Laurent Suadeau, um chef de opinião

Entrevistado em Paris e fotografado em São Paulo, Laurent Suaudeau acha que a política, queiramos ou não, é um ingrediente indispensável também na cozinha. Um dos principais chefs franceses no Brasil, diz que o esnobismo do brasileiro à mesa põe em risco o melhor da nossa tradição gastronômica: a comida de boteco. Em contrapartida, criou sua própria escola de cozinha, na qual a mandioquinha, a jabuticaba e outros frutos da terra ocupam lugares nobres em uma fusion bem temperada entre as culinárias brasileira e francesa

Ele está doido para dizer o que pensa. As entrevistas, em geral, só querem saber de novas receitas”. Foi assim que Janaína, filha de Laurent, respondeu ao nosso telefonema, pedindo uma entrevista com o chef, de passagem por Paris. Janaína intermediou o encontro. Aos 25 anos, é ela quem ocupa o apartamento parisiense da família. Há sete anos no país do pai, formou-se em teatro no Conservatório Nacional e hoje toca sua carreira de atriz. Seu irmão, Gregory, de 21 anos, acaba de retornar ao Brasil de uma temporada no Canadá, onde estudava para se tornar aviador. Nenhum dos filhos do Laurent se interessou pela profissão do pai.
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Apesar de situado no oitavo arrondissement, um dos mais nobres da capital francesa, o apartamento não é próximo de nenhum ponto turístico. A rua é calma, mas estrategicamente próxima à Rue de Lévis, onde podem ser encontrados todos os produtos frescos para uma cozinha exigente. Três boulangeries, duas fromageries, várias boucheries (padaria, loja de queijos, açougue e embutidos), quitandas, peixeiros e duas lojas de vinho, bien sûr. É nessa rua que Laurent, principal chef francês do Brasil ao lado de seu amigo e compadre Claude Troisgros, faz suas compras quando vem a Paris.

Quem entra na casa dos Suaudeau é logo convidado a trocar os sapatos da rua por pantufas, hábito imposto pela filha e aceito pelo pai, mesmo que ele não esteja muito de acordo. Na sala de estar, quadros, móveis e bibelôs fazem referência ao Brasil e remetem à estética de Debret, o mais lembrado dos pintores da missão artística francesa de 1816.

À vontade em suas pantufas, ele desata a falar com grande empolgação e quase sem pausas. Mistura ao sotaque francês as influências das cidades brasileiras em que viveu: Rio de Janeiro, de 1979 a 1991, e São Paulo daí em diante. A língua materna só escapa quando Laurent se exalta. E, aos 53 anos, quase 30 no Brasil, o filho de sindicalista, aprendiz de Paul Bocuse e formador de cozinheiros, se exalta diversas vezes, enquanto conecta suas experiências de vida a suas leituras e opiniões: “Comer algo que parece ser e que não é. Que o cheiro parece ser o que não é, que o gosto parece ser o que não é. Ça me dérange beaucoup. J’irais plus fort: ça m’emmerde! (Isso me incomoda muito. Diria mais: isso me dá no saco!)”, é como ele se refere aos extremismos da cozinha molecular.

Antes de os gravadores serem ligados, o chef aponta para os dois livros que descansam sobre a mesa. La Crise, et Après?, de Jacques Attali, e Le Livre Noir de la Révolution Française, volume de quase 900 páginas com artigos de diversos historiadores. “A leitura ajuda a me posicionar. Como cidadão, claro, mas também quando estou atrás das minhas panelas.” Sem que seja necessário fazer perguntas, ele deságua ideias sobre a crise global, o desenvolvimento do Brasil, a alimentação como indicador cultural.

Nascido em Cholet, cidade do vale do Loire cuja população monarquista foi massacrada com extrema violência durante a Revolução Francesa, em 1793, Laurent considera que o posicionamento político está no sangue. Seu avô era um irlandês do norte que emigrou para a França em 1922 para escapar da miséria e da dominação inglesa. Durante a guerra, foi preso pelos nazistas. Enquanto isso, sua família teve negado o direito a cartões de racionamento pela administração francesa, com a desculpa de que eram esposa e filhas de um estrangeiro. “Ele engraxava as botas e lavava os cavalos dos alemães. Fazia todo serviço possível, para poder comprar leite para minha mãe e minha tia”, conta Laurent. O episódio marcou a mentalidade da família, que se tornou refratária à autoridade.

