Intel Outside

Foi uma experiência marcante o dia em que o mineiro Rogério de Paula, 40 anos, viu, pela primeira vez, alguém lhe pedir dinheiro na rua de Belo Horizonte. Ele, que foi morar em Brasília ainda bebê, passara a infância e a adolescência na cidade onde não há pessoas nas calçadas. Seu mundo girava em torno da tecnologia e dos estudos, desde que seu pai comprou um computador, em 1982. Rogério tinha 12 anos e se encantou tanto pela máquina que a desmontou para ver o que havia dentro – e acabou queimando a placa de memória. Era um DGT 100 nacional, clone do TR 580, que custou uma pequena fortuna, numa época em que o Brasil se fechou para a entrada de tecnologia.

Tinha uma memória tão incipiente que cabia apenas alguns joguinhos e um editor de texto. Rogério seguiu os passos do pai e se formou em Engenharia Elétrica. Mas seu negócio era Eletrônica. Não podia imaginar a guinada que sua vida daria nesse mercado e e na qual chegou em 2011, transformado em suas ideias, depois de percorrer favelas pelo Brasil.
Doutor em Ciências da Computação e mestrado em Telecomunicações pela Universidade do Colorado, em Boulder, Rogério coordena há seis anos o Departamento de Pesquisas em Etnografia no grupo de Plataformas para Mercados Emergentes na Intel Semicondutores, uma das maiores empresas de tecnologia do mundo. Na filial brasileira, é pago para ajudar a transformar a educação pela tecnologia. É um conceito complexo, que passa longe do mero fim de fazer dinheiro com a venda de computadores. Ele investiga o desenvolvimento de tecnologias para a educação que focam a construção de conhecimento e a colaboração, observando as implicações sociais e culturais da introdução dessas tecnologias nas salas de aula. Segundo Rogério, seu trabalho consiste em observar como os chamados “nativos digitais” estão criando novos significados e novas mídias para desenvolver gestão de educação no Ensino Básico.

O trabalho de campo mudou sua visão de mundo. Com a ajuda de lideranças comunitárias, ele visita favelas e regiões pobres de grandes cidades brasileiras, como São Paulo, onde atuou em Paraisópolis, Osasco e São Judas, entre outras. Trabalhou também no Rio de Janeiro e em Salvador. Na capital baiana, vivenciou a complexa vida nas palafitas da favela de Alagados e se impressionou com a capacidade do ser humano em sobreviver às diversidades e a sonhar com um futuro melhor. “Existe uma beleza no modo de vida dessas pessoas, em sua capacidade de resistir honestamente. É muito forte, para mim, a postura de estar trabalhando sem deixar de acreditar que aquela é a forma de melhorar. Acho incrível esse esforço e me questiono o que faria no lugar delas.” E acrescenta: “Cresci em Brasília, numa época em que não havia pobreza, pelo menos não chegava a mim. Daí dá para se ter ideia do impacto sobre o que faço hoje.”

Por necessidade e interesse, Rogério passou a ler bastante sobre sociologia e antropologia. Diz-se crítico quanto ao que a tecnologia está trazendo às pessoas. “Não acredito que a tecnologia defina coisas, mas que cria oportunidades. Por isso, quem está mudando o mundo não são as máquinas, mas as pessoas. Ela é uma ferramenta, que ajuda ou cria divisões.” Por isso, analisa como o universo digital está transformado os usuários. “Para a nossa geração, as máquinas são algo misterioso e mágico. Para as crianças, é diferente, não tão distante, pois está ali desde sempre.” Aí entra o conceito de democratização do acesso, que entrou em uma nova fase de discussão, já que uma grande massa no Brasil pode usar computadores. “Discute-se agora quando a tecnologia vira um instrumento e qual o seu significado. O nosso País passa por um momento de transformação importante, quando deixa de ser apenas só mercado.”

