A expressão “Virar uma Venezuela” – alardeada nas últimas manifestações contrárias ao PT – é complexa. Não é possível responder rapidamente qual o sentido dessa frase, levando em conta que a dinâmica política, econômica e social do país vizinho é absolutamente distinta da brasileira, sem levar em conta os processos históricos desde a colonização, realizada por outro império. “Essa definição é muito ambígua, porque a Venezuela atual abrange comportamentos e atitudes diversos. A Venezuela não pode ser medida unicamente pelo crivo do chavismo. Esse estigma foi apropriado pela oposição brasileira para acusar o governo brasileiro de ser bolivariano no sentido negativo praticado pelo chavismo. Virar uma Venezuela pode significar assumir valores contrários à democracia e alguns aspectos positivos desenvolvidos em torno das políticas sociais, e aí a pergunta é: porque não virar uma Venezuela então? Eles tiveram sucesso nas políticas inclusivas que devem ser sentidas na sociedade”, diz o professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP).
A próxima edição de Brasileiros tentará explicar um pouco do significado dessa expressão e, para ajudar nesta compreensão, deixamos abaixo a entrevista com o correspondente do jornal Folha de S. Paulo em Caracas, Samy Adghirni, recém-chegado de um trabalho ainda mais árduo: ser jornalista no Irã. Leia trechos da conversa a seguir:
Brasileiros – O que você enxerga de semelhanças entre os governos do Brasil e da Venezuela, se é que existe alguma semelhança?
Samy Adghirni: Eu tendo a achar que não há nenhuma semelhança significativa. De vez em quando os discursos convergem, mas isso é muito raro e acontece em contextos específicos, como em algum evento de integração regional, ou alguma pauta ligada a temas externos, como a defesa da Palestina, defesa da Argentina no caso das Ilhas Malvinas, ou seja, em alguns casos é possível que a retórica se encontre. Agora, no cotidiano desses governos, eu acho que são perfis muito distintos de trabalhar, de governar, de lidar com a economia, reflexos, pureza de governo, a própria essência, já que, no Brasil, o PT está no poder desde 2003 e sempre foi um partido da continuidade e não da ruptura, então é um partido que está acostumado a negociar, até por sua base sindical forte. O Lula mesmo é um cara que desenvolveu sua astúcia política nesse jogo dos sindicalistas, que precisam dialogar com os patrões e com sindicatos de dentro e de fora do país, o que é um perfil completamente diferente do “Movimento pela Quinta República” da Venezuela, que desde sempre tinha a ideia de ruptura com as regras e promover um acerto de contas com a história. Se você lembrar a primeira posse do Hugo Chávez, ele faz o juramento e depois, no discurso, ele diz: “juro por essa constituição moribunda…”. Então, isso já dá uma ideia de como são as coisas na Venezuela. Eu poderia dissertar horas sobre as diferenças entre os dois momentos, mas, respondendo a sua pergunta, as semelhanças são muito, muito modestas.
Aqui no Brasil e também na Venezuela nós temos uma cobertura midiática muito complexa, tanto contra como a favor. Há algo que te chame a atenção, especificamente, no governo venezuelano?
