque o cérebro perderá a capacidade de gerenciá-las. Cada pessoa tem uma reação. Alguns são assintomáticos, outros podem apresentar depressão, euforia, tremor, lentidão de raciocínio ou movimentos.

Todos os pilotos da Força Aérea passam por este exercício, que também pode ser feito pelos pilotos civis. O tenente-coronel Camerini diz que cada profissional que passa pelo treinamento recebe um documento onde ficam registrados seus sintomas, de forma a reconhecê-los se um dia vier a acontecer. Por esse motivo, os comissários de voo costumam dizer que, “em caso de descompressão da cabine, máscaras cairão automaticamente à sua frente. Se estiver acompanhado de uma criança, coloque-a primeiro em si depois nela”. Se colocar antes na criança, pode ser que você sofra de hipóxia antes de ter condições de colocar a máscara.

Como vimos até aqui, a despressurização aconteceu, só não conhecemos as condições no momento, até que ponto e em que intensidade, a hipóxia pode ter influenciado. Aliados a isso, o voo enfrentou falta de indicações confiáveis de velocidade e também o fato de que o piloto tenha passado a operar a aeronave manualmente.

No que diz respeito à operação manual (sem o PA) de uma aeronave em altitudes elevadas, é importante ressaltar que, em função do ar rarefeito, a velocidade de estol sobe na mesma proporção em que a VMO (Maximum Operation Speed) se aproxima da velocidade de cruzeiro. O estol é o fenômeno aerodinâmico onde os filetes de ar separam-se da superfície das asas. Pode acontecer por falta ou excesso de velocidade em relação ao ar. Quando acontece por baixa velocidade, não há mais sustentação e o avião literalmente despenca, até que ganhe velocidade novamente e possa ser controlado. Isso tudo quer dizer que, levando o avião na mão em níveis de voo elevados, o piloto terá pouca margem de velocidade para trabalhar; se deixar cair muito, estola, se aumentar, pode infringir problemas de instabilidade às superfícies de controle responsáveis pelos comandos de curvas e subida e descida.

Para voar em segurança, o piloto deve ter indicações confiáveis de velocidade. A falta destas informações no AF 447 é outro fato registrado e enviado via satélite, pelo ACARS, para a base da Air France. A pilotagem do avião passa a ser uma tarefa muito difícil. Sem o PA, o piloto deveria controlar um A330 que não lhe forneceu informações seguras de velocidade e que apresentava problemas de pressurização. Neste ponto entra o “inimigo público” da vez: o tubo de pitot. Já foram alvos recentes da mídia o reverso, o grooving da pista de Congonhas, o transponder, entre outros. Para o comandante Wagner Cyrillo, que traz em seu currículo pareceres em centenas de acidentes e incidentes na aviação brasileira, cada um destes “culpados” são “fatores contribuintes”, acrescenta que jamais um acidente aeronáutico foi associado a um fato isolado. Agora é a vez do tubo de pitot, talvez porque o fabricante do avião tenha recomendado sua substituição em toda a frota.

A substituição e o aperfeiçoamento de sistemas e componentes é algo muito normal na aviação e podem ser originados por diversas fontes. Vão desde o funcionamento inadequado detectado pelos operadores até uma proposta de desenvolvimento elaborada pelos centros de engenharia do fabricante. Para que o comprometimento com a segurança possa ser bem entendido, enquanto você passa os olhos sobre este artigo, cada fabricante de aviões mantém uma aeronave, ou seus componentes, dentro de um hangar sofrendo esforços estruturais que vão acelerar a vida em fadiga para saber com antecedência o que pode acontecer com os aviões da frota e se está cumprindo o que foi projetado. Este corpo de prova para ensaio de fadiga já antecipou a necessidade de reforços estruturais e a substituição de componentes em várias aeronaves em todo o mundo. Para não haver surpresas, nenhuma aeronave poderá exceder suas horas de voo na ordem de um terço da vida deste corpo de prova.

No caso do AF 447, os investigadores deverão considerar ainda os efeitos de um possível flutter, que é uma vibração de elevada intensidade, que pode comprometer seriamente a integridade de algumas superfícies aerodinâmicas e concorrer para seu desprendimento da estrutura da aeronave. Este fenômeno não pode ser simulado nos ensaios de fadiga descritos, apenas em túneis de vento, e está diretamente relacionado ao excesso de velocidade.

Os pilotos normalmente não gostam de falar sobre problemas que ocorrem em seus aviões e verem seus nomes ou de suas empresas citados numa matéria. Mesmo os estrangeiros. Conversei com alguns deles que me passaram uma situação envolvendo flutter nas superfícies de comando da cauda do A330. Apesar de terem experimentado uma forte vibração sentida na cabine de comando, conseguiram controlar o fenômeno de forma muito simples: reduzindo um pouco a velocidade.

