Boas novas para a bibliografia da MPB

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Nossas recomendações de leitura para este verão reservam capítulo à parte, dedicado aos amantes da MPB. É que acabam de sair do prelo quatro bons livros sobre personagens que, nos últimos 70 anos, despertaram a paixão de milhões de brasileiros por sua excelência musical.

O poeta Luiz Galvão, principal letrista do Novos Baianos, acaba de lançar – com novo título, Novos Baianos, a História do Grupo que Mudou a MPB (Editora Lazuli, 338 páginas) – uma versão estendida e atualizada de Anos 1970, Novos e Baianos, publicado em 1997 pela Editora 34. Também integrante da trupe soteropolitana em clássicos, como Acabou Chorare (1972) e Novos Baianos F.C. (1973), o contrabaixista Dadi lançou o memorial Meu Caminho é Chão e Céu (Editora Record, 178 páginas). Autor de canções que povoam o imaginário do brasileiro, como Brasil Pandeiro, Cai, Cai Balão e Boas Festas, o baiano Assis Valente teve reconstituída sua história errante, na biografia Quem Samba Tem Alegria – A vida e o tempo de Assis Valente escrita pelo conterrâneo Gonçalo Jr. (Civilização Brasileira, 660 páginas). A cantora Aracy de Almeida, maior intérprete de Noel Rosa e outra grande personagem de nossa música, também esquecida em meio à esparsa memória cultural do País, ganhou tratamento pop em Aracy de Almeida não tem Tradução (Editora Veneta, 218 páginas), do jornalista Eduardo Logullo. Somado o conteúdo dos quatro livros, para o deleite dos fãs, são quase mil e quinhentas páginas de histórias que enriquecem a bibliografia da MPB.

Transas sonoras de Dadi e Novos Baianos

Logo nas primeiras páginas de seu livro de memórias, o contrabaixista Dadi Carvalho revela que teve a paixão pela música desperta na pré-adolescência, aos 11 anos, após ouvir a cadência particular de Samba Esquema Novo, álbum de estreia de Jorge Ben Jor – à época, apenas Jorge Ben. O ano era 1963. O menino mal poderia esperar, mas, 13 anos mais tarde, seria ele o coringa das quatro cordas da banda de seu primeiro e maior ídolo (no grupo Admiral Jorge V). Com Jorge, Dadi cruzou a Europa e conheceu cidades como Paris e Londres, na turnê do álbum Solta o Pavão, lançado pela Philips em 1976. Orgulho tamanho para ele, que quase o fez estampar em uma camiseta a frase “Eu sou o baixista da gravação original da música Jorge de Capadócia”.

Essas e outras recordações vêm à tona a partir do momento em que Dadi, após ouvir (I Can’t Get No) Satisfaction, trava contato com o repertório de bandas britânicas como os próprios Rolling Stones, os Beatles, os Kinks e o The Who. Apesar de ter atravessado a década de 1960 como roqueiro convicto, e aprender a tocar intuitivamente o instrumento que o consagrou no grupo juvenil The Goofies, Dadi revela que nutria, em paralelo, uma crescente paixão pela MPB. Influência da irmã mais velha, a pesquisadora e produtora cultural Heloisa de Carvalho Tapajós, amante de primeira hora da Bossa Nova, que apresentou a ele o LP de Jorge e combos do nascente samba-jazz, como o Bossa Três e o Zimbo Trio.

Em 2008, ocasião em que lançou o CD Ao Vivo no Japão, Dadi começou a esboçar um resumo de sua trajetória para o release de divulgação do álbum e, depois de escrever a frase “Minha história na música começou…”, decidiu acatar o conselho de amigos de escrever um livro. Em pouco tempo, conseguiu acertar a publicação de Meu Caminho é Chão e Céu com a editora Record, mas teve de esperar seis anos para que fossem resolvidos impasses jurídicos decorrentes das citações a outros artistas. O livro, enfim, veio à tona no final de 2014, depois da morte de Heloísa por complicações cardíacas (carinhosamente chamada de Losinha por amigos e familiares, a pesquisadora atuou por 15 anos no Instituto Cravo Albin e era casada com o compositor e produtor Paulinho Tapajós, morto em 2013).

