O mar transparente do Caribe parece um quadro emoldurado pela janela do avião. Mais alguns minutos de voo e o cenário paradisíaco assume os traços cinzas de um amontoado habitacional mal-acabado. O acesso às casas se dá por meio de vielas entre muros e tapumes. Um grande cortiço. O último rasante do avião, antes de tocar a pista do aeroporto internacional Toussaint L’Ouverture, em Porto Príncipe, é sobre Cité Soleil – considerada a favela mais violenta do mundo pela Organização das Nações Unidas (ONU). O pouso funciona como ponto de partida para um choque de realidade, uma introdução à experiência marcada para o dia seguinte.
O Haiti foi dilacerado pelos infortúnios que percorreram sua história recente – ditaduras sangrentas, conflitos armados entre gangues favoráveis e contrárias ao governo e intervenções internacionais. A luta dos haitianos está estampada no rosto de cada um, no sorriso de cada criança.
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Desembarquei na capital do país em uma quinta-feira de tarde ensolarada. A alta temperatura invadiu o avião assim que a porta foi aberta. Um comboio de carros oficiais da ONU, com a presença de mais de dez oficiais-generais das Forças Armadas brasileiras e do embaixador do Brasil no Haiti, Igor Kipman, cruzou a cidade de Porto Príncipe em um trajeto que liga o aeroporto à base do Brabatt, sigla, em inglês, de Batalhão Brasileiro.
Impossível não se surpreender com as dezenas – se não centenas – de transeuntes desocupados pela capital Porto Príncipe. Eles andam de um lado para outro sem rumo certo. 70% dos quase dez milhões de haitianos estão desempregados, segundo a ONU. O trânsito não tem uma sinalização sequer. Carros velhos dominam as ruas ao lado das “tap-taps” (picapes sucateadas utilizadas como transporte público) e dos poucos carrões importados pertencentes à restrita elite haitiana ou à comunidade internacional que vive no país a serviço da ONU e das embaixadas.
É curioso perceber uma maioria negra pelas ruas, até mesmo dirigindo carros importados, nessa ex-colônia francesa. Mas não me surpreendi, os números já davam conta de que a cada vinte haitianos, dezenove são negros. A explicação é histórica. O Haiti foi o primeiro país das Américas a se tornar independente, em 1804, por um levante de escravos, resultando na independência e na expulsão dos franceses.
Na chegada à base do Brabatt, tivemos tempo apenas para descobrir onde ficaríamos hospedados. Os militares brasileiros que vão para o Haiti em missão de paz dormem em contêineres ou alojamentos feitos de PVC, equipados com beliche, armário e ar-condicionado. Fiquei em um desses. Apesar de cansado, nem banho tomei. Queria aproveitar para andar sozinho pela área do batalhão, único lugar onde os jornalistas podiam transitar sem escolta. Já era hora do pôr do sol. Os últimos raios com aquele tom vermelho-amarelado iam anunciando, de soslaio, mais uma noite estrelada, que custava a escurecer.
O clima tropical do Haiti é agradável, o que aumenta a incoerência de tanta pobreza – e os meus questionamentos pessoais. Aproveitei a bonança e fui ter com o barbeiro do Brabatt, um civil haitiano, uma conversa que quase me custou os cabelos. Ele queria mesmo era fazer um corte à moda haitiana (que até agora não sei qual é) por algum trocado em dólar. Ficamos só na conversa, ele falando um português arrastado e eu arriscando frases no idioma local, o creole, um francês regionalizado e mais simples, adotado como idioma oficial desde a independência.
Jean Louis Richardson, de 26 anos, corta cabelos desde os 11 anos, é casado e não tem filhos. Ele usa o salário de US$ 100 para cuidar dos dois sobrinhos que moram com ele, pois o irmão está desempregado há cinco anos. “Os brasileiros sempre ajudam como podem, com dinheiro ou comida”, conta. Quando perguntei se já era hora de a missão de paz acabar, ele tirou o sorriso do rosto: “O Haiti não está pronto para assegurar a própria vida. Acho que isso levará mais de dez anos”.
Emendei a ida ao barbeiro à cerimônia de passagem de comando das tropas brasileiras de infantaria e engenharia. A cada seis meses, todos os militares no Haiti são substituídos – dos soldados aos comandantes. Afinal, uma missão de paz como essa é muito desgastante (física e psicologicamente) a qualquer um. Aliás, a chegada do 11º contingente era o motivo pelo qual eu estava lá. O convite para acompanhar uma comitiva do Ministério da Defesa que viajaria ao Haiti para esse evento partiu do Centro de Comunicação Social do Exército Brasileiro (Cecomsex). Após a formatura das tropas brasileiras, dormiríamos para madrugar no dia seguinte.
Na sexta-feira, a programação oficial incluía um roteiro apertado de visitas a diversas regiões de Porto Príncipe, com a intenção de apresentar, em um só dia, todas as ações brasileiras no país. Consegui escapar das atividades oficiais e ir ver de perto a vida em Cité Soleil. Duas viaturas da ONU ficaram à disposição para visitar o bairro mais pobre do país, onde vivem 300 mil haitianos. A viagem começou, de verdade, nesse momento.
