Ataque ao Charlie Hebdo potencializa onda xenófoba na Europa

França apaga Torre Eiffel em homenagem às vítimas de ataque - Foto: Reprodução/Instagram/@paleseptembre
França apaga Torre Eiffel em homenagem às vítimas de ataque – Foto: Reprodução/Instagram/@paleseptembre

O atentado na redação do jornal francês Charlie Hebdo, em Paris, na quarta-feira (7) suscitou discussões profundas sobre a realidade social e política de alguns países da Europa, com maior intensidade para a presença de imigrantes nos países mais ricos do continente. Na madrugada de quinta-feira (8), foram registrados ataques a locais de aglomeração islâmica ou árabe da capital francesa e, em alguns países, como a Alemanha, manifestações contra estrangeiros foram organizadas logo após a morte das 12 pessoas no atentado.

A Europa, assim, mergulha em uma, podemos dizer, crise existencial. Em cada país do continente há um tipo de debate sobre o assunto: na Inglaterra com os islâmicos das ex-colônias, na França a mesma coisa, na Alemanha com a imigração turca e outras correntes de menor intensidade em outros países do bloco. Pese a isso a crescente de partidos de extrema-direita, com grupos neonazistas germânicos e publicamente xenófobos na França e na Itália. Nesta sexta-feira (9), Brasileiros ouviu o professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Reginaldo Nasser, e o também professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, Gilberto Maringoni, sobre as reflexões em torno do assunto. A seguir, você lê alguns trechos:

Brasileiros – O atentado tem o poder de potencializar uma atitude xenófoba na Europa, como já sugerem algumas análises?
Reginaldo Nasser: Claro que qualquer tipo de incidente que venha a ser conectado com algum grupo islâmico, ainda que seja apenas uma hipótese, por enquanto, neste caso de Paris, mas só esta hipótese já é suficiente para alimentar este tipo de ideologia que é muito forte na Europa e, em particular, na França. A filha do Jean-Marie Le Pen é uma das primeiras colocadas nas pesquisas de opinião sobre as eleições presidenciais francesas. Isso diz muita coisa.

Gilberto Maringoni: Já está potencializando. Foram registrados atentados a instituições religiosas, agressões verbais aumentando e a Marine Le Pen já disse que a França precisa ter uma união nacional contra o islamismo, além de pedir a volta da pena de morte ao país, que foi abolida em 1981. Então, eu acho que já potencializou. Se já existia uma islamofobia e um preconceito aos árabes, isso, obviamente, potencializa. Não é algo novo. Não é que a sociedade estava vivendo uma normalidade na sua integração multiétnica e, de repente, começou a islamofobia: ela já existia e só se potencializou.

E essa é uma posição da Europa hoje? Uma posição direitista?
Nasser: É difícil falar se é a posição da Europa. Há várias situações muito distintas: o caso da França, o da Espanha, que é diferente, a Suíça tem uma maioria em relação à xenofobia, a Inglaterra tem outro perfil. É difícil falar de Europa como um todo. O que podemos dizer é que, independemente disso a Europa tem mantido uma posição mais conservadora há muito tempo sobre a imigração, aos árabes islâmicos, e isso deve se agravar. Na França, além de tudo, ainda tem o passado colonialista, a relação com a Argélia, que ainda é muito presente na sociedade francesa. Assim, a França, eu creio, vai passar por uma dificuldade maior nesse sentido.

Gilberto Maringoni: Há um fortalecimento da extrema-direita na Europa que está alvoroçada em cima dessa situação. Eu acho, e aí não sei se voluntariamente ou involuntariamente, as charges do Charlie Hebdo, de certa forma, engrossavam essa toada, embora alguns redatores tivessem tendências de esquerda.

 O islamismo será atingido como um todo com o atentado desta semana?
Nasser: Aí entra aquela questão do fato e das percepções do fato: em termos de fato, não tem nenhum sentido relacionar isso com o islamismo. A França tem cinco milhões de islâmicos e apenas três ou quatro fieis dessa religião participaram do atentado. Como que eu posso julgar os outros milhões por isso? Nenhum outro islâmico foi lá no jornal agredir, jogar pedra, matar, e seria fácil os outros islâmicos fazerem isso. Isso é o fato. Agora, as percepções do fato vão longe e, infelizmente, essas conexões estão sendo feitas. Na madrugada já tiveram atentados em mesquitas, em restaurantes típicos árabes, é um pouco parecido com o pós 11 de setembro, que nós já vimos. Existe também aquela confusão de etnias com religião, ou seja, todo árabe é visto como islâmico. Por vezes confundem árabes com paquistaneses, afegãos, iranianos, que não têm nada a ver com a situação. Vira uma mistura absurda. Eu chamaria a atenção para a capa do jornal, de centro-direita, mais equilibrado, que é o Le Monde, com a foto dos suspeitos pelo atentado. É um caminho perigoso. E o que é interessante é a indiferença do governo francês, que está mais moderado em relação ao assunto do que a imprensa. Enfim, é um caminho perigoso.

