Vinte e cinco mil pessoas por noite, lotando as arquibancadas montadas em um amplo terreno ou acompanhando em telões, entusiasmadas, as apresentações de 24 grupos musicais, com suas fantasias coloridas, coreografias elaboradas e muito ritmo e dança no pé. Se alguém pensou em algum show de samba ou pagode, festival de boi-bumbá ou apresentação de grupos de axé ou qualquer outro ritmo da moda, errou completamente. Brasileiros acompanhou, durante três noites no final de agosto, o 8º Festival Cururu Siriri de Cuiabá e descobriu uma das manifestações culturais mais antigas e originais do País. Na verdade, o Cururu e o Siriri representam um estilo de música e dança que permaneceu preservado durante quase três séculos, graças ao isolamento por que passaram Cuiabá, o Pantanal e boa parte do Mato Grosso, desde a segunda metade do século XVIII, depois que o ouro no Rio Cuiabá se esgotou e de aproximadamente 40 anos de exploração predatória.
São 250 anos de uma cultura original, surgida nas povoações ribeirinhas do rio Cuiabá, onde escravos, indígenas e as camadas mais pobres da população da Baixada Cuiabana buscavam alguma forma de recreação, onde o canto, a música e a dança tinham o papel principal. Primeiro foi o Cururu, gênero musical no qual grupos de homens – tocando a recém-inventada viola de cocho, instrumentos que só existem na cultura cuiabana e pantaneira -, se apresentavam em reuniões caseiras, ao fim de um dia de muito trabalho ou em fins de semana, cantando melodias em que o cotidiano era o assunto principal. Em pouco tempo, as mulheres, que passavam a maior parte do tempo preparando a comida e as bebidas consumidas pelos homens, reivindicaram seu espaço. E surgiu o Siriri, dançado pelas mulheres, “com vestido de chita e pé no chão”, como gosta de dizer o professor Moisés Martins, secretário adjunto de Cultura de Cuiabá e um dos maiores estudiosos da cultura cuiabana. Ele explica que o Cururu, até hoje, é tocado, cantado e dançado por homens que formam um círculo fazendo rodízio entre solistas e cantadores, como uma espécie de desafio musical.
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O Siriri, hoje dançado por homens e mulheres, incorporou elementos das culturas africana, indígena e portuguesa. O ritmo, por exemplo, é africano, já a marcação ritmada com um dos pés, durante as evoluções, é claramente indígena. Finalmente, os giros para um lado e outro, com o bater das mãos entre os pares, é português, lembrando os movimentos do Vira, por exemplo.
Os dois estilos musicais foram rapidamente incorporados às igrejas pelos jesuítas, que consideram as manifestações como uma boa maneira de trazer e manter a população nas igrejas. Tanto o Cururu quanto o Siriri passaram a ter santos padroeiros e suas músicas ganharam um forte contexto religioso e de oração. Depois da expulsão dos jesuítas, quando o ouro já tinha acabado e Cuiabá se tornado uma cidade perdida nos confins do Mato Grosso, as igrejas continuaram a acolher o Cururu e o Siriri, embora as festas passassem a se realizar mais nas casas e nos quintais da periferia e das comunidades ribeirinhas. “O Cururu e o Siriri foram os bálsamos que curaram as perdas e o esvaziamento de Cuiabá com o fim do Ciclo do Ouro”, explica Mário Olímpio, secretário de Cultura de Cuiabá. No cargo desde que o prefeito Wilson Santos assumiu pela primeira vez a prefeitura em 2005, Mário não tem dúvidas em dizer que, hoje, o Cururu e o Siriri são a grande manifestação da cultura cuiabana. Ele destaca que o festival deste ano (a recuperação do Cururu e do Siriri, que tinham ficado restritos às populações rurais e ribeirinhas da região, começou em 2002, na gestão do prefeito Roberto França, que organizou o primeiro festival) teve investimentos totais de quase R$ 1 milhão, a maior parte da Prefeitura. Mas a frequência do público durante os dias do festival, que ainda teve feira de artesanato e de culinária, mostra que o dinheiro parece ter sido bem gasto.
O prefeito Wilson Santos, cearense de 48 anos, mas que vive em Cuiabá desde os três anos de idade, confirma que a existência de uma cultura típica da região influiu para que Cuiabá derrotasse Campo Grande como candidata a ser a sede da Copa do Mundo no Pantanal. “Nossa cultura é original, autêntica. Ficou preservada por causa do isolamento de Cuiabá, que só acabou com a abertura de rodovias em 1970, e hoje é um patrimônio não só da região, mas do Estado e do Brasil”, afirma, com entusiasmo. A Copa de 2014, aliás, vai mudar a data do festival, que será antecipado do final de agosto para o período de realização das partidas em junho/julho. Um novo espaço, com capacidade para mais espectadores, será montado em Cuiabá, permitindo que os turistas acompanhem o show.
O espetáculo é muito diferente do que a maior parte dos brasileiros está acostumada. Enquanto no Cururu o espetáculo é mais intimista, com grupos de até 20 cururueiros (como se chama quem executa o gênero musical), formando um círculo no meio do grande palco, no centro da arena, como se estivessem em um quintal ou em uma clareira à beira do rio, o Siriri agita a plateia. Os grupos, com a média de 50 integrantes, têm enredo e incorporam personagens do folclore da região, como o Boi à Serra. A apresentação começa com uma procissão, ao som de músicas cantadas em missa, e entra no palco o santo padroeiro ou o homenageado. No caso do grupo Flor do Campo, uma adolescente se apresentava como Nossa Senhora Aparecida. Encerrada a procissão e a oração, de repente, o ritmo muda. Um grupo de oito músicos – cantores e cantoras, acompanhados por violeiros e por percussionistas que tocam o mocho (espécie de tambor) e ganzás de taquara – começa a cantar a música escolhida como tema, em ritmo acelerado. Dezenas de pares, com as mulheres usando vestidos rodados (ainda descalças, mas com vestidos de tecidos brilhantes), os homens com roupas produzidas e chapéus, iniciam a dança. São pelo menos 20 minutos de um ritmo contagiante, com evoluções e coreografias precisas e variadas, embora mantendo a velha marcação indígena em cada passo. Com variações, dependendo do enredo de cada grupo de Siriri, o espetáculo se repete a cada nova apresentação. E sem competição classificatória, apenas pelo prazer de cantar, dançar e agradar. “Acho maravilhoso que no festival não existam mais notas e classificação. Assim, todo mundo pode se apresentar de maneira mais bonita e alegre”, afirma Matilde da Silva, 55 anos, que dança Siriri “desde quando nasceu”. Matriarca de uma família com mais de 50 pessoas, entre filhos, netos, genros, noras e até bisnetos, ela comanda o Flor do Campo, considerado, junto com o Flor Ribeirinha, os melhores grupos de Siriri de Cuiabá. Ou melhor, do Brasil.
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