Nosso grupo tinha dez pessoas. Apenas duas não eram militares – eu e o intérprete. Embora arriscasse algumas frases em creole, era bom ter alguém para ajudar em alguma “emergência”. Dos oito militares, sete tinham um fuzil nas mãos. Eu também tinha o meu – a máquina fotográfica. Ainda no caminho para Cité Soleil, descobri que ela podia machucar mais que um fuzil de verdade. Decidi, então, só fotografar quem pedisse ou permitisse.
Sair do Brabatt é outra viagem. Para chegar ao destino final, cruzamos uma região considerada “melhorzinha” pelo soldado que dirigia o jipão. Afinal, havia até um posto de gasolina e construções que não tinham sido destruídas pelos conflitos internos. No principal cruzamento, um semáforo piscava despercebido pelos motoristas. O odor de chorume aumentava conforme nos aproximávamos de Cité Soleil. O esgoto reinava insolente em grandes valetas a céu aberto, correndo ao lado das ruas, ora asfaltadas, ora de terra com pedregulhos – o que restou de casas e muros destruídos. Em uma avenida ocupada pelo comércio informal, a grande atividade econômica do Haiti, via-se muitos buracos no chão e nas paredes das residências, resultado da guerra entre gangues e exércitos paramilitares.
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A primeira parada foi no Centro de Nutrição e Saúde, mantido pelas Filhas da Caridade de São Vicente de Paula. Entramos sem bater. Os soldados esperaram do lado de fora. Encontrei no jardim a irmã brasileira Dulcimar Gonçalves de Azevedo. Nascida em Jardim do Seridó (RN), ela mora no país há oito anos e ensina às mães de Cité Soleil, e a outros bairros pobres da capital, a sutileza de se amar um filho. Irmã Dulcimar não dá entrevistas, mas topou conversar e apresentar o Centro. A condição – sem gravador, sem bloquinho, sem máquina fotográfica. Confiei na memória.
Logo na entrada, dezenas e dezenas de mães, com os filhos no colo, aguardavam a consulta dos três médicos que atendem gratuitamente. Para elas, estar ali já é uma vitória. A maioria das mães não se preocupa com a saúde dos pequenos. Em 2002, segundo dados da ONU, 54% da população haitiana vivia com menos de um dólar por dia e 46% estava subnutrida. Os bebês nessa condição passam a morar no Centro, conforme a disposição de vagas entre as 80 existentes, e recebem quatro refeições por dia até ficarem com peso e saúde adequados.
Irmã Dulcimar conta que muitas mães ali não sabem sequer quem é o pai de seus filhos. São mulheres, às vezes meninas, que tiveram seus filhos entre 14 e 20 anos. A maioria fruto de abuso sexual. “Elas não têm culpa, nunca quiseram o bebê. Então nós temos de ensinar tudo. Até a amar a criança.”
Antes da chegada das tropas da ONU, Dulcimar já morava em Cité Soleil e vivenciou toda a derrocada do presidente Jean-Bertrand Aristide, em 2004, que culminou na intervenção externa. “Antes, era dia e noite aquele barulho de tiro. De manhã, sempre tinha gente morta pelas ruas. Hoje melhorou bastante”, diz. Para ela, o Brasil é o grande responsável por essa mudança, mas alerta: “Às vezes ainda acontecem coisas horríveis de madrugada – morte com facão, estupro.”
Violência eu não vi de perto. Mas assisti a cenas miseravelmente dolorosas. Como quando duas crianças fizeram montinhos de terra, untaram com água suja, moldaram num formato qualquer e colocaram ao sol. Até que uma delas pegou o “bolinho” mais maduro e mandou boca adentro. Era o almoço daquele dia. Não tive reação. Eu estava ali para contar essas histórias, mas preferia que elas não existissem.
Em 2004, quando foi instalada a missão de paz, a insegurança e a incerteza de voltar para casa com vida dominavam os haitianos. O soldado Tailon Ruppenthal, que estava no primeiro contingente brasileiro no país, contou no livro Um Soldado Brasileiro no Haiti (Editora Globo) como reagiu ao encontrar um homem jogado no chão: “Achando que ele estivesse morto, toquei o corpo com a ponta do fuzil e então o cara fez um grunhido medonho. Na mesma hora senti um peso enorme no meu peito – ele estava vivo, mas já tinha ultrapassado o limiar. Literalmente, aguardava a morte. Sonhei muitas vezes com os olhos daquele cara.”
Hoje, muita coisa mudou. As patrulhas, sobretudo das tropas brasileiras, passam segurança para a população e reprimem o reaparecimento das gangues que atuavam à revelia do Estado. Isso fica claro caminhando pela cidade e conversando com as pessoas. O garoto John, com seus 13 ou 14 anos, fala até português aprendido com os militares. Quando entrávamos no carro para voltar à base, depois de uma visita ao bairro, John me cumprimentou gritando “brasileiro, brasileiro” e pediu para ligar a câmera de vídeo. Acatei o pedido sem perguntas. Ele queria registrar seu carinho pelo Brasil cantando Roberto Carlos: “Você, meu amigo de fé, meu irmão camarada”.