Gilberto Maringoni: Primeiro é que não se sabe quem cometeu o ataque. A suspeita é baseada no fato de a polícia ter encontrado o documento de identidade de um dos homens no carro da fuga, que é uma coisa estranha, já que um grupo muito organizado dificilmente faria isso. Mas este tipo de repulsa ao islamismo pode acontecer no resto da Europa. Basta ver os filmes de aventura norte-americanos, não apenas os de guerra ao terror, todos os rivais dos protagonistas têm feições árabes e muçulmanas. Então, se já existe isso, acho que a tendência é que se propague agora na Europa.

O Charlie Hebdo tem tendências de esquerda. Há alguma relação com o atentado? A esquerda francesa ou até europeia pode se sentir atacada indiretamente?
Nasser: Não. Eu estou vendo a mídia falar que o jornal é de esquerda e fico pensando que essa não é a questão. Se o jornal é de esquerda ou não é, também tem muitos tipos de esquerda, enfim. A questão não é a posição do jornal, mas a reação das pessoas. Se o jornal estava agredindo o islamismo em geral, porque milhões de outras pessoas não reagiram? As pessoas têm reações diferentes ao mesmo fato. Assim, não é o fato, mas a reação ao fato, que quer dizer que não importa o que foi publicado, mas como reagiram a isso. Poderiam fazer de outras formas: protestar em frente ao local da redação, jogar pedra, atacar o cara, processa-lo. Esses, especificamente, fizeram um atentado terrorista. Os outros não. É até uma atitude ao contrário: mostra que os islâmicos na Europa estão integrados. E sobre o governo: posso chamar o governo do François Hollande de esquerda? Se for isso, parte do governo do Sarkozy, que foi de centro-esquerda? O que o Sarkozy e outros fizeram em relação aos islâmicos é o que importa. Há uma marginalização de pessoas na periferia de Paris e, ao mesmo tempo, a religião dessas pessoas é o islã. Isso é interessante: quando vão ver a identidade das pessoas, ao invés de ver o nível socioeconômico, a idade, a visão política, as pessoas olham apenas a religião. Essa política de exclusão que existe na França e em outras metrópoles do mundo é comum. Portanto, falar em esquerda, acho que não tem significado nenhum, até porque tem muita gente que se diz de esquerda e tem um discurso xenófobo. Aliás, uma parte da esquerda francesa era a favor da colonização da Argélia pela França, nas décadas de 60 e 70. Então, acho que não tem nada a ver se o jornal é de esquerda ou de direita, mas como se reage a isso.

Gilberto Maringoni: A esquerda é uma coisa plural. O Charlie Hebdo teve origem na esquerda nos anos 70 e 80, agora, a esquerda também, especialmente a europeia, teve mudanças de posições radicais. A esquerda europeia não é uma coisa única. Essas mudanças levaram a esquerda a engrossar o coro conservador. Eu acho que o atentado foi repugnante. Temos que ser contra qualquer tipo de atitude como essa, mas as charges que eu vi do Charlie Hebdo são grosseiras, de extremo mau gosto e sem humor. Aquele desenho do profeta Maomé, de quatro e com uma estrela no traseiro, é uma pura agressão. Não tem piada ali. A outra sobre a Praça Tahrir, no Egito, onde aparece o Maomé falando: “Alcorão de merda, não segura as balas”, não é piada. Você pode até fazer piada que ultrapasse o limite do bom gosto, mas ali não era nem piada, era uma agressão pura e simples. Não estou justificando o atentado, mas o Charlie Hebdo fortaleceu esta visão conservadora da sociedade francesa. Mas também penso que existem maneiras de combater isso: vai pra Justiça, organiza um protesto, enfim, faça qualquer outra coisa, mas não sair por aí com uma AK-47 resolvendo tudo na ponta do fuzil.

