Blumenau, 365 dias depois

Primavera de 2008. Por mais de 50 dias, a chuva não deu trégua a Santa Catarina. Todos os dias se noticiava uma enchente aqui outra ali, um desmoronamento acolá. Até que no dia 22 de novembro a terra sucumbiu. Morros vieram abaixo, cidades inteiras ficaram debaixo d’água, 135 pessoas morreram, mais de doze mil ficaram desabrigadas. Os prejuízos para a região nunca serão totalmente calculados.

Blumenau, que já foi conhecida como a cidade das enchentes por causa das inundações de 1983 e 1984, chegou a criar uma festa, a Oktoberfest, há exatos 25 anos, para levantar o ânimo e a economia da cidade depois das tragédias. Nada, porém, se iguala ao que aconteceu no ano passado. As enxurradas foram as grandes vilãs. Segundo a Defesa Civil de Santa Catarina, além das 24 vítimas fatais, o município registrou 20 mil desalojados, mais de 3.500 desabrigados e 18.150 residências danificadas.
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Dessas vítimas, hoje, cerca de mil pessoas vivem em seis moradias provisórias, criadas pelo governo municipal para atender a população que perdeu o único imóvel que tinha e não se encaixa em outros programas sociais, como o renda aluguel – cerca de R$ 300 concedido a 86 famílias. consideradas ainda mais vulneráveis.

Dona Esaltina Pereira, 54 anos, é uma nas que não tem acesso ao benefício. Sentada à mesa do refeitório da moradia da Rua 2 de Setembro, com uma fita branca amarrada no pulso que diz “Nenhum mal te sucederá”, ela se anima ao saber que alguém quer ouvir a sua história. “Ninguém fez isso até agora.”

Fazia dias que a casa dela dava sinais de que não suportaria a pressão das águas que encharcavam o solo. Pequenas cascatas escorriam pelas paredes, sem que ela pudesse, ou quisesse, entender por quê. Até que às 10 horas da manhã de sábado, 22 de novembro, a natureza se fez entender.

Sem individualidade ou perspectivas
Quando se lembra do dia que mudou por completo sua vida, os olhos da ex-empregada doméstica se enchem de lágrimas e ela gesticula sem parar para se expressar. É como se toda a cena estivesse passando novamente em frente a seus olhos.

Tudo começou com um forte estrondo, ela conta, mexendo os braços, imitando a fúria do solo que levou tudo. “Levantou um bico de terra, que subia e descia carregando tudo que tinha pela frente.” Os olhos arregalados e a ansiedade para contar sua tragédia mostram que aquele dia continua vivo na memória da senhora de largos quadris, que ocupa, com o filho Rai, de 13 anos, um dos cômodos do abrigo. Eles fazem parte de uma das 38 famílias da moradia do Itoupava Norte que, desde novembro de 2008, têm como endereço um lugar improvisado, quase nenhuma individualidade e poucas perspectivas.

Esaltina e Rai estavam na cozinha quando tudo aconteceu. Viram o vasto pomar, com pitangueiras, pés de araçá, laranja e limão, que ficava atrás da casa, ser arrastado e levar o resto da casa. Da construção e do pomar só sobrou um pé de limão e uma cozinha pendurada no barranco.

Desde aquele sábado, os dois já se mudaram cinco vezes. Perambularam por abrigos improvisados pela Defesa Civil em igrejas e escolas até chegar à rua 2 de Setembro, em março, e de onde não sabem quando vão sair. “Estou sem forças, tem dias que passo o dia inteiro sentada, vendo TV. Não tenho ânimo pra nada.”

Dona Esaltina não perdeu somente a casa e o terreno onde morava. Ela sofre de artrite e outras doenças e, por isso, desde que um problema na coluna foi diagnosticado, guardou todo o dinheiro que podia para construir a casa e garantir uma renda para quando não pudesse mais trabalhar. O aluguel de três quitinetes rendia cerca de mil reais por mês, que, somado à aposentadoria por invalidez, lhe proporcionava uma vida tranquila. Hoje, o salário mínimo que recebe da Previdência Social mal dá para os remédios.

