Bolaño: à procura de uma renovação literária

O chileno Roberto Bolaño foi um escritor absolutamente desconhecido do grande público – inclusive no Chile, ironicamente – até 1996, quando publicou o livro La literatura nazi en América pela editora Anagrama, em Barcelona. O livro era um apanhado de biografias imaginárias de supostos adeptos do fascismo espalhados pelo continente sul-americano. Escrito com verve paródica, sarcástica e irônica, ligava-se, do ponto de vista do gênero, a Vidas imaginárias (1896), do francês Marcel Schwob, e a História universal da infâmia (1935), de Jorge Luis Borges. Com 43 anos, Bolaño começava a conquistar a atenção da crítica.

Naquele mesmo ano, publica o romance Estrella distante, história apócrifa de um aprendiz de escritor que se torna torturador durante a ditadura chilena. E o reconhecimento vai se confirmando a cada nova publicação, até 1999, quando com Os detetives selvagens recebe vários prêmios: Herralde, da editora espanhola Anagrama; Consejo, do Chile; e Rómulo Gallegos, da Venezuela. O sucesso chegava tarde, Bolaño faleceria aos 50 anos, quatro anos depois, vítima de insuficiência hepática crônica. A partir daí, sua fama não fez senão crescer em ritmo inversamente proporcional aos vinte anos ou mais que o aspirante a escritor teve de suportar, desempenhando todo o tipo de trabalho, à espera do reconhecimento que nunca parecia chegar.
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Muitos aspectos da vida de Bolaño aparecem sob a forma de ficção em seus textos, povoados de personagens que são, sobretudo, escritores ou aspiram a sê-lo. É o caso de Arturo Belano, seu alterego, que surge em Estrella distante e depois será co-protagonista em Detetives selvagens para ser retomado no conto “Fotos”, na coletânea Putas assassinas, de 2001 (tradução brasileira, Cia das Letras, 2008). De fato, a matéria autobiográfica, um pouco à maneira de Jorge Luis Borges, é aproveitada na narrativa de Bolaño, mesmo que de modo disfarçado ou esgarçado como ocorre, por exemplo, com o jogador de futebol Acevedo no conto “Buba” da mencionada coletânea. Roberto Bolaño foi, ele próprio, um pequeno jogador no sul do Chile, como muitos outros garotos de sua geração. “Meu número era o 11, o número do Pepe e do Zagalo no mundial da Suécia, e fui um jogador entusiasta, embora bastante ruim…”, disse ele no discurso de recepção do Prêmio Rómulo Gallegos, em 1999.

Como em Borges, uma vez mais, vida e escrita vão estritamente lado a lado: a escrita entendida como um processo determinado fundamentalmente pela leitura. Bolaño foi um leitor compulsivo – um leitor que escrevia – e isso transparece a cada página de sua obra, salpicada de juízos e considerações, sem pudor nem recato algum, a respeito de todos e de tudo. A literatura chilena talvez seja um de seus alvos preferidos e nela detecta “não mais de cinco nomes válidos”, sobretudo entre os poetas, incluindo a figura altamente problemática de Neruda. O acanhamento do meio literário chileno é escancarado em mais de uma oportunidade – Noturno do Chile tem como protagonista um narrador em primeira pessoa que conta as desventuras e consequências estéticas, éticas e morais de sua própria mediocridade literária.

Mas é na fruição atenta de seus textos que encontramos os motivos que justificam a leitura de Bolaño. Primeiro, trata-se de um escritor com domínio do ofício, capaz de criar núcleos narrativos de envergadura poética autônoma para além das possibilidades alegóricas de muitos dos conteúdos implicados. O lugar-comum, aliás, é tratado com um vade retro e desprezado a cada passo. O insólito, ao contrário, adquire muitas vezes lugar preponderante para dar conta de um mundo visto como inóspito, alheio e sem nenhum sentido. Convocam-se registros altos e baixos, racionais e oníricos, convencionais e alucinados, tudo se mistura sem que por isso a mão do narrador perca em instante algum o domínio da forma geral. Os finais também demonstram o toque de mestre, lembrando por vezes o esvaecimento final dos elementos contraditórios ou problemáticos, numa banalidade que pode lembrar Tchekhov. Para Bolaño, a escrita é uma vertigem assumida que significa “correr no limiar do precipício: de um lado, o abismo sem fundo e do outro, os rostos que a gente ama, os livros, os amigos e a comida“. Justamente, o leitor é convidado a se equilibrar nessa corda bamba entre a vida cotidiana e banal e os terrores da solidão e do sentido trágico da existência.

Característica absolutamente peculiar na narrativa de Bolaño é a ubiquidade de sua fala. Sua vida itinerante, motivada por circunstâncias variadas, fez com que ele morasse, depois da infância no Chile, nos Estados Unidos, no México e, por fim, na Espanha. Nada teria isso de especial no mundo contemporâneo, não fosse pelo aproveitamento que ele faz dessa experiência que irá somar à das suas leituras. Embora a língua seja sempre o espanhol, ela irá mudando de uma história para outra, quer se trate de conto ou de romance (aliás, há em Bolaño um embaralhamento proposital dos gêneros), e irá adotando formas e gírias dos mais variados cenários, adquirindo uma autonomia toda particular. Não só as geografias irão se alterando (o sertão argentino, o Distrito Federal no México, uma aldeia espanhola encravada nos Pireneus, Madri, Santiago, Paris, Berlim, África, etc.), mas o que é mais impressionante é o domínio com que o substrato linguístico (vocabulário, gírias, modismos, formações sintáticas) irá se adaptando à nacionalidade também variável dos protagonistas. Eis aqui um problema de difícil solução para as traduções de seus textos, dado que o espanhol culto do narrador pode dar lugar ao de um mexicano de la chingada, ao de um chileno como los porotos, ao de um espanhol de pura cepa ou de um criollo argentino. Bolaño faz disso uma filosofia: “(…)para mim dá na mesma que digam que sou chileno, embora alguns colegas chilenos prefiram me ver como mexicano, ou que digam que sou mexicano, embora alguns colegas mexicanos prefiram me considerar espanhol ou já de uma vez morto em combate, e para mim dá na mesma que me considerem espanhol, embora alguns colegas espanhóis reclamem e a partir de agora digam que sou venezuelano, nascido em Caracas ou Bogotá, coisa que também não me incomoda, muito pelo contrário”.

Detetives selvagens já foi considerado no México um grande romance mexicano contemporâneo escrito por um chileno… Nesse sentido, pode-se dizer que Bolaño vem se inscrever dentro da linhagem de escritores “extraterritoriais”, tal como os definiu George Steiner. Contra a ideia romântica de que a pátria de todo escritor é sua língua, para Bolaño as pátrias linguísticas do escritor podem ser muitas. Como em Heine, Wilde, Kipling, Beckett, Borges e Nabokov (para citar alguns dos autores da lista de Steiner), também em Bolaño é posta em xeque a relação entre um eixo linguístico único – isto é, o enraizamento profundo na terra natal – e a dimensão poética.

A morte que para ele chegou cedo demais faz com que seus leitores, cada vez mais numerosos, sobretudo entre os jovens, se perguntem quais teriam sido ainda os rumos dessa literatura tão renovadora e estimulante que ele estava empenhado em construir.

*Doutora em Literatura Hispano-americana. Professora do Departamento de Letras Modernas/USP


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