Seu pai comandava a ação sindical na fábrica de eletrônicos da Thompson, na época a principal marca de eletrodomésticos da França. De rifle na mão, bloqueou a entrada da empresa durante a crise de 1968, mais lembrada pelas barricadas de estudantes no Quartier Latin de Paris. Socialista e batalhador, André Suaudeau teve dificuldade em aceitar que o filho preparasse refeições sofisticadas e caríssimas para as elites que ele mesmo se dedicava a combater. “Ele nunca quis comer comida elaborada. Meu pai era bife, batata frita, salada e torta de maçã. Nada mais.” Durante uma discussão, chegou a enunciar uma sentença que representou uma quase ruptura na família: “Vá lá servir seus bacanas. Você pertence a um mundo que não é o meu”. Laurent tinha 17 anos.

A proximidade com o debate político produziu no chef uma percepção clara de que sua profissão não era uma mera fonte de prazer. Por isso, a reflexão social não está reservada para as horas vagas. A alienação é que lhe parece um contrassenso: “Com 17 anos, eu tinha lido o Manifesto Comunista e liderava greves no liceu em que estudava. Ninguém entra, ninguém sai. E toda essa história se reflete na vida profissional e nas receitas que cozinho”.

Nem sempre Laurent precisou ir até a política. Ela, às vezes, também ia em sua direção por conta própria. Ao aterrissar no aeroporto do Galeão em 15 de dezembro de 1979, encontrou-se em um país que vivia os estertores de uma longa ditadura. Designado para passar seis meses como segundo chef no restaurante Le Saint Honoré do Hotel Méridien, em Copacabana, ele acabou ficando e estabeleceu uma relação de muita proximidade com seus subordinados da cozinha. “Eu pegava minha equipe e levava para o salão. No meu português daquela época, ensinava geografia, mostrava onde fica a França, sentava com uma meia dúzia… queria vê-los crescer.” Seu jeito franco e aberto não deixou de chamar a atenção de um diretor do hotel, que era informante da Polícia Federal, no governo de Figueiredo, e viu naquele estrangeiro baixinho um perigoso agente subversivo.

“Cheguei em um Brasil onde o expressar-se era quase proibido ainda. Um dia, cerca de 11 horas da manhã, a PF foi me buscar. Eram cinco ‘armários’. Subiu um e se apresentou: ‘O senhor queira nos acompanhar para uma verificação’. Fui à Praça XV, entrei naqueles corredores, fui recebido por um cara que folheava uma pasta. Depois, me liberaram sem explicações. Só fui saber o que aconteceu muitos meses mais tarde.”

O objetivo inicial de Laurent era partir para os Estados Unidos ao final de seu período como assistente no Brasil. As brigas eram tantas que ele ameaçou várias vezes voltar mais cedo. Assim que chegou, ficou horrorizado com a qualidade dos produtos que tinha para trabalhar: peixes longe de frescos, legumes de qualidade duvidosa e, sobretudo, cópias indigentes das receitas europeias. Ele enviou a Paul Bocuse, seu chefe, um telegrama em que dizia: “Aqui, eu não fico”. Mas o chefe lhe ordenou que ficasse.

A solução foi pedir um adiantamento do salário e seguir para a feira na companhia de um cozinheiro, atrás dos produtos da terra. Na volta, como não o deixavam entrar pela garagem, contornou o edifício e atravessou o saguão principal, por entre os hóspedes, com sacolas cheias de agrião e robalo. Interpelado por um diretor do hotel, não teve dúvida em responder: “Se não está bom assim, pode ligar para o papai lá na França e providenciar minha passagem. Vou-me embora, não tenho nada para fazer aqui se não for sério”.