Samy Adghirni: Você toca em um ponto muito interessante que é a cobertura da mídia. Eu passei os últimos três anos em um país que consegue ter uma imagem ainda pior que a da Venezuela, que é a República Islâmica do Irã. As pessoas tem uma opinião muito negativa sobre o Irã, mas também porque é um assunto muito distante da realidade das pessoas, é um país muito abstrato, com um conhecimento médio do brasileiro muito pífio. Por isso eu até escrevi um livro sobre o Irã [Os Iranianos, Editora Contexto, 2014]. A Venezuela, ao contrário, é mais perto, é um vizinho, com temas que não nos afetam, mas que criam um imaginário mais próximo. Isso alimenta uma situação muito complicada de que todo acha que é autoridade para falar de Venezuela, todo mundo acha que pode opinar sobre bolivarianismo. O cara nem sabe em que época viveu o Simón Bolívar e acha que o Brasil está virando bolivariano. São raciocínios curtos e pouco embasados que, infelizmente, se traduzem na cobertura da mídia. Eu admito que é muito difícil fazer uma cobertura da Venezuela e essa é a minha grande missão aqui, porque o que eu considerar isento vai ser considerado pró para um e contra para outros. Mas eu posso te dizer que a Venezuela, como qualquer outro país, tem nuances: nem tudo é preto e nem tudo é branco, então nem tudo é ruim e nem tudo é bom. Uma cobertura de mídia, por definição, é um recorte, e o nosso papel é ampliar esse recorte para dar uma ideia do cenário, mas é um país difícil de cobrir por causa da polarização das opiniões. Encontrar um analista de petróleo, que é uma commodity importantíssima no mundo, os ovos de ouro do país, é impossível. Um cara contrário ao regime vai dizer que o governo acabou com a indústria petrolífera venezuelana, que é um trabalho de incompetentes, aí o outro, favorável, vai dizer que a situação atual é reflexo dos desmandos que aconteceram na Quarta República e que era preciso uma correção de rumo, etc. E os dois estão certos, mas como eu vou traduzir isso para o leitor brasileiro? É muito difícil. Então cabe a nós, jornalistas e acadêmicos, explicar um pouco essas coisas.
A oposição brasileira citando o governo venezuelano como um exemplo do que o Brasil “não quer virar” teve algum eco na política da Venezuela?
Samy Adghirni: O tema da eleição brasileira esteve presente aqui, apesar de não ter sido tão importante quanto a decadência dos concursos de miss, que esse sim foi um assunto de alcance nacional. Mas, evidentemente, o tema da eleição presidencial do Brasil foi martelado pela imprensa e as pessoas falaram muito. A oposição ouviu esse discurso brasileiro de que “vamos virar uma Venezuela” e falava algo do tipo: “vocês estão loucos para virar o que a gente virou aqui, né?” ou “olha, tomem cuidado com esses governos de esquerda porque senão vai acontecer a mesma coisa que aconteceu aqui. É tudo farinha do mesmo saco”. Tem um pessoal da venda da esquina da rua onde eu moro que, toda vez que eu vou lá, os donos tentam me convencer de que o Brasil precisa tomar cuidado e tal, e eu fico pensando que é legal discutir política, mas tem dias que eu só quero comprar meu tomate e ir embora (risos). A mídia estatal, por sua vez, fez campanha aberta para a Dilma Rousseff e deu uma forçada de barra para dizer que ela seria um apêndice dos movimentos venezuelanos, de justiça social, que trabalham para a soberania e o bem-estar para os povos latino-americanos, que são contra o imperialismo e contra os especuladores do feroz sistema de comércio internacional. Então, dos dois lados houve um raciocínio raso de criar semelhanças que não são fundamentadas. O chavismo fez muita propaganda da Dilma esperando que ela vencesse até para ajudar o Nicolás Maduro, que vive uma situação interna muito complicada, e dá para notar certo movimento voltado para a agenda externa, ou seja, coisas que ele não consegue resolver na agenda interna. Mas o pessoal da oposição ficou alertando o Brasil, porque eles consideram que o governo brasileiro é o único capaz de ser interlocutor de um diálogo ou falar ao Maduro as coisas que eles acreditam que precisam ser ditas. O novo articulador da oposição, Jesús Torrealba, parabenizou a Dilma Rousseff depois da eleição, mas disse: “presidenta, assuma a função que lhe cabe, que é ser a líder da América do Sul”. Esse é o tom.
Brasileiros – Como a postura do Brasil é vista tanto pela oposição quanto pelo governo venezualano?