Redemoinhos verticais
A turbulência, por sua vez, pode ser provocada por condições específicas da atmosfera. Meteorologistas estimam que os movimentos verticais das massas de ar naquele instante atingiram incríveis velocidades que poderiam ter ultrapassado a expressiva marca dos 100 km/h. Sempre que uma massa de ar “pede licença” para subir, que é o sentido normal do ar aquecido, vai necessariamente forçar outras a saírem da frente. O efeito natural deste embate é descerem e ocuparem o espaço vago. Para quem está voando, o resultado é turbulência. A propósito, não existe vácuo na atmosfera terrestre. O que as pessoas chamam de vácuo é uma forte descendente ocasionada por uma massa de ar que cede espaço a outra que sobe. Se pudéssemos ver estes fenômenos, poderiam ser traduzidos por enormes redemoinhos verticais.

Ameaçadoras nuvens cumulus nimbus costumam se formar próximo à linha do Equador, geradas pelo fenômeno conhecido por Intertropical Convergence Zone (ITCZ), que é o encontro das massas de ar provenientes dos hemisférios Norte e Sul. Este tipo de fenômeno acontece frequentemente, talvez não com a mesma intensidade encontrada no voo 447. Além de chuvas fortes e turbulência severa, estas tempestades podem vir também acompanhadas de granizo.

A Aeronáutica informou que a maior distância entre os corpos resgatados superou os 80 quilômetros – é como se um corpo estivesse em São Paulo e outro em Campinas. Este espalhamento pode ou não indicar que o avião tenha se despedaçado em pleno ar. O estabilizador vertical foi encontrado inteiro boiando sobre o mar, e não se sabe ainda em que condições este componente desprendeu-se da estrutura do avião. Há histórico envolvendo acidentes com outros aviões da Airbus, em condições extremas, onde o estabilizador vertical ou parte dele tenha sido arrancado e concorrido para um acidente. Este acidente colocou novamente a Airbus em evidência. Alguns céticos voltam à tona questionando a eficiência e segurança de algumas filosofias adotadas pelo fabricante europeu de jatos comerciais. Muitos fabricantes de aviões têm buscado novas soluções e novas tecnologias para melhorar a performance de seus produtos e atingir melhores níveis de segurança; entre elas está o uso de materiais compostos. O objetivo é reduzir o peso sem comprometer a resistência. O custo maior deste tipo de material é compensado na redução do custo da operação. O questionamento quanto à eficiência no uso de material composto na indústria aeronáutica está fora de questão. Certamente será o futuro. Se por um lado sua aplicação na aviação é relativamente nova, hoje existe tecnologia para testá-lo adequadamente. As aeronaves que sairão das linhas de montagem em todo o mundo terão em suas estruturas porcentagens cada vez maiores de material composto. O emprego de novos materiais e novas tecnologias é a tendência natural em qualquer ramo da atividade humana.

Há outro detalhe bastante interessante no qual a Airbus adotou uma filosofia inovadora. Para quem já esteve nas cabines de comando de aviões mais antigos, certamente vai se surpreender com o ambiente “limpo”. No lugar de dezenas de instrumentos estão seis grandes telas de cristal líquido. Não existe o tradicional manche, que foi substituído por um sidestick e instalado nos consoles laterais. No lugar onde normalmente estaria o manche, existe uma mesinha que pode ser recolhida para o interior do painel de instrumentos. Porém, o mais importante são os diversos softwares que gerenciam tudo o que acontece no voo e muitas vezes tomam a decisão para os pilotos, tudo em nome de um voo mais seguro. Pode ser que alguns acidentes tenham sido creditados ao excesso de automatismo ou à interface entre o piloto e a máquina, mas quantos não terão sido evitados? Quanto aos aviões da Airbus, não há uma tendência a sofrer mais acidentes que os da Boeing, por exemplo. Mais de cinco mil Airbus estão em operação em todo o mundo, transportando passageiros e carga com absoluta competência.

A grande vantagem do ser humano sobre qualquer software é sua capacidade de se autoprogramar. Por este motivo ele sempre estará na cabine de comando e será cada vez mais bem preparado. Creditar o acidente à tecnologia embarcada talvez seja uma forma simplista demais de resolver esse imenso quebra-cabeça, ainda mais num momento em que os investigadores estão na fase de juntar as peças possíveis de serem encontradas.