Assista clipe com imagens do Haiti e com John cantando Roberto Carlos:
Para o force commander da missão composta por 18 países, o general brasileiro Floriano Peixoto, a intervenção da ONU trouxe estabilidade e segurança para o país, agora em condições de começar a se reconstruir. “Daqui em diante, há condições de a comunidade internacional, outras agências e órgãos estrangeiros, dedicarem maior contribuição e apoio para que o país possa crescer”, diz.
Esse crescimento, na verdade, significa reconstruir do zero um país completamente abandonado, onde apenas 19% das casas têm rede sanitária e grande parte da população sofre com doenças como hepatite e malária. As instituições públicas simplesmente não funcionam. Não há energia elétrica em grande parte das casas e quando há iluminação pública, ela só funciona durante seis horas por dia. O lixo convive com as pessoas e disputa espaço com os carros no meio da rua – até a situação ficar insustentável e a própria população incinerar os restos ali mesmo, como se fosse um lixão.
Em uma dessas ruas, ainda em Cité Soleil, conheci uma simpática senhora de 57 anos. Ela nasceu em Les Cayes, cidade ao sul do Haiti, e mudou-se para a capital em busca de emprego. Dimenè Deluxe abriu as portas de sua casa sem cerimônia ou constrangimento. Pedi aos soldados para não entrarem – afinal não é nada agradável ver alguém com um fuzil no meio da sua sala. Do lado de dentro do portão, uma galinha suja e cansada desistia de se mexer para espantar os mosquitos, frequentadores assíduos da casa onde vivem Dimenè, dois filhos, uma enteada e três netos pequenos. O marido não estava em casa e ela não quis falar dele – talvez nem exista.
É ela quem sustenta a família fazendo crochê e vendendo pelas ruas de Porto Príncipe. Os filhos e netos passam o dia desocupados, em casa ou fazendo número nas ruas da capital. Dimenè teme pelo futuro dos pequenos, que não têm qualquer perspectiva de frequentar uma escola: “O Haiti só terá alguma chance quando resolver o problema dos jovens e das crianças”. Enquanto conversávamos com a ajuda do intérprete, os netos de Dimenè puxavam minha calça, pediam fotos e se impressionavam com a câmera. Como se precisasse, a avó se desculpava: “Aqui é todo dia a mesma coisa, quando vem alguém elas querem brincar”.
No cômodo de paredes sujas, há apenas uma cama de casal para todos, uma televisão quebrada e uma estante empoeirada. Geladeira é um luxo. A água chega de qualquer modo, menos encanada. Em algum momento, fiquei com um sentimento de culpa. O meu voo de volta ao Brasil estava garantido e eu tinha a segurança da geladeira cheia me esperando. No Haiti, as pessoas sobrevivem. Algumas, nem isso – já desistiram de viver. Depois que Dimenè parou de contar suas desventuras, foi a vez do filho Patrick, de 20 anos, perguntar ao repórter: “E você? O que pode fazer para nos ajudar?”. Ele só queria estudar ou ter um emprego. Ainda me culpo por ter saído de lá sem ter uma resposta.
Voltei para a base brasileira pensando nisso, inclusive no jantar. Até que as atenções se voltaram para o briefing da patrulha daquela noite em três urutus – aqueles blindados parecidos com tanques de guerra. Nós acompanharíamos, desde que devidamente equipados com colete à prova de balas e um daqueles capacetes azuis. Ainda não sei bem se por segurança ou para causar furor nos jornalistas.
Saímos do Brabatt às 20h30. A sirene ligada anunciava que a patrulha estava nas ruas. Quem visse um trambolho desses no Brasil entraria em choque, como se houvesse a iminência de uma guerra. Os haitianos já se acostumaram. Em uma das vias, novamente em Cité Soleil, havia uma lona com duas televisões debaixo – uma passando jogo de futebol e outra, um filme qualquer. Pelo menos 30 pessoas estavam vidradas na programação enquanto os urutus passavam. Nenhuma delas sequer olhou para trás, afinal, a televisão era a novidade.
Um tempo depois, o comboio de urutus parou e nós descemos. Muita gente dormia no meio das ruas. O calor sufocante, aliado à falta de higiene dentro das casas, torna o chão duro mais agradável. Em alguns lugares, famílias inteiras dividiam a mesma calçada. Mesmo assim, ninguém recusava um sorriso quando a saudação “bon soir” (boa noite) era dita pelos jornalistas ou pelos soldados.
Patrulha concluída, nenhuma ocorrência, volta para a base. A segunda noite em Porto Príncipe não teve fim. Voltaríamos para o Brasil no primeiro horário da manhã seguinte. Era preciso dormir. Mas eu não parava de pensar no Haiti.
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