O artista do impossível

Foto: Triennale de Milão
Foto: Triennale de Milão

Um imenso vão parece ter sido preenchido na vida do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, aos 85 anos. Um vão central que liga a origem italiana de seus avós à sua própria existência brasileira e retorna à terra de seus ancestrais, fechando o ciclo do sonho daqueles imigrantes que desembarcaram em Vitória, no Espírito Santo, em 1880, em busca de um amanhã melhor. “Fico pensando se os meus avós me vissem aqui. Estou muito comovido e honrado, nunca pensei que isso pudesse acontecer um dia”, diz Paulo Mendes da Rocha para o público da Triennale de Milão, templo internacional do design. A instituição abriu as portas para uma exposição que abriga todas as fases de sua premiada carreira, incluindo o prestigioso Pritzker, de 2006, o principal  reconhecimento internacional da arquitetura. Técnica e Imaginação é o nome da mostra e representa duas faces da mesma medalha. Ou seja, se pode imaginar aquilo que se pode construir. “O problema técnico se resolve e a imaginação voa”, conta o italiano Daniele Pisani, curador da exposição, cujo fio condutor  fundamental se exprime no título do evento.

Capixaba de nascimento e paulistano de adoção, Paulo Mendes da Rocha percorre a exposição como um criador que reencontra as suas criaturas e com a “devida” distância no tempo e no espaço – pois ele não costuma revisitá-las e nem mostrá-las a quem o visita ou, se o faz, o faz a conta-gotas, em grande humildade – como revela um de seus engenheiros calculistas,  o português Rui Furtado, com quem trabalha no Museu das Carroças, em Lisboa. Passos lentos, olhar compenetrado, ele caminha por meio de croquis, plantas, maquetes, fotografias, esboços de desenhos e cálculos expostos em bancadas realizadas com concreto armado. Move-se com um algo de pudor, de perplexidade, como se todo esse material não lhe pertencesse ou tivesse sido, de alguma forma, violado depois de décadas de esquecimento, na escuridão dos arquivos. “Ele me deu carta branca. 95% de tudo o que pode ser visto chega de dentro do seu escritório. Eu abri as gavetas, os tubos, foi algo muito engraçado pois parecia que ninguém tinha visto aquilo antes, nem ele”, diz Pisani.

A exposição nasce de sua monografia sobre o arquiteto. E nela ele conseguiu revelar e relevar “cerca de 20, 30 projetos” do jovem recém-graduado Paulo Mendes da Rocha. “Esses trabalhos ajudam a conhecer a sua trajetória antes do Ginásio do Clube Atlético Paulistano, a primeira grande obra que lhe deu notoriedade, em 1958, três anos depois de receber o diploma de arquitetura”, conclui. Uma entrevista audiovisual com o arquiteto ajuda o visitante a entrar no mundo do brasileiro, nessa caça ao tesouro, a vasculhar suas prateleiras, a forçar a memória seletiva do arquiteto que não se autorreferencia nem se auto-reverência.

A quantidade de material produzido impressiona: ao todo são 200 desenhos e 150 fotos, documentos, objetos e a poltrona Paulistano, de 1957, além de revistas de época. No acervo trazido para Milão ainda está o projeto – finalista do concurso vencido pelo italiano Renzo Piano—do Centro Georges Pompidou, em Paris, raridade bem guardada na França. “Não consigo ver uma linha da minha trajetória. Eu não conhecia a minha história. Estou muito surpreendido. Tenho o privilégio de me deixar em paz. Não sou autoanalista”,  disse ele à Brasileiros, enquanto elogiava uma de suas obras como se a admirasse pela primeira vez, com destaque, como se ela fosse de um outro. O arquiteto realiza um inédito exercício de se ver diante de uma nova perspectiva. Nesse sentido, a exposição adquire o valor de um espelho multifacetado de Paulo Mendes da Rocha, “construído” ao longo de mais de meio século de carreira.

Um croqui ali, uma maquete aqui, um compasso lá, ao final, compõem ao visitante um mosaico aderente à sua imagem e semelhança do autor do estádio Serra Dourada e da Praça do Patriarca: ele é um homem que resolve problemas, com a ajuda dos fiéis escudeiros de turno, os engenheiros calculistas. Conquista na terra e tira do terreno toda a força de empuxo que precisa para alçar o voo de sua imaginação para “decolar” as suas obras, até para afundá-las no subsolo, como o Museu Brasileiro da Escultura, em São Paulo, ou suspendê-las do chão, no caso do MAM de Santos, elevá-las ao altar, como nos volumes da capela de São Pedro, em Campos de Jordão. Tudo é trabalhado com o rigor racionalista, usando a matéria prima “pobre”e em estado bruto, mas seguindo à risca o ensinamento primário do pai, engenheiro de portos e represas: o respeito à técnica deve ser compreendido como sinônimo de lógica estrutural. Arcos, rampas e varandas, traves e pilastras, volumes geométricos debruçados sobre o nada, de pé no vazio,  abertos para o céu recortam novos espaços para a coletividade e criam ambientes predispostos à integração.