Por enquanto, ela confia seu destino a Deus. Evangélica, além da fita no pulso, estampa sua fé nas paredes do quarto, com dizeres bíblicos e desenhos de cruzes.

Guardanapo de crochê
Em outro ponto da cidade, as histórias se assemelham. Desde 2008, a vida de dona Zélia Rodrigues da Silva, 58, é uma grande interrogação. A primeira delas, quando debaixo de uma parada de ônibus via sua pequena casa ser carregada pela água foi: “E agora?”.

A ex-diarista, agora aposentada, vive desde fevereiro na moradia provisória do bairro Garcia, a mais populosa das seis existentes na cidade. A mulher de cerca 1,5 m de altura, cabelos curtos e cacheados, é conhecida como a invocada do pedaço. Se as coisas não estão de acordo, reclama. Ela se defende dizendo que jamais esconde a verdade e se é para falar, que seja “na cara”.

Dona Zélia mora sozinha em um dos quartos mais limpos e organizados da moradia. O cômodo de pouco mais de 20 m2 é dividido em três ambientes – cozinha, sala e quarto – cada um cuidadosamente decorado com guardanapinhos de crochê e outros badulaques. Até os puxadores da geladeira receberam enfeites. Mas mesmo morando sozinha, a casa está sempre cheia de netos e as filhas, que moram no mesmo local, em diferentes andares, vêm sempre tomar um cafezinho.

Até chegar ao cômodo onde está hoje, foi um longo caminho. Primeiro, toda a família dividiu, junto com vizinhos, a única casa que não havia desmoronado no bairro. Eram mais de 30 pessoas vivendo sem luz e água. De lá, foi para uma igreja, depois para uma escola, até que finalmente foi para a moradia.

Sua vida renderia um roteiro digno do mais puro drama. Uma casa que quase se perdeu na enchente de 1983, logo depois o marido morreu, há cerca de cinco anos uma das filhas, o neto de seis meses e o genro morreram em decorrência da Aids, recentemente o filho foi preso por envolvimento com drogas e, finalmente, a casa que se foi, deixando uma dívida até 2011, mais de 20% da sua renda, com o financiamento da reforma, que ela nem teve tempo de desfrutar. Não é à toa que seus problemas de saúde se agravem constantemente.

O único assunto que faz dona Zélia sorrir é quando se fala da casa para onde ela quer mudar. Mas a falta de perspectiva, de uma data, a faz murchar novamente e, com os olhos vertendo lágrimas, se pergunta quanto tempo ainda terá de esperar.

Uma prole e tanto
Na mesma moradia de dona Zélia, mas no maior dos quartos, vive a família de Jorge Luiz e Luciana da Silva. O seu Kikinho não é conhecido só pelo apelido, mas também pela grande prole. São dez filhos e mais um que deve chegar em dezembro. Aos 39 anos, ele tem uma escadinha de descendentes que começa com a filha de 19 anos, seguida dos irmãos nascidos praticamente de ano em ano.

O jardineiro que já chegou a ganhar R$ 2 mil por mês, hoje não tem ânimo para trabalhar. Perdeu o sono, a fome e a tranquilidade. Seu Kikinho é um pai severo, que chega a fazer os filhos se ajoelharem no milho quando desobedecem, e não se conforma com a condição a que a família está submetida.

O que mais o entristece e preocupa é a exposição dos filhos a riscos que acredita não existirem onde antes moravam. Não é fácil entender o que ele fala. O forte sotaque, o barulho das crianças brincando lá fora e o baixo volume da sua voz me fazem pedir que repita diversas vezes a mesma resposta. O que o deixa ainda mais encabulado. É difícil falar sobre o assédio que os filhos sofrem. Um deles chegou a receber uma oferta de R$ 50 para entrar no quarto de um vizinho.