Samy Adghirni: A oposição venezuelana é muito ressentida em relação ao nosso País e considera que o Brasil não é um player neutro nessa história, e claro que há uma verdade nisto. A oposição da Venezuela cobra do Brasil uma maior intervenção e gostaria muito que o governo brasileiro conversasse com o Maduro sobre o Leopoldo López, sobre os estudantes que são presos, sobre os processos das trocas dos membros do Conselho Nacional Eleitoral, que é um órgão extremamente poderoso e há indícios de que o governo vai usar todas as suas ferramentas semilegais para ter o domínio completo sobre o CNE, um órgão muito importante, porque ainda que tenha um golpe de Estado aqui, ele tem poder de veto de qualquer coisa, de constituição, inclusive.. A oposição venezuelana pede ao Brasil algo como “não deixa esse cara dominar tudo. Onde está a democracia? O equilíbrio de poderes?”. O Brasil, por sua vez, jura que é isento, que está disposto ao diálogo, acha que sua mediação foi muito útil durante os protestos do início desse ano e que não é porque não se fala dessa mediação que ela foi fracassada. Quando os diplomatas são questionados sobre a libertação do Iván Simonovis – um policial preso desde 2004 que estava muito doente, praticamente morrendo na prisão e foi solto há um mês e meio para ser tratado em casa – eles dizem que é fruto direto da negociação brasileira, claro, com Equador e Colômbia, no primeiro semestre desse ano, e que eles não precisam ficar fazendo festa, soltando rojão por esta conquista, porque seria tão contraproducente quanto criticar e fazer cobranças acima do tom.
E os chavistas?
Samy Adghirni: Pelo lado do chavismo, há um profundo respeito pelo Brasil. Olham o país como um “amigão”, e eu ainda interpreto que eles apreciam o fato de o Brasil ser, ao mesmo tempo, um país grande, uma potência econômica, que transita nos fóruns internacionais com muita desenvoltura e que, mesmo assim, continua muito próximo dos países da chamada ALBA (Aliança Bolivariana para as Américas).
As elites da Venezuela ainda reagem ao governo esquerdista do Maduro, já que o chavismo está no poder desde 1999?
Samy Adghirni: Eu escrevi um texto recentemente na Folha de S. Paulo dizendo que nós não somos uma Venezuela, mas as pessoas gostaram tanto da primeira parte do artigo que se esqueceram da segunda, em que eu falo que sim, nós podemos virar uma Venezuela, não pelos argumentos que as pessoas estão usando, mas pela ultrapolarização carregada de ranço e de cegueira entre categorias sociais. Nesse sentido, o Brasil está cada vez mais parecido com a Venezuela. Esse tipo de atitude de alguns setores vem, claro, de alguns setores que ficaram descontentes com o resultado das eleições presidenciais. Pessoas que estão inconformadas e usam argumentos chocantes para contestar esse resultado, como possíveis fraudes, impeachment, ajuda do Barack Obama. Isso é o que se vê na Venezuela. Vamos lembrar que a direita venezuelana se preparou muito mal para a eleição presidencial de 1998 e o Chávez ganhou. Quando isso aconteceu, eles se deram conta de que já era tarde, porque o Chávez era um cara muito habilidoso, com um apoio popular muito grande, ele conseguiu conquistar uma participação política das classes mais pobres, diminuindo os níveis de abstenção nas eleições, etc. Mas qual foi a reação da oposição? Dar um golpe! A oposição deu um golpe! O chavismo se radicaliza a partir de 2002. O Chávez pré-golpe é outro presidente, que sempre falou no Simón Bolívar, mas também sempre deixou o país aberto ao investimento estrangeiro, sempre disse que o dinheiro de fora era bem-vindo, que o governo iria garantir a segurança jurídica, a segurança física e dizia que os estrangeiros iriam ganhar dinheiro na Venezuela. E aí a oposição – em uma iniciativa extrema – dá um golpe militar com o apoio da mídia e do empresariado e, no mínimo, a anuência dos Estados Unidos.
Um golpe que durou um ou dois dias e terminou com aquela cena famosa do Chávez chegando de helicóptero ao aeroporto de Caracas repleto de pessoas o esperando.