Se a diretoria do hotel torceu o nariz para o rapaz de 23 anos que teria de aturar, a equipe da cozinha se identificou com o francesinho: “Sempre me pergunto. Será que é porque eu tinha uma origem no operariado e me sinto bem no meio de pessoas mais simples?”. Apesar da barreira da língua, em poucas semanas ele já ouvia samba com cerveja na Baixada Fluminense e conhecia o Maracanã. Foi lá que, por influência de um cozinheiro, tornou-se torcedor do Flamengo, embora considere a cultura futebolística “religiosa demais” no Brasil.

Menos de dez anos mais tarde, cozinharia para presidentes, príncipes e coronéis, mas a lembrança da chegada segue muito viva: “Guardo minha mala até hoje. Pousei no Galeão, o mar ali na frente, o céu azul, era um dia lindo, lindo…”. Mas a praia quase não viu a cor bastante clara do jovem chef, que passava seus dias inteiros dedicado ao trabalho. Cozinheiro queimado de sol, ele explica, é coisa muito suspeita. Sua dedicação foi logo recompensada. O chef principal do Saint Honoré partiu para os Estados Unidos e ele foi alçado ao comando da cozinha, mesmo contra a vontade de seus antagonistas da administração. Em 1986, abriu seu próprio restaurante no Rio de Janeiro.

A revolução que Laurent provocou na alta gastronomia brasileira pode ser resumida nas palavras mandioquinha, tucupi e jabuticaba. Mas também poderíamos dizer milho verde, maracujá ou quiabo. O chef é um defensor do uso de ingredientes regionais desde seus primeiros anos de formação, em Batz-sur-Mer, vilarejo de três mil habitantes conhecido na França por suas salinas. Foi lá que ele trabalhou no restaurante Les Prés et les Sources, de Michel Guérard, seu primeiro maître d’apprentissage. A tradição francesa do terroir é a base de seu trabalho e, na sua opinião, um dos mais importantes legados do país, ao lado de Molière e da Declaração Universal dos Direitos do Homem. “Ninguém ainda falava em ecologia. Mas a consciência de cozinhar com produto gostoso e de qualidade era tão enraizada na cultura francesa, que tudo se fazia de forma natural.”

Para Laurent, o modo como as pessoas e os povos lidam com a alimentação é um indicador de seu desenvolvimento cultural. “Associo minha profissão ao crescimento do ser humano. Quem não come bem nunca vai ter os elementos necessários para batalhar de forma igualitária. Antes de falar na gastronomia como um prazer, ela é sobrevivência. Temos de comer, todos. Depois, a interpretação do como comer e como cozinhar é outra história. Eu coloco meu metiê num contexto de reflexão social, cultural, econômica e ecológica. Será que a gente não tem de ter uma postura mais humilde perante a natureza? Respeitá-la mais e saber trabalhar melhor aquilo que ela nos dá de graça, sabe-se lá até quando?” Daí a necessidade de conhecer a procedência dos produtos e respeitar o que se vai comer.

Nos últimos anos, porém, o governo francês vem reduzindo os padrões de exigência para a produção de queijos, vinhos e outros produtos da terra, deixando furiosos muitos amantes da boa mesa. O exemplo mais recente é a mistura de vinho tinto com branco para produzir o rosé (o verdadeiro rosé é feito a partir de um processo complexo e custoso de fermentação). Laurent comenta a questão em poucas palavras, rindo: “Pois é, acho que enlouqueceram”. Para um cozinheiro, é o sintoma mais claro da decadência cultural da França, atingida pelo lado menos brilhante da globalização: a padronização do gosto.

A essa tendência se opõem movimentos de resistência, como a agricultura orgânica, o comércio justo e o slow food. Laurent se orgulha de usar cada vez mais os produtos desses movimentos e lamenta que o Brasil tenha escolhido outro caminho: “O incentivo ao agribusiness é muito grande. Como sabemos, há interesses aí que não são da ordem do desenvolvimento do ser humano. É business, portanto, monocultura”. Produzido sob essas condições, o alimento não tem o mesmo sabor, a carne é “puro hormônio” (assinalado com o gesto de repetidas injeções) e a procedência é questionável. Os reflexos, diz o chef, são visíveis longe do campo. “Há várias iniciativas para acabar com a feira-livre no Brasil, inclusive em São Paulo. Isso não pode! É um absurdo! Tinha é de ter mais e ser mais respeitada.”