A casa de 6 m x 4 m não caiu, mas foi interditada pela Defesa Civil depois que um dos pilares de sustentação se quebrou. Ou a família toda saía, ou os pais podiam perder a guarda dos filhos. Sem muita escolha, a família foi da capela para a escola e de lá para uma moradia e depois para outra. O pouco que ficou na residência foi roubado.

Tudo o que seu Kikinho quer é uma casa para chamar de sua. Um barraco de lona serviria para ele, que mal consegue levantar os olhos de tanta tristeza. Magro, triste e envergonhado, ele mal para em pé. O abatimento está na cara de cada um dos filhos que vai cercando o pai quando um estranho entra no pequeno cômodo.

Grandes acampamentos
Embora as moradias provisórias de Blumenau tenham já sido consideradas modelo na América Latina, estão longe de ser um lugar ideal para se viver, criar filhos e tocar a vida adiante depois de uma tragédia. Cada moradia tem sua particularidade, mas todas mais ou menos a mesma estrutura. A maioria é basicamente um galpão, dividido em cômodos por chapas de madeirite. Os banheiros são todos coletivos, a maior parte improvisada dentro de contêineres, inclusive os chuveiros. Isso significa que não importa a idade, o estado de saúde ou o quanto esteja frio, é preciso sair do seu quarto levando toalha, sabonete, xampu, ir até um contêiner, tomar banho e voltar, carregando toda a tralha novamente para o quarto, todos os dias.

As lavanderias também são coletivas e o uso das máquinas de lavar obedece uma organização estabelecida pelos próprios moradores, ou seja, quem pode usá-las durante o dia, que o faça até as 18 horas, depois deste horário é a vez de quem trabalha de manhã e à tarde. Muitas moradias também têm varais coletivos, mas poucos têm coragem de deixar suas roupas à mercê de vizinhos que mal conhecem. O jeito, muitas vezes, é colocar para secar atrás da geladeira do quarto, que, sem janelas, acaba cheirando muito mal.

A cozinha coletiva também gera inúmeros transtornos. Os fogareiros de duas bocas, doados pela Cruz Vermelha Internacional, ficam dispostos em grandes mesas em forma de “U” e quando chega a hora de preparar as refeições, a exemplo da hora do banho, é preciso carregar todos os ingredientes de um lado para outro. Se esquecer o sal, tem de voltar para buscar. E nem sempre as distâncias são curtas. No caso da moradia do Garcia, algumas cozinhas ficam em diferentes andares, então haja perna para subir e descer escadas o tempo todo. Isso sem contar a desconfiança. Segundo os moradores, na hora de cozinhar, as panelas não podem ser deixadas sozinhas, caso contrário os bifes podem misteriosamente ser trocados por alguns pastéis e, na pior das hipóteses, não sobra nada. Para lavar a louça, há algumas pias próximas aos fogareiros.

Quando chega a hora de cozinhar, e mulheres, homens e crianças se aglomeram nas grandes cozinhas, o ar se contamina e o cheiro de gordura se espalha por todos os cômodos.

Em cada uma das moradias, funcionários da prefeitura trabalham na organização e na elaboração de atividades, como oficinas de artesanato e brincadeiras para as crianças, são os chamados educadores sociais presentes 24 horas por dia. Além deles, cada uma conta com um coordenador que tem funções semelhantes às de um síndico em um condomínio. A grande diferença é que nas moradias eles ainda podem interferir no dia a dia da família, como nos casos de alcoolismo, violência doméstica e até mesmo quando a higiene e a limpeza do local não estão adequadas.

Não há nada que se assemelhe mais à vida nas moradias do que grandes acampamentos. Estes, porém, costumam ser mais curtos e também por isso, mais divertidos.

A maior e mais populosa moradia provisória é a do bairro Garcia, onde vivem dona Zélia, seu Kikinho e mais 113 famílias, cerca de 470 pessoas. O prédio de três andares já abrigou uma faculdade e hoje é o que oferece as melhores condições de vida. Cada andar tem banheiros masculinos e femininos, muitos cômodos têm divisórias de concreto, alguns têm até janelas e a cobertura não é de alumínio, o que ameniza consideravelmente o calor.

