Desde muito jovens eles se ajeitaram como se ajeitam alguns casais. Ele yin, passivo, delicado, magro, noturno, escuro e mais frio. Ela yang, mais dura, diurna, luminosa e quente. Ele foi para medicina, endocrinologia, encantado com a ideia de lidar com hormônios, com a possibilidade de atuar sobre células e, através de seus receptores hormonais, controlar o corpo. Ela para a psicologia, fascinada com a ideia de conduzir mentes.

Tocaram o barco. No princípio, como tantos, imersos no amor e encharcados de sonhos. Com seus confortos e suas certezas, foram tecendo suas vidas. Mas os tecidos com o tempo podem esgarçar. Sobretudo quando lá, mais tarde, se olha para dentro de si.

O que havia ele feito de seus sonhos de endocrinologista? Nada. Cruamente, falara com gordos. Bem verdade que com gordos variados, mas, essencialmente, falara com gordos. Uns ansiosos, outros genéticos, os compulsivos e a grande manada dos gordos gulosos. Não obstante a variedade, sempre usava a mesma ladainha de metabolismos, biotipos e dietas. Seguia então pela lengalenga das calorias, carboidratos, lipídios e proteínas. A única coisa que deveria ter dito para todos era: Fecha a boca, pombas!. Ele não usaria outra palavra mais áspera.

E foi assim que sonhou um brevíssimo sermão, espelho de sua frustração: Fecha a boca, pombas! É só pensar em cachorro, se não der comida emagrece, pronto! Fecha a boca, pombas! Mande um bolachudo-índio-mexicano-gordo-genético pra Somália e veja se não vira um palito. Fecha a boca, pombas!. Esse discurso plasmou sua mente.

Certo dia, um gordo lhe perguntou: Quantas calorias tem uma caixa de Bis?. Foi a conta, a faísca pro descarrego. Não come Bis, pombas! Fecha a boca, cacete! E por aí foi, soltando os cachorros no atônito gordalhaço que, desarvorado, sumiu. Sumiu, mas voltou meses depois. Feliz da vida porque fechou a boca e perdeu doze quilos. Um sucesso. Foi assim que nasceu a sua indignação terapêutica, sintagma que deu nobreza à sua chã intolerância com os rechonchudos. Quanto mais exaltado ele ficava, mais o respeitavam. Às vezes, ele até exagerava. É melhor comer peixe de águas quentes ou águas frias?, perguntava um desavisado obeso. Não come o peixe, cacete!, trovejava o doutor. Enfim, nexo em sua vida.

Que guinada! Confiança, sucesso e dinheiro, juntos. Melhor ainda, consultas curtíssimas e nada de explicação.

Tudo isso, claro, transbordava em sua casa. Ele, até então um insosso, deu pra falar alto, dar palpite nas coisas, regurgitar sucesso e gastar dinheiro. Tudo isso ali, ao lado dela, que seguia conduzindo suas terapias de casal. Como se não bastasse o amargo do contraste, ele ainda buzinava na orelha dela que os clientes dela pagavam a limpeza de consciência, como quem paga limpeza de pele. Querem absolvição e compressa morna, nada mais. É preciso criar, mudar, chutar o balde.

Como podia ela aguentar tanto sucesso assim tão perto? Não podia. Ruminou o assunto por meses e chegou à conclusão que não aguentava mais o marido, a profissão e a sogra. Nessa ordem. No impulso ainda sentenciou a empregada, que a dominava há anos.

Quando ele viajou, ela chutou o balde. Noutra ordem. Despediu a empregada e arrasou com a sogra, na varanda da qual ainda deixou três malas e sete caixotes com a tralha dele. Falou com um sinistro advogado. Trocou o telefone e o celular. Chamou o chaveiro e trocou as chaves da porta e do portão. Tudo isso em três dias.

Dias depois explicou tudo para os filhos, já maduros, e arrematou dizendo: Assim é que se resolvem estas coisas, não é com essas terapiazinhas de merda. O mais velho pediu compostura, paciência e muita serenidade. Já o mais novo considerou que esta era a quinta vez que isso tudo acontecia e perguntou que cara tinha feito o chaveiro. Ela sempre achou esse caçula muito insolente. Desde pequeno.


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.