A feira é um tema caro para Laurent. É o paradigma do contato autêntico com o alimento e seu produtor. Foi em uma feira do Leme, zona sul do Rio de Janeiro, que ele viu pela primeira vez uma jabuticaba, fruta que faz as vezes de símbolo nacional no Brasil. “Quantos produtos diferentes não encontrei numa feira de rua! Ali, o que se estabelece é uma relação pessoal. Se não fosse ela, talvez eu nunca tivesse contato com a mandioquinha.” Na França, um episódio corriqueiro restabelece sua fé na humanidade. Uma criança agarra um pêssego e a mãe a obriga a devolvê-lo com um tapa na mão. Em tom de reprimenda, ela explica que a fruta não é brinquedo. Outra pessoa virá comprá-la e comê-la. O vendedor dá razão à mãe e Laurent sente que foi Deus que o colocou diante da cena.

A esposa do chef, Sissi Suaudeau, maior responsável pela permanência dele no Brasil, interrompe o discurso do marido trazendo café e biscoitos amanteigados da Bretanha. Enquanto são consumidos, os biscoitos servem de ilustração para os argumentos de Laurent: “Esse biscoito é feito por um artesão de Guérande. O sal é de Guérande. A manteiga, de Guérande. Ele não tem interesse em exportar, porque a durabilidade do biscoito é de 15 dias. E tem fila na porta da loja o ano inteiro”.

O biscoito vira exemplo, também, para sustentar a tese segundo a qual a crise econômica mundial pode levar as pessoas a quererem se alimentar melhor, mesmo dispondo de menos dinheiro para comprar comida: “Comprar um pacotinho desses talvez seja a solução. Comer um a cada dois meses é melhor do que comprar vários de uma porcaria”. A ideia é que o fim da euforia financeira provoque uma aproximação com produtos mais saudáveis, em menor quantidade e menos industrializados. “Você não serve cinco couverts como serve 5 mil. Não me venha contar história. Não tem produção industrial com a mesma qualidade do artesanato.”

Os efeitos sobre a cultura alimentar são apenas um reflexo das muitas mudanças culturais que Laurent espera da crise. Como a ruína do glamour que cercou a profissão de banqueiro na era Gordon Gekko (vilão do filme Wall Street, interpretado por Michael Douglas). “Talvez voltem a colocar as coisas no ponteiro certo.” Os jovens, elo mais fraco da corrente, são as primeiras vítimas da implosão de um mundo em que “se você trabalhar, é um otário. O negócio é manipular os números para ganhar”. Mas também são os primeiros a abandonar as crenças ultrapassadas para tomar as rédeas da situação: “A nova geração está começando a entender o quanto um comportamento alimentar adequado é importante, como relação social e cultural para o equilíbrio e o bem-estar, tanto do indivíduo como da sociedade. Aliás, os dois conceitos estão voltando a ser indissociáveis. A felicidade não vem só do consumo”.

No universo da gastronomia, o maior indício das mudanças próximas está no recente fenômeno dos chefs que renunciam às prestigiosas estrelas do Guia Michelin. Em fevereiro, foi Marc Veyrat, depois de Olivier Roellinger em 2008, Alain Westermann em 2006, Alain Senderens em 2005 e o pioneiro Joël Robuchon em 1996. “Existe algum mal-estar. São pessoas que chegam ao estrelato, mas gritam: ‘Chega!’. Há um processo de transformação na gastronomia e no pensamento. Vale a pena acompanhar. Os próximos dez anos vão ser interessantes.”

Em contraposição aos séculos de tradição do terroir francês, Laurent menciona a chegada relâmpago da alta gastronomia no Brasil, associada à noção de prazer e ao status. “Minha profissão é o metiê de cozinheiro, que poucos gostam de chamar assim. Só falam de chef. É triste, mas nós certamente chegaremos lá um dia: falar de cozinheiro sem ter vergonha.” Nos últimos dez anos, a moda do avental branco e os novos cursos universitários no ramo atraíram a elite brasileira para a profissão. “A mídia associa a gastronomia ao glamour, como se fosse um setor que pertence à classe superior. O chef revelação precisa ter uma cara legal, de preferência vindo de uma família bacana, sobrenome estrangeiro… Ser bem relacionado conta mais do que a competência.”