Enquanto isso, a moradia da Rua 2 de Setembro, onde vive Esaltina, é, segundo moradores de outros locais, a que tem as piores condições. O local é escuro, coberto com folhas que se assemelham ao alumínio, o que piora a sensação de calor abafado do verão de Blumenau. Os quartos são bem pequenos, todos divididos por uma espécie de placas de madeira, recentemente pintados, que não garantem qualquer privacidade de nenhum dos lados das finas paredes. Quando se entra lá, a sensação é de sufocamento.

Todos os locais contam com uma espécie de estatuto, criado pelos moradores, que estabelece regras dos mais variados tipos. Há livro de entrada para não-moradores, horário de silêncio e escala de limpeza das áreas comuns.

A convivência e a desconfiança são mesmo os maiores problemas nas moradias. Mesmo que, antes em suas comunidades, todos tivessem de conviver com vizinhos, nesses locais a proximidade e a obrigatoriedade de dividir espaços comuns têm aumentado consideravelmente o estresse de quem já está com os nervos à flor da pele. Não há quem não reclame que o vizinho não limpa o corredor, da fulana que não cumpre a escala, do ciclano que emporcalha o banheiro e assim por diante. Fora as pregações religiosas, xingamentos e brigas em pleno corredor. Mais trabalho para o coordenador que tem de ouvir as reclamações e muitas vezes apartar as brigas.

Pelo grande estresse vivido desde a tragédia, a maioria esmagadora dos moradores tem como assunto principal algum tipo de doença que sofrem. Diabetes, pressão alta, artrite e principalmente depressão.

Mesmo assim, o governo municipal enfatiza que, embora as condições não sejam ideais, muitas pessoas têm nas moradias provisórias muito mais do que teriam se estivessem em suas casas de origem. Além de luz, água e gás que são fornecidos para os moradores, o grande benefício, segundo a prefeitura, é a assistência dos educadores sociais. De acordo com a Secretaria Municipal de Assistência Social, da Criança e do Adolescente, os gastos com as moradias ultrapassam a cifra dos R$ 10 milhões. Estima-se que R$ 5.7 milhões sejam gastos até o final do ano somente com água, luz e gás. E o restante com despesas, como o aluguel de janeiro a dezembro de 2009 e a reforma dos imóveis. Cinco milhões foram recursos do Governo Federal e o restante bancado pelos cofres da prefeitura.

Promessas
A assistência das moradias provisórias não parece ser suficiente para os que perderam o pouco que tinham. Logo depois da tragédia, muito se prometeu. A construção e a entrega de mil casas até o final de 2009 foi várias vezes anunciada pelo governo municipal e criou enormes expectativas nos desabrigados. Até agora, nenhum projeto saiu do papel. A previsão, segundo a prefeitura, é de entregar as primeiras unidades até o fim de março de 2010. No total, devem ser construídas cinco mil unidades, duas mil delas com início das obras previsto ainda para 2009.

Os recursos para a construção dos imóveis ainda serão buscados no Programa Minha Casa Minha Vida, do Governo Federal. Cada família deve arcar com o financiamento de seu imóvel, o que tem gerado duras críticas, já que os desabrigados acreditam que tenham direito a um imóvel gratuitamente uma vez que já foram proprietários de um imóvel e não podem arcar com a compra de mais um. A prefeitura justifica o atraso das obras pela dificuldade de encontrar terrenos com segurança contra enchentes e deslizamentos de terra na cidade, além dos trâmites legais e burocráticos para o investimento.

Enquanto isso, dona Zélia faz a pergunta que mais tem tirado seu sono: “Será que eu vou viver até entregarem essas casas? Tenho medo de morrer aqui”.

E seu Kikinho, assim como a vizinha, também tem uma grande pergunta: “Onde nós vamos parar?”.


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