Aos 78 anos, Tom Zé mantém intacta a inquietação que lhe é peculiar. Uma conversa telefônica breve, de 15, 20 minutos, somada à audição do novo trabalho, seria suficiente para compor esta resenha de Vira Lata na Via Láctea, seu 15o álbum. Mas ele faz questão de falar pessoalmente com a reportagem da Brasileiros, no conforto de seu lar, doce lar, que recentemente ganhou o acréscimo de um pequeno estúdio.
Por cerca de uma hora e meia, armado do gestual efusivo e complementar de sua oratória, ele tratou de questões centrais e adjacentes ao novo trabalho. Entre os fatores periféricos, a inclusão do espaço musical no cotidiano doméstico, segundo ele, permitiu atingir registros vocais incomuns: “Passo horas cantando. Posso acordar às quatro da manhã e gravar, que não vou incomodar ninguém. Muita gente veio me perguntar: ‘Rapaz, mas como é que você conseguiu cantar desse jeito?’”.
De fato, Vira Lata na Via Láctea revela um intérprete mais entregue às possibilidades harmônicas e melódicas de seu timbre vocal do que aquele Tom Zé de métrica cadenciada. Mas o álbum tem outras boas novas. Caso de Pour Elis, canção composta em 1982, a partir de um texto escrito por Fernando Faro em homenagem a Elis Regina, na qual Milton Nascimento divide com ele os vocais. Criolo (leia reportagem com o rapper, capa da edição 80) também entra na mistura. Compôs e canta ao lado do anfitrião o tema Banca de Jornal. Outro ilustre convidado é o conterrâneo Caetano Veloso. Ele acompanha o amigo no dueto vocal de Pequena Suburbana, a bela canção que fecha o álbum.
Em arranjos, remixes e na concepção da capa, assinada por Mallu Magalhães, o novo disco também conta com a presença de talentos contemporâneos como os paulistanos Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, e o capixaba Silva. Além deles, jovens artistas que, no início deste ano, participaram do compacto duplo de Tom Zé Tribunal do Feicibuqui também escreveram arranjos. São eles: Tim Bernardes, vocalista do trio O Terno; Marcelo Segreto, da Filarmônica de Pasárgada; e o trio de saxofonistas da Trupe Chá de Boldo – Remi Chatain (alto), Marcos “Mumu” (tenor) e Cuca Ferraz (barítono).
Lançado em vinil e na internet Tribunal do Feicibuqui foi a resposta de Tom Zé ao patrulhamento que sofreu nas redes sociais. Ele foi acusado de ter se vendido, por aceitar o convite da Coca-Cola para cantar um jingle sobre a Copa do Mundo de Futebol de 2014, realizada no Brasil entre julho e agosto. Longe de acossar o baiano, o linchamento virtual serviu de inspiração para ele seguir esmiuçando, em canções como Geração Y e Papa Francisco Perdoa Tom Zé, temas como a convergência de mídias, a hiperconectividade em ambientes virtuais e os compartilhamentos de conteúdo nas redes sociais.
Quem conhece a obra de Tom Zé desde o final dos anos 1960 sabe que ele sempre esteve atento às manifestações de seu tempo. Na canção A Babá, de 1972, ele indagou: “Quem é que está fazendo pesadelo na cabeça do século/Quem é que agora está passando dinamite na cabeça do século?”. Com ou sem respostas para o que acontece hoje, Tom Zé deixa evidente, com esse novo álbum, que seguirá na defesa do direito de fazer as perguntas que lhe são caras.
Tom Zé apresentará o repertório de Vira Lata na Via Láctea neste final de semana, no SESC Vila Mariana, em São Paulo (confira detalhes). No site oficial do músico, é possível comprar o CD e baixar três canções. Em setembro de 2009, ele foi capa da edição 26, confira a reportagem Tom Zé Nu & Cru. À seguir, divididos por temas, leia excertos da entrevista com o compositor:
Geração Y
“Uma das bandeiras que eles levantam é a da ética. Os meninos dessa geração querem que o prometido seja cumprido. Defendem que se tenha uma relação humana com uma porção de coisas intermediadas pela ética. Quando li sobre eles na Brasileiros (leia a reportagem de Carla Matsu e Luana Schabib, capa da edição 77), em outras revistas e jornais, tive o cuidado de tomar nota das palavras novas e acabei fazendo essa canção que abre o disco. Tenho uma simpatia enorme por essa geração.”
Milton Nascimento (leia entrevista publicada na edição 75)
“Em 1972, Serginho Leite (o radialista e humorista, morto em 2011) morava na Avenida Pompeia e eu fiz um estúdio na casa dele. Certa vez, uma emissora de rádio começou a tocar Travessia, do Milton, e o Serginho tinha uma gata que, percebemos depois, toda vez que a música tocava acontecia algo que a gente pode chamar de, usando uma palavra hoje muito em voga, ‘compartilhamento’ de uma emoção estética entre animal e homem. A gata perdia a noção de sua condição animal, esticava o pescoço e enquanto o rádio tocava Travessia ela começava a emitir sons. Ninguém a tirava dali e isso não acontecia com nenhuma outra música. A voz de Milton tem vibrações que talvez aparelho nenhum consiga identificar.”
Herança tropicalista
“De vez em quando alguém se pergunta ‘o que é que sobrou do tropicalismo?’. Eu diria: ‘se tirar o tropicalismo daqui, você some!’. A roupa que você está vestindo, a barba e o cabelo que você usa, não existiam antes do tropicalismo. Homem não podia vestir roupa colorida. Nada de rosa, verde, vermelho ou amarelo. Eram cores ‘de moça’. Lembro que, uma vez, comprei uma camisa com uma listinha amarela, fiquei com medo, mas comprei. Quando decidi usar, botei o pé na rua e de cara apareceu um sujeito para dizer ‘roupa de mulher!’. Então, o tropicalismo carrega a gente.”
Encontro de gerações
“Os arranjos do Kiko Dinucci parecem descarnados. Os instrumentos parecem estar nus, soam como se tivessem perdido suas roupas, sua pele e estão com os nervos de fora. Teve música que tive de mudar a melodia. Os arranjos de sopros, feitos pelos meninos da Trupe Chá de Boldo, ficaram tão impressionantes que eu tive de mudar a melodia de Irará, Irá Lá. Muitas das coisas que eu não sabia como resolver foram decididas com eles. Durante as gravações, meu irmão, Guga, estava com um câncer e pensei que ele fosse morrer, mas ele se curou. Quis escrever algo que brincasse com ele e botasse sua cabeça para frente, mas não saia. Falei com Marcelo (Marcelo Segreto, compositor da Filarmônica de Pasárgada): ‘Preciso fazer isso para Augusto, mas não consigo fechar a ideia’. No outro dia, ele veio com uma solução completamente inesperada, que eu nunca chegaria a ela, e acabei mudando toda a concepção da música.”
Papa pop
“Gosto da postura do Papa Francisco. Ele e Lionel Messi comprovam que agora existe um tipo novo de argentino. Brincadeira. Mas tenho certeza de que esse Papa vai ser o primeiro a se casar – e a se divorciar, claro.”
Preconceito em SP
“Sempre houve uma parcela de São Paulo muito reacionária, bicho. A questão é que as pessoas não tinham coragem de assumir, mas agora elas simplesmente não têm vergonha de dizer que são a favor da ditadura, de intervenção militar. Acham bonito dizer que tem mais é de tacar bala.”
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