O esnobismo com que o brasileiro trata da alta gastronomia acaba ofuscando justamente as tradições da terra que poderiam ser a versão brasileira do terroir. Deslumbrados com pratos e cardápios sofisticados, corremos o risco de esquecer nossa “maior instituição gastronômica”: o boteco. Na avaliação de um especialista inquestionável como Laurent, o caldinho de feijão do Jobi, no Leblon é extraordinário e não há prazer melhor do que se deliciar com bolinhos de bacalhau, croquetes e frango a passarinho.

Mas o conceito de pé-sujo não é tão simpático ao francês: “Na verdade, a gente poderia tentar melhorar os botecos…”, ressalva. E emenda com o anúncio de um projeto para um futuro não tão distante: abrir um bistrô em Campos do Jordão para servir a comida na panela, com toalhas de plástico e guardanapos de papel. Simples, mas delicioso, preocupado apenas com o essencial. “Para as pessoas que querem comer bem sem se sentirem complexadas num determinado ambiente. Temos de mostrar o quão importante é a boa comida. Não é questão de etiqueta. Pode usar uma cadeira mais simples, mas que o produto seja rei e que venha satisfazer o cliente.”

O modelo é inspirado em um restaurante de Dombes, ao pé dos Alpes, perto de Lyon. Levado por Roger Jaloux, seu antigo chefe no restaurante de Paul Bocuse, ele ficou maravilhado com as rãs fritas, servidas sem o menor vestígio de frescura. Apesar de localizado em região erma e pantanosa, a casa estava lotada. “Se o restaurante está cheio, é porque as pessoas estão querendo o produto verdadeiro, simples e benfeito… Nada mais.”

Para ser um bom cozinheiro, insiste Laurent, só há um caminho. O rigor da formação é indispensável e incontornável. O maior fruto dessa convicção foi a abertura, em 2000, da Escola das Artes Culinárias Laurent, que formou chefs reconhecidos Brasil afora. Em 2004, ele sublinhou seus princípios com o livro Cartas a um jovem chef (Editora Alegro), em que narra sua trajetória e insiste na necessidade de trabalhar duro para crescer. Mais uma vez, o exemplo vem de Bocuse, que impunha à sua cozinha uma hierarquia e uma disciplina que beiravam o marcial: rigidez de horário, limpeza, organização.

Nada mais oposto a essa mentalidade do que o jeitinho brasileiro, que busca sempre a saída mais fácil para tudo e, depois de trinta anos, faz suspirar o professor francês. Ele não consegue se habituar à desordem: “Até hoje, é a minha maior dificuldade, o que mais me aborrece, ainda, nesse país. É a única coisa que, às vezes, me dá vontade de mandar tudo à merda e ir embora”. O brasileiro, na avaliação do chef, tende a crer que pode fazer sucesso da noite para o dia e fica maravilhado com os raros casos em que isso acaba acontecendo – embora não costume durar muito. “Nossa obrigação é mostrar ao jovem que tem de fazer benfeito, mas, para isso, é preciso aprender e investir seu tempo. Não é mudar o cardápio de azul para vermelho que faz o cozinheiro bem-sucedido.”

Sua crítica mais ácida é dirigida contra programas de televisão que, ao redor do mundo, fazem crer que podem ensinar a conduzir um restaurante com uma hora por semana de lições à distância. “Vi o vídeo de um chef que demonstrava a reação de mayard (caramelização de proteínas) com um soldador e um maçarico. Puro marketing. Ele poderia ter usado uma frigideira ou uma grelha. O que esse cara quer? Não somos estrelas. O restaurante não é um teatro.”

Só na “escola prática”, diz o chef, é possível aprender a manejar os instrumentos. A cozinha, afinal, é uma arte do corpo. “É uma espécie de dança motivada pelo desejo de felicidade, pelo gosto de agradar. É muito mais fácil cozinhar para alguém de quem você gosta.” Para alguns colegas que ele cita, mas não diz o nome, pouco importa quem é o cliente que receberá o prato. Não é o seu caso.