Samy Adghirni: Exatamente. Mas veja só o que aconteceu dentro do golpe: as próprias Forças Armadas se racharam, porque muitos oficiais ou generais estavam apoiando, pessoal mais próximo do que podemos chamar de elite, e os soldados, a base do exército, contra o golpe, porque eles eram pessoas que moravam nas comunidades, cuja família se beneficiava de programas sociais e que tinham levado o Chávez ao poder. Os soldados não acataram as ordens nem de fazer mal ao Chávez. E aí ele voltou e os caras tiveram que engoli-lo, e ainda assim deram um golpe “petroleiro”, que foi parar de tocar completamente a indústria petrolífera e promover uma greve que não pedia melhores condições de trabalho, mas era nitidamente para ferrar o governo. Isso foi outra declaração de guerra. O argumento da oposição para isso é de que o Chávez deu um golpe também, em 1992, que não deu certo e por pouco não se transformou em um banho de sangue. Mas até hoje o ranço das chamadas elites é absolutamente chocante. Eu moro em um bairro em que, se um sujeito entrar em uma loja dizendo-se chavista, pode não ser nem atendido. Eu moro em um país onde a agente imobiliária que me ajudou a escolher um apartamento em Caracas disse que os pobres “são como animais” e que por isso “não deveriam poder votar”. Isso me deixou apavorado! O que aconteceu? Semanas depois eu estava vendo e ouvindo as mesmas coisas no Brasil. E eu fiquei ainda mais chocado. Nesse sentido, a “Venezualização” do Brasil está acontecendo, a radicalização das posições e a banalização do discurso do ódio e dos ataques. Uma “Venezualização” que vem de baixo e não de cima. Eu mesmo fui alvo disso: depois do artigo que escrevi na Folha de S. Paulo, um leitor me mandou um email dizendo assim: “Eu tenho uma [arma] ponto 40 e eu gosto de andar com ela por aí, beleza?”. Olha, que loucura! Como é que pode? Eu nunca pensei que aconteceria algo comigo assim. A gente sabe que existem problemas com jornalistas no Brasil, com alguns caras de rádios do interior que denunciam coronéis porque não gostam da forma como eles conduzem as cidades, se rebelam, coisas de poder, enfim. Agora, por uma opinião? Isso é absolutamente chocante. E no Brasil tem gente pedindo impeachment, ajuda do Obama. Aqui na Venezuela é parecido: as pessoas informadas com o fato de que, em todas as eleições, o povo continua escolhendo o governo atual. Talvez a situação mude no pleito parlamentar do ano que vem, já que a situação atual aqui é muito tensa.
O Simón Bolívar é tão cultuado quanto o Chávez ou a figura do “Libertador” só surgiu no espectro por causa do culto chavista a ele?Samy Adghirni: O Bolívar é muito popular, mas deve isso ao Chávez, que soube usar essa figura em benefício próprio. O símbolo em que se tornou o Bolívar faz parte desse culto do Chávez, mesmo que a figura do Bolívar seja polêmica e mais complexa do que parece, tinha uma relação muito boa com os Estados Unidos e flertava com o autoritarismo. O Bolívar sempre existiu aqui. A Praça Simón Bolívar, em Caracas, não foi obra do Chávez, assim como as universidades, as escolas que levam o nome dele também não são da época do Chávez. O personagem Bolívar, no entanto, adquiriu um aspecto muito maior depois do Chávez e eu arriscaria dizer que a figura do Chávez é muito mais presente do que a figura do Bolívar. Andar por Caracas é um bom exercício para isso: em todos os lugares têm cartazes com o rosto dele, está presente em todos os discursos políticos, nos raps que são feitos pelos militantes, nos programas da televisão estatal, na imprensa estatal, em todos os lugares. Eu fico pensando que, se eu fosse o Maduro, ficaria indignado com isso. O fantasma é muito mais vivo do que o presidente. O Maduro é um cara que só existe porque o “comandante” mandou. Mas e agora? É evidente que a figura do Chávez não vai ser sempre assim, por mais que martele na mídia, que as frases dele estampem camisetas, o curso natural das coisas é que a imagem dele se desgaste. O Maduro foi eleito, após a morte do Chávez, por uma margem muito pequena de diferença. O que dirá agora que a figura do Chávez está se distanciando no tempo e os problemas estão se agravando? É evidente a ineficiência do governo em várias áreas, especialmente na economia.
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