Porém, mais do que o concreto armado – “uso o material que tenho que usar, se for tijolo, dependendo do projeto, pode cair tudo”, diz ele, com fina ironia–,  existem pontos de contato muito claros entre as suas diferentes obras. São vergalhões de ferro, vigas de aço, lajes de concreto, de grande espessura, que se unem através de seus conceitos cardeais: a técnica para decifrar a complexidade da questões – como uma chave-mestra para abrir novos caminhos–; a coerência ética de seus princípios inabaláveis; a contemporaneidade de suas ideias; a transformação do território público ou privado em bem comum. Todos eles são elementos, abstratos e reais, presentes em suas criações, praticamente todas no Brasil, principalmente, em São Paulo.

Como Oscar Niemeyer, Paulo Mendes da Rocha era politicamente de esquerda, nos anos da ditadura militar. Mas não deixou o País nem construiu uma carreira no exterior. Ao contrário, foi caçado pelo AI-5 e sofreu a destituição da cátedra na Universidade de São Paulo — lecionava na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo—e, quando teve dificuldades para trabalhar, desenhou casas com as quais tem uma relação especial. “A casa, antes de mais nada, é uma escola de arquitetura, por excelência, para qualquer criança. Você nasce numa casa fechando porta, abrindo porta, ouvindo a chaleira fervendo o café. A casa, em geral… eu não gosto. A habitação contemporânea é o edifício. Vemos isso muito bem nas cidades europeias, todos habitando casas que já foram de outros. A casa não é feita para esse ou aquele. Portanto, a casa foi feita para se viver. A cidade é feita de casas. Museus e teatros são exceções. A cidade é o objeto da arquitetura contemporânea”,  diz Paulo Mendes da Rocha.

Para ele, a natureza intocável (não vista apenas como paisagem, mas como uma série de fenômenos) e averticalização urbana não são um tabu. E, nesse caso, até o elevador é interpretado como “um transporte público numa cidade que é feita para que possamos conversar”, um metrô que não corre na horizontal, mas de cima para baixo e vice-versa, a todos os efeitos. Paulo Mendes da Rocha vai fundo, literalmente, ao defender a intervenção e a solução subterrânea na preparação do terreno para a realização do Museu Brasileiro da Escultura. Ali, criou-se a metamorfose de uma natureza imaculada, até aquele momento. “As esculturas, em sua grande parte, foram feitas para ser vistas ao ar livre. Foi uma grande emoção escavar na terra que estava lá havia 50 milhões de anos”, disse ele, na Triennale de Milão.

As grandes questões do futuro inquietam o arquiteto. A superpopulação do planeta e as soluções para o problema demográfico e do planejamento urbano passam pela boa prática da arquitetura. “O que vejo como esperança é a formação de uma consciência do tipo cultura-popular sobre a fragilidade do planeta, como um pequeno pedaço de matéria, perdido no universo, submetido às leis da mecânica celeste, ou seja, a consciência sobre a nossa fragilidade, e de sermos responsáveis pelas nossas próprias vidas no universo.” E, pela mente do ilustre visitante da mostra em sua homenagem, passa o filme da resolução das questões por meio da afiada e obsessiva técnica para levar adiante uma ideia. “O problema é a oportunidade para fazer brilhar o êxito da técnica. O arquiteto não faz a obra para si. O que espero é que o povo goste. A diversão não é feita por coisas. Ela é feita com a imaginação do homem e é necessário ter uma visão erótica da vida”, diz ele. E vai mais além: “A graça do que fazemos, se é que tem alguma graça, porque nasce na nossa mente antes que se faça… Você pode dizer que a cidade sempre existe para o homem antes que ela seja feita. Veneza… Vamos fazer uma cidade aqui. Um lugar impossível. Mas a mercadoria chega de navio no coração da Europa, entrando pelo mar Adriático, tem de ser aqui, nessa porcaria dessa lama. E fizeram o que se fez. A história do homem é sempre essa”, conclui o arquiteto.


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