ENCONTROS Na companhia de seu ídolo Jorge Ben Jor, Dadi encara a primeira turnê internacional, no Olympia de Paris, em 1975. O craque rebelde Afonsinho e Luiz Galvão: o ataque infalível do Novos Baianos Futebol Clube - Fotos: Arquivo Pessoal/Mario Luiz Thompson
Fotos: Arquivo Pessoal/Mario Luiz Thompson

 

Missão cumprida, em entrevista por telefone Dadi, que mais de uma vez se disse tímido, minimizou a importância de seus relatos. Apesar da modéstia, sua iniciativa acrescenta informações de bastidores privilegiadas sobre o cenário cultural do País nos anos 1970 e 80, quando, além do A Cor do Som, ele também integrou o Barão Vermelho: “É um livro simples. Não tem nada demais. São apenas memórias e coisas engraçadas de minha carreira, mas foi um lindo exercício. Acho que consegui explicar as angústias, as batalhas e as histórias felizes que vivi nesse período. É uma vitória esse livro ter saído. Dediquei à minha irmã, que escreveu o prefácio. Penso na Losinha o tempo todo, pois sei que ela estaria muito feliz em ver esse momento acontecer”.

Entre as lembranças contadas por ele, claro, um dos destaques é a memória de como foi convidado a integrar o grupo e fazer história com a trupe louca dos Novos Baianos. O livro detalha com maior precisão, mas Dadi resume o episódio: “Conheci Baby, em 1969, na praia do Arpoador, na ocasião em que eles levaram ao Rio o show do primeiro álbum É Ferro na Boneca. Eles precisavam de um baixista e Baby me convidou. Encontrei com eles na casa do Taiguara, para fazer um teste. Eu e Pepeu, que entramos na banda com a mesma idade, 19 anos, tivemos uma identificação imediata, pois gostávamos das mesmas coisas. Rolou um clima superlegal e Moraes e Galvão nos deram o nome A Cor do Som que, aliás, ficou registrado no álbum Futebol Clube e, depois, me autorizaram a usar na minha nova banda”.

Outro episódio que enriquece o livro é o relato dos encontros de Dadi com João Gilberto, em 1972, nas visitas surpresa que o guru da Bossa Nova fazia ao grupo, no diminuto apartamento de Botafogo onde os oito músicos se apinhavam. “Ouvi com João muita música brasileira, muitos sambas, choros e baiões de Assis Valente, Lupicínio, Jacob do Bandolim e Luiz Gonzaga. João e os Novos Baianos foram para mim uma faculdade.”

Curioso também é saber que suspeito, segundo alguns, de ter feito o místico e psicodélico A Tábua de Esmeralda (1974) sobre efeito de alucinógenos, na verdade, Jorge Ben Jor é sujeito careta, como garante Dadi: “Vivi aquela loucura dos anos 1970 e, até conhecê-lo, não sabia que ele não gostava de bebidas e de drogas. Todo mundo acha que ele é doidão, mas é o contrário. Tanto é que, hoje, estou acabado e ele está a mil. Faz mais de três horas de show com a maior energia”, diverte-se.

Além de ter sido um dos maiores compositores da primeira metade do século 20, Assis Valente também foi protético e exímio ilustrador. Ao lado, um de seus desenhos para a revista Shimmy, publicação destinada ao público adulto masculino, nas qual colaborou durante o biênio 1928-29 - Fotos: Arquivo Nara Nadyle/Arquivo do Autor
Além de ter sido um dos maiores compositores da primeira metade do século 20, Assis Valente também foi protético e exímio ilustrador. Ao lado, um de seus desenhos para a revista Shimmy, publicação destinada ao público adulto masculino, nas qual colaborou durante o biênio 1928-29 – Fotos: Arquivo Nara Nadyle/Arquivo do Autor

Aliás, interpretada por muitos historiadores do período como alienação, a válvula de escape das drogas nos anos 1970, curiosamente, é condenada por Luiz Galvão. No prefácio de Novos Baianos, a História do Grupo que Mudou a MPB, ele lamenta ter, de alguma forma, estimulado o que hoje considera escapismo via desbunde. Mas Galvão é certeiro ao definir o papel que ele e seus pares exerceram em tempos difíceis: “Aquele desastroso período da vida nacional foi compensado pela inexplicável riqueza do sentimento artístico, nascido apesar da ditadura militar. Os Novos Baianos vieram atender à juventude hippie e anárquica, que estava ávida por transformações.”

A nova edição de Anos 70 Novos e Baianos merece atenção, pois amplia questões essenciais já contadas por Galvão sobre a história da banda, com o adendo do retorno em 1997 e o acréscimo da discografia completa e de todas as letras.

Assis e Aracy, segundo pratas da casa

O leitor mais atento perceberá que os outros dois títulos resenhados neste inter-título foram escritos por dois colaboradores caros à Brasileiros. Gonçalo Junior, autor de Quem Samba Tem Alegria – A vida e o tempo de Assis Valente, foi nosso editor de Cultura. Eduardo Logullo que, no ano do centenário da cantora, eleva uma estrela esquecida ao status de ícone pop em Aracy de Almeida não tem Tradução, entrevistou Gal Costa para a capa de nossa edição 54.

