A silenciosa morte do último parente de Gabriel García Márquez em Aracataca

Nicolás Arias, primo de Gabriel García Márquez, em sua varanda em Aracataca - Foto: Vinícius Mendes
Nicolás Arias, primo de Gabriel García Márquez, em sua varanda em Aracataca – Foto: Vinícius Mendes

“Ainda estamos vivendo cem anos de solidão”, lamentou-se Nicolás Ricardo Arias trinta e um dias antes de sua abrupta morte em uma das esquinas de Aracataca. Se havia algo de tristeza na maneira como cobria o peito com uma camisa abarrotada pelo sono do meio-dia, nos olhos que insistiam em continuar fechados mesmo depois da minha presença repentina em sua varanda e no sorriso que precedeu a constatação sobre o abandono da cidade, ele provavelmente passou por esta vida sem conhecê-la. Tinha 78 anos quando o visitei, na terça-feira do dia 21 de outubro deste ano, e com essa idade se foi no sábado (22), sem lembranças emocionadas de ninguém nem notas de rodapé nos jornais de seu país.

Carregava o nome do seu avô, general Nicolas Márquez, o mesmo de Gabriel García Márquez, seu primo de primeiro grau de quem mantinha fotos, livros assinados e uma estranha veneração. O mundo paralelo de nosso diálogo foi mobiliado pela rua alagada da chuva do dia anterior, pelos gritos de duas meninas que dançavam na casa ao lado, por sua esposa, que preferia comer bananas a gastar suas palavras em nossa conversa, por quatro cadeiras de praia nitidamente idosas e por um homem qualquer que ganhava dinheiro transportando pessoas em uma bicicleta. Contou-nos que estava tendo dificuldades para ler a biografia do seu primo – escrita por um inglês que surgiu em sua casa numa tarde qualquer de fevereiro e resolveu colocar seu nome nos agradecimentos da obra – porque não sabia ler. “Não estudei e, para falar a verdade, nunca gostei de ler e escrever. Deixei essas coisas para o Gabriel”, disse-me em meio ao repetitivo movimento do seu braço direito. A vida também tratou de separá-los: permaneceu durante a vida em Aracataca, de onde saiu apenas para ser caminhoneiro em Ciénaga, estivador em Barranquilla e para ajudar no asfaltamento das estradas de Cartagena de Índias.

Entre as várias histórias que lembrava da época em que seu primo era vivo, a mais intrigante, sem dúvidas, foi sobre uma ligação que determinou o seu voto em uma consulta popular que o ex-prefeito de Aracataca Pedro Sánchez Rueda organizou em 2006. Rueda tinha regressado há pouco tempo da Europa inclinado em mudar o nome da cidade para Macondo, em referência ao principal livro de Gabo, Cem Anos de Solidão, publicado em 1967. Um dia antes da votação, o prefeito subiu no teto de um Dodge Dart antigo repleto de caixas de som e começou a fazer publicidade própria de sua ideia. “No dia de ir votar, liguei para o Gabo pela manhã e disse que a opinião dele iria determinar meu voto. Então ele me respondeu: ‘Nicolas, eu não quero influenciar sua decisão, mas lembre-se: eu nasci em Aracataca e não em Macondo’. Desliguei o telefone com meu voto decidido”, disse, sorrindo.

Em Aracataca todo mundo o conhecia: a mulher que faz a segurança da única estação de trem, o professor de literatura da Biblioteca Municipal Remédios, La Bella, as cozinheiras dos restaurantes, os condutores de “biketáxis”, os velhos das praças e as crianças que esquecem do tempo jogando futebol nas ruas maltratadas. “Onde mora Nicolás Arias?”, perguntava-os. “O primo do Gabo?”, respondiam, para então explicarem o caminho. Depois, já despedindo-me, diziam: “ele é o último parente vivo do Gabo em Aracataca. Tenha sorte”.

Soube de sua morte oito dias depois do sepultamento, no cemitério rodeado pela plantação de bananas de Aracataca, por meio de uma de suas filhas, Cilene Arias. Contou-me que ninguém compreendeu bem o episódio de seu falecimento, ocorrido depois de uma dor no mesmo braço direito que o levou ao hospital e a uma parada respiratória na noite do sábado (22). “Eu fiquei triste porque não li nada na imprensa. Meu pai foi o último familiar do Gabo aqui e sempre foi muito amável com as pessoas que iam até a sua casa por causa desse parentesco”, disse à Brasileiros. Por fim, disse-me que fui o último jornalista deste mundo a visitá-lo, em uma das tardes mais quentes e inesquecíveis da história da minha vida, da qual saí sem considerar que chegaria o dia em que Nicolás também não teria uma segunda oportunidade sobre esta Terra.


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