Flores artificiais

O AUTOR E SUA PRÓTESE
“Lembro de quando fui a um velho e respeitado médico homeopata. Meu pai me levou, eu era criança. Naquela época, já usava a mão ortopédica. O médico a segurou para tomar o meu pulso. (…) enquanto ia contando as supostas pulsações, ditava em voz alta a um assistente a receita que me curaria de todos os males”

“Existe uma antiga técnica suméria, para muitos a precursora das naturezas-mortas, que permite a construção de estruturas narrativas complexas a partir da soma de determinados objetos que, juntos, compõem um todo”, diz Mario Bellatin ao introduzir suas Flores.

A certa altura da narrativa, contemplando as duas páginas de “Gardênias”, presencia-se o casamento de Marjorie e Brian, a gravidez, o término do relacionamento e a mulher que Brian conheceu na piscina de seu novo prédio. Nota-se que o jardim onde o casamento se deu estava repleto dessas gardênias, mas também de “aves-do-paraíso e giestas de um amarelo intenso”. Ao se voltar para as “Aves-do-paraíso”, sabe-se que um juiz condenou à prisão perpétua um pai que inoculou o vírus da Aids no próprio filho, e que Brian e Marjorie se conheceram em uma discoteca no final dos anos 1980. Seguindo então até as “Giestas”, revela-se que foi Brian que inoculou o vírus em seu filho e que, preso, intui que é uma questão de tempo até ser morto.

É com a consciência da estrutura almejada em primeiro plano e com o domínio da concisão que Bellatin rege sua obra. Mexicano, filho de peruanos, o escritor estudou dois anos em um seminário antes de inclinar-se para a arte – em Lima, estudou comunicação e, em Cuba, cinema. Sem recursos para produzir seus próprios filmes, dedicou-se à escrita.

É essa formação fragmentada que parece encadear o estilo de sua literatura. Novelista experimental, imprime seus cortes narrativos (sua edição, se assim quisermos chamá-los) nos diversos livros publicados; muitos deles já vertidos também para inglês, francês e alemão.

Flores, vencedor do prêmio mexicano Xavier Villaurrutia em 2001, é o primeiro trabalho do escritor publicado pela editora Cosac Naify. Os pequenos capítulos do livro levam nome de flores e sua soma forma uma rede intricada, que estabelece a relação entre as histórias e constitui o todo. O universo de personagens é o da desconformidade; pessoas em busca de “sexualidades e religiões capazes de se adaptarem às necessidades de cada indivíduo”, poetas, mulheres impossibilitadas de engravidar, travestis, estudiosos de fármacos e inúmeras vítimas de deformações congênitas. É inevitável a associação que se traça entre o autor e um dos protagonistas de seu livro, um escritor com uma perna postiça – Bellatin foi também vítima de má-formação e possui uma prótese em um de seus braços. O autor, no entanto, nega que sua literatura seja autobiográfica, ela se desenvolveria melhor com a menor intervenção possível de sua parte, chegando mesmo a afirmar que não existe autor.

O tratamento editorial dado ao livro nesta edição brasileira torna-o mais atrativo. Com as costuras dos cadernos expostas, sem capa e dentro de um saco plástico – que poderia muito bem carregar material hospitalar. As páginas esverdeadas também aludem às assépticas paredes hospitalares vistas em “Begônias”, o verde que não muda “nos últimos trinta anos”. Ciente da brevidade e qualidade enxuta da prosa, Flores poderia ser justamente uma opção de leitura antes de uma consulta médica, dada a artificialidade dessas flores que por vezes enfeitam, mas não perfumam de verdade.


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