Essas reações terão intensidades diferentes nos países próximos à França? Na Alemanha, por exemplo, já houve protestos contra estrangeiros no país, algo que não se via desde a II Guerra.
Nasser: Tem uma questão geral de Europa e uma particular. O caso da França, além da questão econômica, social e política, tem a particularidade do colonialismo francês. Não por acaso, a grande maioria dos árabes islâmicos na França são argelinos ou da Tunísia. Não é a realidade da Alemanha, que já tem uma relação maior, nesse sentido, com a Turquia. Na Alemanha, além de tudo, tem a existência de grupos nazistas, que é um fator limitador e que dificilmente se vê em outros países do continente. A Inglaterra, por exemplo, não tem uma direita tão bem estruturada, como há na França e na Alemanha. Os islâmicos da Inglaterra também são de ex-colônias e não árabes, como Paquistão, Afeganistão, Índia… Veja que tem uma heterogeneidade muito grande nos países europeus em relação ao islã. Isso tudo se desassocia das posições destes países na política externa: na medida que um país desse se envolve em algum tipo de intervenção, ainda mais aliado aos Estados Unidos, isso chama a atenção claramente de grupos ligados ao terrorismo. Já aconteceu com a Inglaterra, com a Espanha, por exemplo. Essa questão da intervenção é importante. Se for verdade o que eu li na imprensa francesa, um dos suspeitos tem ligações fortes com as ideias contrárias aos Estados Unidos, aos ataques no Oriente Médio, etc. A OTAN, que é uma organização europeia de segurança criada na Guerra Fria, por exemplo, hoje está no Oriente Médio: na Líbia, no Afeganistão, entrou no Iraque. Então, a Europa armada é uma Europa intervencionista. Isso chama a atenção.

Gilberto Maringoni: Você pega o histórico europeu e encontra manifestações que têm, como base, o nacionalismo, que é o apego à cultura, a defesa à França profunda, à Alemanha nacionalista. Mas é importante salientar que o nacionalismo europeu é muito diferente do nacionalismo nos países africanos, latino-americanos, enfim, na periferia do mundo. Nestas regiões, o nacionalismo sempre esteve muito apegado a descolonização, a soberania nacional, por exemplo, enquanto, na Europa, ele sempre esteve relacionado com a xenofobia, com o ódio ao estrangeiro, ao diferente, até porque eles entendem o imigrante como pobre. O nazismo e o fascismo foram expressões disso.

Qual é o papel de grupos extremistas islâmicos, como o Estado Islâmico, em ataques como esse?
Nasser: Não dá pra saber. O Estado Islâmico é uma coisa recente e, pelo que se tem até agora, é difícil ver qualquer objetivo deste grupo que saia do seu território. O Estado Islâmico sequer é terrorista, é apenas um grupo que recorre ao terrorismo em alguns momentos, mas que administra um território do tamanho da Jordânia, instalando impostos, tem hierarquia, governo e tudo mais. A ideia deles é chegar ao poder no Oriente Médio. É o que se sabe até agora. Eventualmente, pode acontecer de um grupo querer ir até eles para receber treinamento, mas mesmo assim não seria nada de novo.  O terrorismo na Europa, na década de 70, tinha muito isso, na Irlanda, na Espanha… É possível que o ataque tenha sido articulado pelo EI, mas não é provável. O que é um fato: esse pessoal que agiu na quarta-feira é muito bem organizado. Realizar um atentado desses, no centro de Paris, no horário comercial, com fuzis pesados, entrar num prédio repleto de salas e chegar rapidamente ao local do jornal, sai na rua, vence o tiroteio com a polícia, executa um policial e vai embora na maior tranquilidade. Isso é coisa de gente treinada. É mais necessário estar atento a este tipo de organização do que se são religiosos ou não, porque pessoas treinadas desta forma podem cometer outras ações.

Gilberto Maringoni: A França tem 10% da população constituída de muçulmanos, a segunda maior religião do país. O efeito que um grupo de três pessoas pode ter em uma comunidade de seis milhões é difícil de detectar. As manifestações oficiais da comunidade islâmica têm sido de repúdio e medo, e então, entendemos que esse atentado não representa o pensamento geral islâmico. É a mesma coisa que pegar um assassino branco e dizer que “brancos cometem assassinato”. Não é o fato de serem possíveis muçulmanos que represente a comunidade muçulmana. Ao contrário.


Comentários

Uma resposta para “Ataque ao Charlie Hebdo potencializa onda xenófoba na Europa”

  1. Já estão preparando um “novo” argumento preconceituoso para servir de “cortina de fumaça”. Este problema foi criado pela esquerda (centro-esquerda foi atacada pela extrema-esquerda) e agora estão tentando se fazer de vítima e usando de culpabilização com o ocidente ao usar o termo xenofobia e islamofobia. A Marine Le Pen tem razão a culpa é da esquerda. O presidente é socialista, a França precisa acordar e combater o comunismo, o mundo precisa despertar!

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