A abertura da exposição Auguste Rodin, homem e gênio fez com que o Palacete das Artes e seu entorno fervessem naquela segunda-feira soteropolitana. Literalmente, não havia ar condicionado, mas fumaça de cigarro, o maior vilão de nossos dias, à frente apenas da falta de estacionamento, outro mosquitinho a se insinuar no acarajé cultural preparado com tanto esmero, fazendo com que os casais e os singles chegassem suando em bicas ao local. Mas nada que uma taça de Prosecco não resolvesse. Localizado na avenida principal do bairro da Graça, a mansão do comendador Bernardo Martins Catharino, do princípio do século passado, lembra, com seus janelões, um museu parisiense e tornou-se o centro da cidade por alguns momentos. Tarefa árdua, já que a capital mundial do trio elétrico – juro que vi uma procissão sendo seguida por um – anda para lá de fervida nos últimos tempos.

Além dos shows sazonais, endêmicos ou crônicos de axé, o fim de semana foi sacudido por eventos como o Big Bands, desfile de grupos de rock alternativo no Pelourinho; o Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia, abrigado pelo Teatro Castro Alves; e a exposição Cuide de você, de Sophie Calle, sediada no deslumbrante MAM do Solar do Unhão, uma das marcas da passagem de Lina Bo Bardi pela Bahia. Os números da mostra da artista francesa quase superam os estabelecidos por São Paulo, ainda mais agora que Sophie foi incluída pela influente teórica americana Rosalind Krauss no panteão dos “sete artistas rebeldes” que criam “contra a ditadura do cubo branco” (entenda-se museu). A última de Rosalind é chamar a imprensa, que já padecia do apelido de mídia, de “suporte técnico”. Para coroar o sotero weekend, Salvador recebeu sua passeata do Orgulho Gay, este ano em regime de petit comitê: 800 mil, apenas.
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A agitação em torno de Rodin é justificável. Salvador recebeu nada menos que 62 peças de gesso do artista em regime de comodato (empréstimo renovável), algo que, segundo o atual diretor Dominique Viéville, o Museu Rodin Paris nunca havia feito, tanto em termos de quantidade de obras quanto de duração, no caso, três anos. Há desde o conhecidíssimo O pensador até a célebre terceira maquete de A porta do inferno, considerada aquela que definiu o conceito final da obra, cujas versões em bronze têm 6 m de altura, 4 m de largura e 1 m de profundidade. Cabe aqui uma explicação. Uma escultura pode ser criada de diversas formas, mas Rodin fazia moldes em gesso ou terracota e mandava seus discípulos, inúmeros e dedicados, fundi-los em bronze.

A maioria das pessoas tem a ideia errada de que o gesso seja uma réplica do bronze, quando, na verdade, ocorre o inverso. O que vemos em Salvador é a impressão digital do artista. No caso de Rodin, significa um tesouro inestimável por vários motivos. O primeiro deles é óbvio: existem vários exemplares de O pensador em bronze espalhados pelo mundo e, no máximo, dois em gesso. Mas, como salientaram Aline Magnien, conservadora “em-chefe” da coleção, e Heloísa Helena Costa, museóloga responsável pelo Projeto Rodin Bahia, o que torna a escolha especial é que a coleção de gessos de Rodin mostra a evolução de cada um de seus trabalhos, é a corporificação, pode-se assim dizer, do conceito de work in progress (trabalho em progresso) que lhe é muito claro. Prova disso é a exposição em cartaz no Masp Rodin: do ateliê ao museu – fotografias e esculturas, que traz, entre outros atrativos, 193 imagens de Rodin trabalhando, feitas a pedido dele que, não satisfeito com a documentação, incentivava os fotógrafos a ousarem tecnicamente tanto na captação como na revelação.

A técnica de Rodin era tão refinada que no início de sua carreira, segunda metade do século XIX, deu motivos para que fosse acusado de fazer moldes diretamente sobre corpos humanos. A miniaturização dos elementos de A porta do inferno, realizadas em escalas diversas, teria sido uma resposta a isso. Seus quase duzentos elementos funcionam como um sampler da obra do artista, com referências a obras dele mesmo, como O pensador e O beijo, ou de outros artistas. E são vários os high lights, caso de Homem que anda; Eva e sua história curiosa – Rodin ficava desconcertado com as mudanças registradas nas formas da modelo original, provavelmente Adèle Abruzzezzi, até que descobriu que ela estava grávida -; ou Defesa, Mulher agachada, Meditação ou Voz interior. Mais pop impossível. A terceira maquete de A porta surgiu por volta de 1900, vinte anos após a encomenda original de uma porta para um museu de arte decorativa, que nunca foi entregue, ao contrário da verba do tesouro público francês.

Aliás, esse negócio de dinheiro público, não é tão público e quase que o Rodin Bahia, hoje dirigido por Murilo Ribeiro, não saía do papel. Foi o artista baiano Emanuel Araújo quem, em 2002, após dez anos à frente da Pinacoteca do Estado (SP), iniciou a movimentação para trazer Rodin para a Bahia – e será uma retrospectiva de 45 anos de seu trabalho que inaugurará o anexo do Palacete a partir deste mês, merecidamente. Mas nesse curto período de sete anos mudaram os governos baiano e francês, a direção do próprio Museu Rodin Paris, assim como as motivações de ambas as partes, para não falar das negociações que envolveram R$ 15 milhões no governo anterior e um décimo disso neste, segundo números apontados por Márcio Meirelles, Secretário de Cultura do Estado da Bahia. A princípio, o Estado compraria várias réplicas, o que foi vetado pela atual gestão, com o governador Jacques Wagner à frente. A lógica está no fato de ser absurdo concentrar a verba disponível em apenas um dos 193 museus existentes no Estado.

Então, o que existe hoje é um pas de deux executado pelas áreas de turismo e cultura – na verdade, a coisa está mais para tourada.

O turismo atrai 3,5 milhões de pessoas à Bahia anualmente, 50% deles para Salvador, isso em uma estimativa para lá de conservadora. Atualmente, o forte da área são as convenções. Para que se tenha uma ideia, na semana em que estivemos lá, muitos hotéis estavam com 100% de ocupação. Mas todos querem receber turistas. Já se fala até na tríplice aliança, envolvendo os destinos preferidos pelos estrangeiros no Brasil: Rio, Amazonas e Bahia. Segundo Emília Salvador Oliveira, CEO da Bahiatursa, braço armado do governo (em termos de marketing), com voos diretos, diálogo, agendas afinadas, cooperação mútua, todos saem ganhando, a começar pelo turista.

Tal imbricação entre secretarias obrigou os jornalistas a uma extenuante maratona gastronômica entre hotéis mais estrelados que uma sessão do planetário, como o Pestana Bahia Lodge, no Rio Vermelho, ou o Catussaba Resort, de Stella Maris, o que nos obrigou a repousar com afinco no restauradérrimo Convento do Carmo, algo indescritível, cuja diária custa R$ 6 mil na alta estação. Ainda bem que nós do suporte técnico somos masoquistas.


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