Rogério de Paula teve o privilégio de começar profissionalmente quando surgiam os telefones celulares e nascia em todo o planeta a internet, em 1993. “Eu tinha noção do que estava surgindo, mas sempre fui mais acadêmico, de querer entender as coisas, algo que ainda não existia de fato, enquanto meus amigos abriam negócios e ganhavam dinheiro.”
Nos dois últimos anos de faculdade, estagiou em uma empresa de pequeno porte que desenvolvia programas para computadores. “Foi fundamental na minha formação profissional e para saber o que não gostaria de fazer em um negócio.” Ao sair, montou a empresa Celular, de desenvolvimento de softwares. Queria ter liberdade de horário e não usar terno. E começaram a surgir oportunidades, como o desenvolvimento de software para coleta de dados em centrais digitais de telefonia.

Até então, tudo era lento e improvisado. Fotografava-se dados sobre o consumo dos clientes nos discos, que eram digitados um a um. Ele desenvolveu um meio de fazer isso por cabo telefônico, mais rápido e confiável.
Foi durante um trabalho para a Odebrecht no Peru que ele percebeu a dificuldade dos funcionários em operar sistemas. A partir daí, pautou-se a mapear a relação entre as ferramentas digitais, as necessidades e o modo como tornar tudo mais fácil e atraente. Com o dinheiro que ganhou pela venda do programa das centrais digitais, foi fazer mestrado em Telecomunicações na mesma universidade americana. Uniu-se a um grupo de pesquisa interessado na relação entre homem e computador.

Sua pesquisa foi estendida para o doutorado. “A internet era muito de consumo de informação gerada por empresas, sem ferramentas para criar conteúdo. Questionava-se se não deveria ter todo mundo gerando conhecimento.” Em 2001, fundou o Web2gether, rede social para escolas que seria usado entre professores e alunos. Não deu certo porque esbarrou na privacidade que os pais poderiam alegar em relação à exposição de seus filhos.

Três anos depois, Rogério entrou no pós-doutorado. Trabalhou em um projeto que investigava o relacionamento entre privacidade e segurança de senhas enquanto questão social e cultural. Em 2005, entrou para um grupo de pesquisadores patrocinado pela Intel, para desenvolver plataformas de tecnologia em países emergentes – Brasil, Índia, China e Egito. Veio o convite para trabalhar aqui em pesquisas de campo. Como gerente, deveria comandar estudos a partir de uma metodologia que tenta entender os problemas, como vivem e os valores das pessoas que usam tecnologia.
O serviço consistia em acompanhar usuários no dia a dia, desde o café da manhã, a ida ao trabalho de ônibus, trem ou metrô e a volta para casa. Uma das questões estava em saber o significado de pobreza. “Não adianta considerar apenas a renda, porque se consome muito mais do que o salário ganho. É mais a perspectiva do que se vê em relação ao futuro, aos desejos e necessidades.” Desse modo, até o design das máquinas tinha de ser pensado quanto a custo e funcionalidade.

A educação acabou ganhando muita importância em seu trabalho. Ou seja, como usar a tecnologia na sala de aula. O estudo permitiu que a Intel desenvolvesse no Brasil um pequeno computador chamado Classmate, que já vendeu mais de cinco milhões de unidades no mundo. Considerou-se em sua concepção critérios como robustez, custo e flexibilidade – dentro da ideia de que não existe sala nem professores iguais. Um exemplo de sucesso nesse sentido é Piraí, cidade carioca com uma rede municipal de acesso à internet, que transformou a autoestima da população e está mudando a economia local para melhor. “Existe ali um ciclo diferente de desenvolvimento”, destaca Rogério.

O engenheiro afirma, com franqueza, que dificilmente conseguiria trabalho em sua especialidade no Brasil. A explicação é preocupante: poucas empresas no Brasil despertam para a necessidade de pensar melhor em quem está na outra ponta. “Precisam deixar de ser só marketing e mercado. Está tudo inter-relacionado, estudos sociais e tecnologia. Não tem como não investigar o que faz as pessoas gostarem mais de tablets, por exemplo.” Seu trabalho não é antecipar o futuro, mas saber como essas tendências surgem. É visualizar para suprir necessidades. “Um dos valores que trago é fazer a ponte entre engenharia e seu uso, o lado humano.” É, enfim, uma questão de modelo alternativo de negócio, de se saber qual é a economia e as oportunidades que ela oferece. “Tem de haver discussão se almejarmos mudanças de valores nesse novo mundo que está surgindo.”


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