“O cinema foi para mim, naquele momento, uma forma fundamental de sobrevivência”. A declaração da cineasta carioca Lúcia Murat faz referência ao período em que ela deixou a prisão, após três anos e meio, por resistir à ditadura militar. “Quando sai [da prisão] era como recomeçar a vida”, relembrou.
Nessa busca pela superação, a diretora produziu filmes que têm como traço comum a expressão de diversas formas de violência. A cineasta é a homenageada deste ano da Mostra Cinema e Direitos Humanos no Hemisfério Sul, que começa no próximo dia 4, na capital paulista, e tem como tema desta nona edição os 50 anos do golpe militar de 1964.
Lúcia Murat foi militante do movimento estudantil e fez parte da resistência armada ao regime militar. Foi presa pela primeira vez em outubro de 1968, em um congresso estudantil, mas ficou apenas uma semana detida.
Com a publicação do Ato Institucional 5 (AI-5), em dezembro daquele ano, Lúcia passou a viver na clandestinidade, mas foi encontrada e levada, em 1971, para o quartel da Polícia do Exército, onde funcionava o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi).
“Fui torturada por dois meses e meio”, contou. Espancamento, choques elétricos e abuso sexual foram algumas das torturas sofridas.
O curador da mostra, Rafael de Luna, lembra que a escolha do tema para esta edição corresponde também a um contexto atual.
“Temos visto algumas manifestações com alguns absurdos, pedindo intervenção militar. Parece-nos muito pertinente trazer esse tema para uma discussão de cinema e direitos humanos”, declarou.
Avalia que a filmografia selecionada de Lúcia Murat possibilita um diálogo com as obras escolhidas para a mostra competitiva. “Ao mesmo tempo em que a diretora homenageada é uma cineasta, cuja obra também é identificada com essa questão política, ela própria foi uma presa política”, apontou.
Com entrada grátis, o evento apresenta filmes que abordam temas relativos aos direitos humanos, à população LGBT e enfrentamento da homofobia, às questões culturais e territoriais da população indígena, aos direitos da pessoa com deficiência, entre outros.
As sessões são divididas entre Mostra Competitiva, Mostra Memória e Verdade, Mostra Homenagem Lúcia Murat e Sessão Inventar com a Diferença. Serão 41 filmes, todos com sistema closed caption e sessões que incluem audiodescrição, voltadas para pessoas com deficiência visual. A mostra é promovida pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR).
O filme que abre a mostra é o Que bom te ver viva (1989), de Lúcia Murat. Na Mostra Homenagem, também serão exibidos Doces Poderes (1996), Brava gente brasileira (2000) e a Uma longa viagem (2011). Para a Mostra Memória e Verdade, foram selecionadas películas voltadas ao golpe de 1964, abordando questões sobre a ditadura e o contexto político da época.
Os documentários Setenta (2013), de Emilia Silveira Brasil, e Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho, estão entre as escolhas da curadoria. “Uma mostra que reúne direitos humanos e cinema permite não somente ser informado do que se trata, mas trabalha com emoção”, declarou a diretora.
De Luna destaca, como uma novidade desta edição, a mudança do nome da mostra, substituindo América do Sul por Hemisfério Sul. “Isso demonstra outro critério da curadoria na mostra competitiva.
Agora, estamos recebendo filmes de outros continentes. Teremos países da Ásia, da África, de países como Egito, Índia, Jordânia”, apontou. Na avaliação do curador, a mudança amplia o caráter da mostra como uma contribuição para produção contemporânea, ao trazer filmes que não costumam chegar ao circuito comercial.
Além disso, ele acredita que exibir filmes de países com universos culturais tão distintos também contribui para o debate sobre direitos humanos. Os melhores filmes, entre os 24 selecionados para a competição, serão eleitos por votação da plateia.
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