Considerações reveladas, os dois livros cumprem papel de instigar o interesse sobre figuras um tanto esquecidas, mas centrais para a música popular brasileira do século 20. Questionado sobre a dívida que o País tem com Assis Valente, Gonçalo foi enfático: “É uma dívida quase espiritual. Assis viveu uma vida atormentada, cheia de demônios, e mesmo depois de morto não sossegou, porque teve a reputação arranhada. Foi discriminado por ser suicida e, supostamente, homossexual. A dívida que temos com Assis é colocar ele entre os maiores compositores do Brasil”, defende.

Entender a áurea soturna que envolve a memória de Assis Valente é, de fato, tarefa que, até então, poucos pesquisadores haviam se empenhado em cumprir. Gonçalo afirma que passou 32 meses de imersão na vida de Assis. Tempo em que se fartou de ouvir tudo o que foi lançado pelo compositor e reuniu depoimentos que mudam o curso da história contada sobre ele. A principal descoberta foi o fato de que ele era viciado em cocaína, o que teria agravado sua depressão. Revelação que depõe contra a suposição de que ele era gay enrustido. Aliás, o primeiro contato com a droga serviu para atenuar a fossa de ver Carmem Miranda, por quem era apaixonado, partir, em 1939, para os Estados Unidos e trocá-lo por Dorival Caymmi, como compositor predileto. “Assis foi o cara que teve a história mais desgraçada da história da MPB. Ele só teve sete anos de felicidade, os outros 43 foram de tristeza. De 1932 a 1939, foram gravados cerca de 140 sambas dele. Desse número, uma centena fez sucesso. Além de vaidoso, ele esnobava os cantores por ser o queridinho de Carmem. Quando ela parte para os EUA, ele fica arrasado, ninguém mais quer gravar seus sambas e ele, que já havia dado mostras de depressão, se afunda de vez.”

Revestida em linguagem pop, Aracy de Almeida surge moderna e instigante no livro de Eduardo Logullo - Foto: Acervo Hermínio Bello de Carvalho
Revestida em linguagem pop, Aracy de Almeida surge moderna e instigante no livro de Eduardo Logullo – Foto: Acervo Hermínio Bello de Carvalho

 

A teoria defendida por Gonçalo foi fundamentada no depoimento de fonte que conviveu com Assis por 13 anos, Sausa Machado, afilhada do sambista, que teve os estudos pagos por ele: “Em uma das entrevistas, ela me disse: ‘Meu filho, o grande problema de Assis foi dependência química, cocaína’. Foi aí que Dona Sausa contou que ele também fumou muita maconha e, nos anos 1930, chegou a ter uma casa em Santa Teresa somente para promover festas com drogas, bancava tudo para os convidados.” 

Sem recorrer ao mesmo grau de imersão de Gonçalo, que escreveu um catatau, mas produzindo o mesmo efeito, com um livro ousado e sucinto, Eduardo Logullo reinventou em tons de iconografia pop o mito Aracy de Almeida. A linguagem difusa e fragmentada do livro, extraída de entrevistas e reportagens feitas com Araca, faz do lançamento espécie de flash mob em defesa da transgressão inerente à cantora. Algo proposital, como explica Logullo: “A ideia inicial era fazer um The Red Book of Aracy de Almeida, em formato de livro maoista, que reunisse as melhores mumunhas dela. Depois a ideia mudou, devido à extensão do material que descobri sobre ela como cantora, personalidade, mulher polêmica e o diabo a quatro. Então, formatamos um volume que, desde o início, agruparia o discurso de Aracy fracionado, interrompido e editado – mas sem perder o aspecto documental, que pudesse explicá-la melhor como artista. Contamos com dois pesquisadores que foram fundamentais para o livro: João Reynaldo Paiva e Thierry Freitas”.

Coube também a Logullo responder a pergunta previsível sobre a dívida do Brasil para com essa artista estigmatizada pela reputação rasa de jurada mau-humorada do show de calouros de Silvio Santos: “Dívida imensa. Existem CDs de Aracy em catálogo? Apenas um. Ela deixou uma obra de mais de 340 músicas gravadas que, se fossem divulgadas para as novas gerações, certamente encontrariam aceitação. Aracy foi cool, moderna, avant la lettre”.

Que venham, então, reedições, outros lançamentos e mais bibliografia para assegurar o registro da rica história da MPB. Por hora, o acerto de contas resiste com esses quatro livros.


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