Com essa filosofia, chega a surpreender que Laurent tenha conseguido agradar o cliente brasileiro, que, na sua opinião, ainda tem dificuldade em lidar com os serviços e, muitas vezes, age de maneira arrogante. “O brasileiro odeia gente que responde. É o ranço da cultura de ter sempre empregada doméstica para tudo.” Sem entender que um restaurante é uma empresa como todas as outras, o cliente muitas vezes trata prestadores de serviço como serviçais e quer que tudo seja apresentado segundo sua conveniência. Laurent ironiza: “Então eu vou entrar na sua empresa, vou bater na sua porta, vou colocar o pé na sua mesa, tomar o seu cafezinho, e depois vou-me embora, dizendo muito obrigado e pronto…”.

Ele se lembra de quando parou de servir refrigerantes em seu restaurante de São Paulo e a imprensa publicou um artigo dizendo que “o chef pirou…”. Um cliente, irritado, chegou a bradar que poderia comprar o restaurante inteiro, emendando como o tradicional: “Você sabe quem eu sou?”. Ouviu como resposta: “Pode mesmo comprar tudo, menos uma coisa – eu”.

Os desentendimentos com clientes brasileiros são um dos assuntos que mais divertem Laurent. Aos risos, ele conta de uma atriz global que lamentou a ausência de diet Coke, argumentando que era diabética. Sem se deixar abalar, ele replicou que a cafeína é tão negativa quanto o açúcar para uma pessoa diabética. Se a questão fosse água com bolinhas, ele poderia lhe oferecer uma garrafa de Perrier. “Ela não voltou mais. Ficava hospedada na frente do restaurante e adorava o nhoque de milho verde. Ligava para o maître pedindo o nhoque, mas que ele não dissesse para quem era… Esse chato desse francês!”

Quem frequentava o restaurante homônimo de Laurent tinha de sair de casa disposto a ouvir respostas espirituosas, mesmo que o dono não estivesse presente. Seus olhos brilham ao se lembrar de um episódio ocorrido com Paulo Maluf em meados da década de 1990: “Ele trouxe seu próprio vinho porque sabia que eu não teria uma garrafa tão cara na minha adega. E não tinha, mesmo. Ele queria abrir a própria garrafa, então perguntou ao meu sommelier: ‘posso tomar o seu lugar?’. Então, meu sommelier foi extremamente perspicaz e respondeu assim: ‘Certamente, dr. Paulo. É muito mais fácil o senhor tomar o meu lugar do que eu tomar o seu’. Achei extraordinário!”

Atrás das panelas, o francês filho de sindicalista acompanhou momentos decisivos da história de seu país de adoção, sempre com o olhar observador de alguém que vem de fora. Preparou o jantar entre Fernando Collor e Roberto Marinho antes das eleições de 1989, em que o poderoso patriarca das Organizações Globo deixou o futuro presidente esperando à entrada, com toda paciência. Em 1985, uma televisão foi instalada na cozinha para que os cozinheiros do Saint Honoré pudessem acompanhar o enterro de Tancredo Neves, apesar dos protestos da direção do hotel.

Entre os estrangeiros, a lembrança mais marcante foi a visita de François Mitterrand ao Rio de Janeiro em 1985. O presidente socialista da França dominava como ninguém a arte de valorizar a própria imagem. Mandou desligar o ar-condicionado do restaurante lotado de empresários e políticos brasileiros, atrasou-se meia hora para o almoço e chegou imponente e impávido, perante os convivas derretidos em suor. Ao final da refeição, presenteou o chef compatriota com um elogio e uma caneta, na qual estava gravado o brasão que o presidente havia inventado para si próprio.

O brasão acabou atribuindo ao pequeno objeto um valor que Mitterrand dificilmente imaginaria. Serviu para reatiçar a discussão política na família Suaudeau. Laurent repassou o presente para seu pai, comentando: “Então é isso o seu socialismo?”.