Segurança de voo
Muita gente tem perguntado: voar ainda é seguro? Não precisamos pensar muito para responder. É sim. A segurança de um voo há muito não se restringe às habilidades de um aviador e ao projeto bem executado do avião que pilota. Pode parecer pieguice, mas voar é muito seguro, especialmente no Brasil.
A International Civil Aviation Organization (ICAO), órgão máximo da aviação mundial, concluiu uma auditoria em maio com os seguintes resultados: o Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea) teve 95% de aprovação. O Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) atingiu 96% de conformidade. A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) ficou com 84%. A média colocou o Brasil na quinta posição entre os países do G-20. O que isto quer dizer?

No que diz respeito ao Decea, os resultados nos colocaram à frente de países como Estados Unidos, França, Alemanha, Itália e Austrália.

Surpreso?

Os resultados do Cenipa colocaram o Brasil à frente de EUA, Canadá, França, Itália, Alemanha, Austrália, China, Índia, entre outros.

Depois da auditoria da ICAO restam três alternativas em relação à nossa aviação: – questionar os parâmetros da ICAO; – questionar se os “céus de lá” são mesmo tão melhores que os nossos; – saber se a capacidade de mascarar nossas falhas é tão eficiente.

Tenho a impressão de que o dia-a-dia que vivemos na aviação é ligeiramente melhor daquele vivido por outras nações que costumamos tomar por referência. Lembra-se do episódio que ganhou o nome de Apagão Aéreo? Pois é. Parece que foi superado com muita competência.

E a busca?

Aqui eu tomo licença para falar com a experiência de quem fez parte do único esquadrão da FAB especializado exclusivamente em busca e salvamento, o 2/10 Grupo de Aviação. Não tenho dúvidas de que nossas unidades search and rescue (SAR) estiveram 100% sintonizadas na missão de encontrar qualquer coisa que remeta ao avião. Não há membro de uma equipe SAR que não tenha acreditado no milagre de encontrar um sobrevivente e conduzi-lo de volta para casa. Mas só o trabalho de homens altamente motivados não seria o suficiente, considerando que a área de busca, encerrada dia 26 de junho, ultrapassou o milhão de quilômetros quadrados, ou seja, mais de cinco vezes o tamanho do Estado de São Paulo. Nos 26 dias de buscas foram resgatados 51 corpos e mais de 600 destroços do avião, além de diversas bagagens.

Se há algum meio aéreo capaz de encontrar uma agulha neste palheiro, este é o avião R-99 e seus sensores de última geração. A FAB teve de lançar mão desta moderníssima aeronave para localizar na superfície da água restos do acidente. Desenvolvido a partir do Embraer 145, membro da família de aviões que é sucesso de vendas da empresa brasileira, já passou a marca das 1.100 entregas para operadores em todo o mundo e acumulou mais de 14 milhões de horas voadas sem registro de acidentes que fossem causados pela plataforma. Luís Francisco de Macedo, especialista em sensoriamento remoto, fala sobre os quatro sensores do avião. Dois deles não têm aplicação nas buscas: um scanner multiespectral concebido para imageamento de florestas e um scanner de transmissões de rádio, mas que não tem capacidade de perceber as transmissões das caixas-pretas submersas. Em contrapartida, há uma câmera de torreta que opera tanto no espectro infravermelho termal quanto no visual, que pode ser útil na identificação de objetos boiando na superfície da água. Por último está o sensor que fez toda a diferença. Trata-se de um Synthetic Aperture Radar (SAR) concebido também para imagear florestas, mas que se mostrou muito útil nas buscas. Voando a 30 mil pés (10 km de altitude) e 200 nós (370 km/h), com este radar o R-99, em condições de mar calmo, tem grande capacidade de detectar objetos flutuantes, com componentes metálicos e derramamentos de derivados de petróleo na superfície do oceano, de dia ou de noite, com ou sem nuvens.

Segundo Macedo, utilizado no modo de média resolução é possível efetuar a procura numa faixa de 40 quilômetros de largura, muito além da capacidade visual de um observador humano, se comparado aos tradicionais métodos de busca, ou seja, contando exclusivamente com os olhos dos observadores, este avião pode aumentar a eficiência das buscas em pelo menos dez vezes. Para se ter uma ideia da sensibilidade deste equipamento, Macedo afirma que ele é capaz de detectar a existência de arames numa cerca de fazenda a uma distância de 40 quilômetros.

Não sei o que derrubou o Airbus A330 da Air France. Certamente muitas informações novas serão arroladas e, para o bem da segurança dos nossos voos, espero que o episódio seja completamente esclarecido. Como piloto e eventual usuário, espero que as lições aprendidas neste episódio possam garantir que nós cheguemos sempre aos nossos destinos.


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.