Poucas vezes li uma declaração de amor, de paixão, tão profunda como no livro Soledad no Recife, de Urariano Mota. Uma paixão platônica por um personagem que conta tudo em primeira pessoa, difícil de acreditar que narrador e autor não sejam a mesma pessoa, embora ele garanta que sequer tenha chegado a falar com ela.
Soledad no Recife é um longo poema em forma de prosa, narra com paixão e competência um dos episódios mais sórdidos em um tempo de muita sordidez.
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Soledad! Quem era Soledad? Quem é a Soledad deste romance de Urariano?
Mais fácil começar pelo anti-Soledad, José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo, um marinheiro militante da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, no Rio de Janeiro. Orador que conseguia inflamar seus companheiros da Marinha, foi um dos principais líderes de uma revolta dos marinheiros no início de 1964, um dos fatores para a reação da direita que culminaria na derrubada do presidente João Goulart em 31 de março/1o de abril daquele ano, quando teve início uma ditadura que se tornaria ainda mais cruel.
Anselmo, o cabo famoso, tornou-se militante de uma das organizações de esquerda que preconizava a luta armada, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Consta que foi preso e, na cadeia, bandeou para o outro lado, virou pupilo do truculento delegado Fleury, tornou-se policial infiltrado na própria VPR.
E foi esse cabo Anselmo que, com o codinome de Daniel, entregou seis companheiros da VPR para a morte, em Recife, janeiro de 1973, durante o governo Garrastazu. Já havia prisões e mortes em sua história. “Nunca matei ninguém”, diria muito mais tarde. Talvez não, seu papel era entregar para torturadores/matadores. Era Judas, era Silvério dos Reis. Desta vez, foram seis pessoas de uma só vez e, pior, entre elas Soledad Barrett Viedma, uma bela paraguaia de 28 anos de idade, mulher do próprio cabo Anselmo e grávida dele. Mulher e filho, um feto ainda, entregues aos matadores por um sujeito que em um tempo de infâmias foi um dos mais infames.
Mas esse romance vai muito além. Descreve apaixonadamente a Soledad, Sol, sublime revolucionária que por azar foi companheira do espião infame que não a merecia, já pensava o narrador desde o início.
Urariano escreveu, repito, um romance apaixonado, um livro de história, um livro esclarecedor e comovedor. Utilizando a ficção, datando sua escrita após 37 anos, nos coloca por dentro dos acontecimentos que culminaram com a chacina da Chácara São Bento, local da região metropolitana do Recife no qual teria sido encontrado um “aparelho” de um grupo de “terroristas”, que resistiu à prisão e foi exterminado a tiros, pela equipe do delegado Fleury. Não foi isso. As vítimas foram presas e levadas para lá, onde se montou uma farsa macabra. Os mortos tinham marcas de tortura e não de tiros. Aos pés de Soledad de olhos abertos estampando terror, seu feto, filho do cabo Anselmo.
Para quem não sabe – isso não está no livro -, o cabo Anselmo ainda vive, escondido, com nome falso, aposentado pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Mas, recentemente, um advogado pleiteava na Secretaria Especial de Direitos Humanos, do governo federal, indenização devida às vítimas da ditadura…
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