foto: COLEÇÃO Em Ribeirão Preto, João Junqueira tem farto acervo do gênero musical surgido nos EUA - Foto: João Junqueira/Divulgação


Três anos atrás, no amplo apartamento no centro de Ribeirão Preto, a 310 km de São Paulo, o fazendeiro João Francisco Franco Junqueira começou a batucar nas teclas

do computador. Os textos esmiuçavam as faixas preferidas de sua coleção de mais de cinco mil álbuns de jazz. Cada parágrafo era um legado para as três filhas e os seis netos. Além disso, uma prestação de contas de uma paixão musical. Vez por outra, o autor consultava Cecília, sua mulher há quase cinco décadas – e também arrebatada fã de jazz –, sobre a qualidade do que havia redigido. Um amigo, Carlos Magno Bonfim, sócio da Editora Via Impressa, foi visitar João e, sem compromisso, deu uma olhada nos escritos. “Isso rende um livro!”, entusiasmou-se. E rendeu. Um livrão, por sinal.

Jazz Através dos Tempos, publicado pela editora de Bonfim, é um desses livros de atraente projeto gráfico que as revistas de decoração acomodam nas mesas de centro. Tem lindas e históricas fotos graúdas, em preto e branco e página dupla, de alguns dos principais músicos do século passado. Inclui, também, textos despretensiosos e sintéticos, mas reveladores, sobre o legado do jazz – em português e inglês.

Bem, há outras obras assim nas livrarias. Passemos às diferenças. Elas começam na adição de três CDs – em um total de 42 faixas – e continuam na opção de contextualizar as circunstâncias de cada gravação. Uma tentativa de resumir a história do jazz? Não. João preferiu outro caminho. Optou por selecionar faixas que a poucos ocorreria listar. “A escolha é pessoal”, ressalva, com voz jovial para um homem de 78 anos. “Quis fugir do óbvio.”

E fugiu mesmo. João anima-se ao lembrar que Ella Fitzgerald está representada na seleção com uma gravação feita aos 16 anos, em 1935, quando era cantora – dizia-se crooner – da orquestra de um baterista anão: Chick Webb, nome obscuro para não especialistas. Outra raridade sobre a qual o autor também fala com exaltação é uma faixa registrada dois anos antes pelo grupo Five Cousins. Nela, um dos instrumentistas, Douglas Daniels, toca triple. “É uma espécie de ukelele. Lembra o bando- lim. Tem cinco cordas duplas. Quase ninguém o utilizou no jazz.”

Não é preciso ser especialista no gênero musical surgido há quase um século no Estado da Louisiana, nos Estados Unidos, para notar o quão pessoal, de fato, é a lista de João. Das 42 faixas, 15 são dos anos 1920; 12, da década seguinte; apenas cinco dos anos 1940; e outras cinco dos 1950. As cinco gravações restantes cobrem os últimos 60 anos.

Se a triagem contemplou gigantes da estirpe dos pianistas Jelly Roll Morton e Duke Ellington, das cantoras Bessie Smith e Billie Holiday, do saxofonista Coleman Hawkins e do violonista Django Reinhardt, deixou de fora muita gente essencial. Não há nada na compilação dos fabulosos Charlie Parker, Miles Davis, John Coltraine, Ornette Coleman e Keith Jarrett – nomes recorrentes em qualquer antologia. Estaríamos diante de um apreciador refratário às radicais mudanças do jazz? Algum intransigente inimigo do bebop, do hard bop, do cool e do free jazz?

João ri. Afirma ser fã de “jazz moderno” – em especial, do pistonista Miles Davis que, até sua morte em 1991, jamais se acomodou em uma só vertente, divisando a música sempre milhas adiante. Prova disso foi ter selecionado na obra gravações de pianistas inovadores e pós-bebop. Ahmad Jamal e Bill Evans, por exemplo. A preferência por artistas dos longínquos anos 1920 – década batizada de “a era do jazz” pelo escritor F. Scott Fitzgerald – se deveu, antes de tudo, a um crivo didático. “É um livro para iniciantes e não para iniciados”, avisa. No entender de João, a partir dos meados dos anos 1940, o jazz foi se tornando música para quem a conhece a fundo.



“Fica difícil para quem não entende as nuanças da harmonia.” Outra justificativa para privilegiar os pioneiros foi a contingência de a reprodução daquelas faixas já estar, em geral, livre do pagamento de direitos autorais, diminuindo, assim, o
preço final do livro – em torno dos R$ 100.

