O tipo de pergunta que dá título a este artigo, naturalmente, pode levar o seu autor, o cidadão e o analista a um só tempo a se dividir na busca de respostas. O cidadão, movido pelo wishful thinking, pode responder em uma direção, movido pelos seus valores ideológicos e pelo seu modelo de país ideal. O analista, por outro lado, deve levar em conta as limitações da política e da sociedade reais, ainda que tempere seus argumentos com ideologia. Obviamente, um tentará negociar com o outro, em busca de projeções razoáveis para que o leitor não seja burlado. Vale lembrar que há muitos analistas, à esquerda e à direita, que se deixam levar pelo wishful thinking, fazendo todo o possível no texto para que o leitor tome seus valores como evidências insuperáveis. Tudo bem, faz parte do jogo, mas pessoalmente não gosto dessa estratégia, sobretudo como leitor. Então, vou tentar evitá-la como escritor, já deixando bem claro que a ideologia está presente na minha análise.
O cidadão gostaria de ver um novo governo recuperando a economia, eliminando a corrupção, assumindo a educação como prioridade, consolidando a ascensão socioeconômica dos mais pobres, fortalecendo as instituições democráticas. Até aí, nenhuma novidade. Apostaria que 99% dos cidadãos brasileiros esperariam a mesma coisa do novo governo. As diferenças começam no “como fazer” com que essas projeções genéricas se tornem realidade. Como “recuperar” a economia? Desregulamentando o mercado de trabalho e aumentando juros para atrais capitais a qualquer preço? Controlando gastos públicos em detrimento de políticas sociais mais contundentes? Como acabar com a corrupção? Entendendo-a como mero deslize moral de indivíduos e partidos inescrupulosos ou como resultado de uma falência estrutural das estruturas e práticas político-partidárias brasileiras? Como melhorar a educação? Culpando professores e alunos pelo fracasso escolar ou atuando na reforma e integração de currículos e na valorização profissional dos docentes? Como fazer com que os mais pobres ascendam socialmente? Com políticas de transferência de renda articuladas a contrapartidas das famílias beneficiadas ou com políticas de estímulo às iniciativas individuais, pela inserção no mercado de trabalho e pelo mérito empreendedor pessoal?
Na minha opinião, agora falando mais como analista, o próximo governo da presidenta Dilma Rousseff terá que enfrentar três pontos estratégicos e sensíveis: 1) no setor econômico, o desafio será manter um equilíbrio mínimo nas contas públicas, o baixo nível de desemprego e reverter a queda abrupta na balança comercial e de pagamentos; 2) no setor político, o novo governo deveria estimular uma reforma política, junto com setores democráticos da sociedade civil interessados em qualificar a política brasileira; 3) no campo das políticas públicas, a prioridade deveria ser uma reforma da educação que coordene e integre a educação básica em nível nacional.
O primeiro ponto será o grande desafio já no curto prazo, tendo em vista que a economia mundial dá sinais muito tímidos de que sairá da grande crise iniciada em 2008. Ao que parece, os BRICS estão entrando para valer no clube dos países em crise. Como a economia brasileira é dependente e reativa, o cenário não é nada animador. O estilo petista de gestão econômica que, em linhas gerais, mantém os princípios do Plano Real (superávit primário, metas de inflação e flexibilidade cambial), mas os submete a certa lassidão contábil e os sujeita a intervenções e arranjos conjunturais, parece estar chegando ao limite. A inserção dos mais pobres “via mercado”, bem-sucedida até aqui, depende de políticas de subsídio para manter o consumo e o emprego, sem falar nos gastos públicos para manter políticas de renda via salário mínimo e Bolsa-Família. Como manter essa política combinada de ações econômicas e sociais em um quadro de agravamento da crise econômica, financeira e fiscal, aliada à crescente hostilidade “do mercado” (leia-se, os grandes financistas) em relação à “matriz econômica” do governo Dilma? Uma resposta equivocada a essa equação do campo econômico poderá comprometer politicamente o novo governo, fazendo com que as tensões políticas derivadas de uma eleição acirrada se aliem a um quadro de crise econômica e social. Se isso acontecer, as passeatas de junho de 2013 parecerão uma quermesse festiva diante de uma nova ocupação das ruas contra “o sistema”.
A reforma política deveria ser outra prioridade, não apenas do governo, mas de toda a sociedade civil comprometida com a democracia. Obviamente, o governo eleito terá uma função importante, simbólica e política, ao abraçar um projeto de reforma, pois sabemos que o governo federal no Brasil tem recursos políticos para negociar com os outros poderes, sobretudo com o Legislativo. Mas qual reforma política deve ser proposta? O novo governo Dilma abraçará efetivamente o projeto da Coalização Democrática pela Reforma Política, capitaneado pela CNBB e pela OAB, entre outras entidades? Os seus quatro pontos essenciais – financiamento de campanha, fortalecimento e regulamentação dos mecanismos de democracia direta, paridade de gênero nas listas eleitorais e eleições proporcionais em dois turnos – conseguiriam vencer as mazelas da política brasileira, a começar pela corrupção estrutural?
Finalmente, a educação básica deveria ser a prioridade no campo das políticas públicas. Não que as questões relativas à saúde e ao transporte estejam resolvidas, longe disso. Mas a educação básica ainda carece de uma política integrada nacionalmente, apesar dos belos planos estratégicos que são lançados de tempos em tempos. Também nesse ponto, o novo governo federal deve ser um propositor de debates – sociais, técnicos e legislativos. Mas também deve ser um gerenciador de resultados, federalizando o acompanhamento de um sistema nacional de educação. Isso não significa matar as demandas e especificidades municipais e regionais, mas integrá-las em escala. Os focos de ação dessa política são vários. É preciso integrar currículos, com partes flexíveis para serem adaptados localmente. É preciso ter políticas de valorização profissional da carreira docente, na forma de salários e capacitação. É preciso criar mais creches, reequipar as escolas voltadas para o ensino fundamental e revisar a estrutura do ensino médio. Mas fica a pergunta: a valorização da educação básica será feita em detrimento dos recursos para o ensino superior, tradicionalmente um campo de administração direta do governo federal, como querem certas vozes liberais? Ou será possível injetar recursos na educação básica sem sucatear as universidades federais, incrementando o orçamento para a educação básica dentro das novas metas de gastos com educação em relação ao PIB? Estados e municípios assumirão efetivamente a sua parte nesse desafio nacional pela educação básica?
Enfim, não sei se foi o cidadão ou analista quem equacionou a pergunta que dá título a este artigo. Só sei que o analista e o cidadão temem que a dicotomia político-partidária, que passa também por questões sociais e ideológicas mais profundas que não podem ser simplesmente recalcadas por um sistema que se quer democrático, deem o tom da vida política e social brasileira nos próximos quatro anos. Se isso acontecer, a agenda acima exposta ficará perigosamente adiada, dadas as dificuldades para compor maiorias legislativas e hegemonias sociais mínimasem contextos de autofagia política. Mas, por outro lado, os desafios que se projetam nesse segundo mandato da presidenta Dilma constituem um momento propício para que a candidata reeleita dê lugar à estadista.
*Marcos Napolitano é historiador, pesquisador do CNPq, professor do Departamento de História da USP, autor do livro 1964: História do Regime Militar Brasileiro (Editora Contexto, 2014)
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