Na verdade, a reconciliação do sindicalista com o cozinheiro já havia acontecido. Atingido por um derrame, pouco antes da mudança de país de Laurent, o pai ficou com os movimentos do corpo prejudicados, e só foi visitar o filho no Rio de Janeiro uma vez, em 1981. O período coincidiu com uma das visitas de Paul Bocuse, que assinava o cardápio do Saint Honoré e fazia questão de conferir ao menos quatro vezes por ano como as coisas andavam em suas filiais. Laurent, aos 24 anos, conhecedor da personalidade crítica do pai, temia o que pudesse acontecer quando os dois senhores se encontrassem. No alto do hotel Le Méridien, tendo por fundo a vista do mar de Copacabana, eles não trocaram palavra. Depois, pai e professor se abraçaram e choraram. André Suaudeau viveu até 1996.

A conversa parisiense se interrompe por alguns instantes e, em seguida, envereda por comparações entre a França e o Brasil, prática comum em pessoas que vivem divididas entre nações. A diferença entre os dois países que atinge mais diretamente a família do chef é a forma de acolher os estrangeiros. Seu avô, ele se recorda, jamais se sentiu francês e só pediu a nacionalidade em 1965, oito anos antes de morrer. Já Sissi, muitos anos mais tarde, só obteve a documentação francesa quando ele soltou os cachorros contra o consulado:

“Se o problema é nacionalidade, eu devolvo meu passaporte e vou pedir a documentação irlandesa. Só quero que saibam que meu pai era líder sindicalista, defendeu a indústria francesa. Meu avô foi preso pelos nazistas. Eu sirvo a gastronomia francesa, representando o maior chef do país (Paul Bocuse, na época). E estão questionando a nacionalidade?”

O Brasil, ao contrário, é um país que acolhe o estrangeiro e o assimila com muita facilidade. Laurent sabe bem o que é o conceito de antropofagia, ele que é uma espécie de bispo Sardinha bem-sucedido. O sucesso de sua cozinha se deve ao fato de entrelaçar o brasileiro e o francês, em uma feliz antecipação do que viria a ser o fusion, com a ressalva: “Fusion, não confusion“.

Ao mesmo tempo, o chef ainda vê no modus operandi da política brasileira um empecilho para o desenvolvimento do país. Na França, ele tem prazer em assistir a programas de debates políticos na televisão, onde líderes sindicais – como seu pai – expressam livremente suas ideias, argumentam com autoridade e ouvem respostas no mesmo tom, sempre com respeito à opinião alheia e ao direito de torná-las públicas. No Brasil, o debate ainda não atingiu esse grau de maturidade, possível resquício dos tempos de ditadura. “A expressão não é tão livre. Essas coisas são muito bem administradas e manipuladas ainda, para que não se faça barulho demais. Não acabou aquele ‘vá com calma, hein!’ do tempo da censura.”

No futuro que Laurent vislumbra, a capacidade de misturar influências e culturas, isto é, ser fusion na sociedade como um todo, tanto quanto na cozinha, vai ser fundamental para a sobrevivência de todos os países. A França, que recebe imigrantes de todos os continentes, mas não consegue integrá-los nem aceitá-los, terá de aprender. Já o Brasil, apesar de naturalmente inclinado a abrir os braços para a diferença, precisará lidar com ela dentro de sua própria sociedade.

Laurent se prepara para aproveitar as últimas horas de sol para passear por Paris, seu maior prazer na cidade que considera a mais linda do mundo. “Que me perdoem os ingleses, mas o Buckingham Palace…” Na capital francesa, ele jamais vai ao teatro ou ao cinema, porque caminhar pelas ruas e observar a arquitetura é mais agradável. Reclama que não pode caminhar assim em São Paulo, com as ruas esburacadas e o desrespeito ao pedestre. “A gente paga tanto IPTU… O que esses caras fazem?”

Mal se levanta, porém, o chef toma nas mãos um dos livros que está lendo. Há tempo para uma última tirada irônica: “Quantos chefs no Brasil vão comprar um livro do Jacques Attali ou sobre a Revolução Francesa? Estão mais para revista Caras”. De repente, o português é obrigado a ceder a vez em definitivo ao francês, que flui em uma torrente apaixonada. Ele está comentando passagens da obra, criticando eventos da revolução e ironizando a política de seu país. A tarde de feriado já está no fim e seu passeio por Paris terá de ficar para outro dia.


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