Nascido em uma família radicada no Brasil desde a metade do século 18 – e conhecida pelas fazendas de café e, depois, pela criação de cavalos manga-larga –, João interessou-se por música ainda menino. Aos 9 anos, em Orlândia, sua cidade natal, tocava acordeom, embora tenha implicância com essa palavra. “Prefiro sanfona. Como Sivuca também preferia, ele me contou. Tinha bronca dessa frescura de chamar de acordeom”, diverte-se.

João já se virava bem nos teclados aos 14 anos, quando desembarcou em São Paulo para cursar o Ensino Médio no Colégio Rio Branco e, mais tarde, Engenharia Civil, no Mackenzie. Passou a integrar conjuntos de baile e até aprendeu a ler música sozinho. Quando tinha 17 anos, em 1952, no final de um baile, um desconhecido o apanhou pelo braço e disse: “Você toca bem. Mas precisa conhecer outro tipo de música”. Pouco depois, os dois estavam na pensão onde João morava, na Rua Itambé, bairro da Consolação, ouvindo um clássico dos clássicos do jazz: Louis Armstrong com os seus flamejantes Hot Five – homenageados com uma faixa em Jazz Através dos Tempos, é claro.

“Fiquei alucinado ao escutar aquela improvisação coletiva. No dia seguinte, já estava correndo atrás do que dissesse respeito a jazz. Na época, saía pouca coisa por aqui.” Com efeito, o primeiro livro escrito sobre o assunto no Brasil só seria publicado no ano seguinte. Era Jazz Panorama, de Jorge Guinle – tal como João, um homem da elite interessado em música popular. Bem que João tentou tocar jazz na sanfona. Desistiu. “Improviso mal”, admite. “Improvisar é para quem pode e não para quem quer.”

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Nem por isso abandonou o instrumento. O gosto pelo chorinho o levaria a conhecer pessoalmente músicos de alto calibre, como Jacob do Bandolim. “Esse improvisava como poucos, mas me disse que odiava jazz. Era um ranzinza.” Jacob também falava mal de Waldir Azevedo, mestre do cavaquinho, autor de Brasileiro e Pedacinho do Céu. Desse último, João ouviu uma história fantástica. Waldir viajou para Marrocos, onde encantou-se por uma caixinha de música. Comprou-a sem nem mesmo ouvir o que a maquininha tocava. De volta ao Brasil, surpreendeu-se: a caixinha fazia soar sua composição Delicado.

Em 1976, João fundou com amigos o Clube do Choro, em uma garagem da Alameda Jaú. Foi vice-presidente dessa associação por oito anos. Também gravou dois discos de choros e valsas brasileiras. Um deles em dupla com o maestro e clarinetista Portinho. “Ele morreu pouco depois.

Nem chegou a ver o CD.” No outro disco, teve como parceiro Elias Edson Gagliardi, virtuose do violão de sete cor- das. João ainda exercita-se na sanfona, “para não enferrujar”.

Se teve contato mais chegado com vários músicos brasileiros, ele não pode dizer o mesmo dos jazzistas estrangeiros. Ainda assim, agradece por ter visto diversos ao vivo. De Louis Armstrong a Dizzy Gillespie. De Edmond Hall a Earl “Fatha” Hines. “Já viajei para Nova York só para ir aos clubes de jazz Vanguard e Blue Note”, lembra, sem enxergar estranheza nisso. Estranho mesmo é nenhum filho ou neto ter herdado seu apego ao jazz. Mas o livro está aí para isso mesmo.


Comentários

Uma resposta para “Doido por jazz”

  1. Avatar de Renato Consorte
    Renato Consorte

    O jazz é um estado de espírito, de quem quer ouvir e saborear coisas frescas, novas, inventivas. Na natureza nada se repete e na música também é assim, o músico está sempre revendo o passado em sua nova interpretação, é da natureza humana.
    Vivemos em época de conservadorismo e receio do novo, do inédito. As pessoas vivem uma fantasia de felicidade no consumo do produto novo, porém de conteúdo velho (já conhecido)
    A música é feita pelo músico, fresca na hora. O resto é repetição, digital ou analógica, uma pálida fotografia do que já é passado.
    Viva o músico e a musica ao vivo.

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