“O Boni se levantou, foi até a cozinha, pegou o pano de chão, recolheu os cacos de louça e a comida. Deu a volta na mesa e olhou para mim fazendo uma careta de safadeza, de quem ia aprontar. Aí, levantou os braços e fingiu que ia torcer o pano em cima da cabeça do Ed, que ainda estava sentado, jantando, de costas para ele. Só que nesse exato momento, nosso ‘pai’ (assim o Ed queria que o chamássemos) virou pra trás e deu-lhe um flagra. Foi um branco geral. Ed se levantou, foi até o quarto, pegou um revólver e bradou:
– Vou matar este garoto! Hoje eu acabo com a raça dele…”
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Começa assim o ainda inédito livro de memórias do irmão de Boni, que só não foi assassinado pelo padrasto porque fugiu com a mãe e o irmão para São Paulo. Boni tinha quinze anos e seu irmão Guga, oito. Tela Quente é o nome provisório do livro.
“Aos 15 anos” – continua Guga de Oliveira – “eu tinha amigos cafetões, prostitutas com gilete na bolsa, bebuns e jogadores de sinuca e carteado.”
Office-boy da Varig (o bordão Varig, Varig, Varig é do Boni), crítico de cinema, modelo-ator, locutor, gerente da editora Abril, publicitário em várias agências, Guga ganhou todos os prêmios que um cara desses pode ganhar. Teve uma produtora de filmes (a Blimp, responsável pelos mais premiados Globo Repórter), dirigiu e montou quatro redes de televisão – Tupi, Band, Record e CNT.
No meio da montagem da TV Jornal do Brasil, teve um infarto. Seis meses depois, salvo “milagrosamente”, graças a médicos competentes, muito medicamento e muitos dólares em seis meses de UTI, começou a escrever suas memórias.
Embora sejam histórias aparentemente avulsas, elas traçam, no conjunto, a trajetória de dois irmãos criados em condições precárias e sem acesso à educação formal que chegaram aos postos mais elevados da televisão brasileira.
Não é um livro de humor, mas um livro bem-humorado. Dá a impressão de que só coisas engraçadas acontecem com o Guga.
No tempo das vacas magras, um azarão em que apostara estava prestes a ganhar o páreo, na Cidade Jardim, e ele a ganhar uma bolada, quando um turfista aloprado se joga na pista e põe tudo a perder.
Outra feita, ele está preparando a transmissão da corrida de Fórmula 1, em Watkins Glen, quando é informado, em cima da hora, que tudo teria de ser cancelado por causa de um certo Paul Newman. “É um cara com o mesmo nome do ator?”, perguntou Guga. “Não, é o próprio ator”, lhe informam.
Depois de duas exibições com ibope baixo, o dono da TV Manchete, Adolpho Bloch, pede a Guga, aos prantos, a rescisão do contrato do seriado Joana, sem multa. “Como é que eu ia resistir a um velho de 80 anos chorando?”, pergunta Guga, que concordou.
Tipos como esses e suas estranhas reações aparecem às pencas nas páginas de Guga. Tom Jobim o chama para ouvir em casa uma “composiçãozinha nova”. Logo depois dos primeiros acordes de “Águas de março”, a mulher de Tom os põe na rua aos berros.
Pavarotti recebe Guga no camarim e em vez de falar, como fazem todos, ele conversa cantando.
Seu amigo, o cineasta Luiz Sérgio Person pede que ele obtenha com seus amigos da Volks autorização para filmar na fábrica. Só que no filme pronto – Guga fica sabendo depois -, o personagem é um diretor picareta que trabalha na Volks e os amigos de Guga por pouco não fazem com ele o que o padrasto queria fazer com o Boni.
Divirta-se, a seguir, com três histórias de Guga.
“Imagine a cena: João Gilberto sentado em uma cadeira de dentista, com o violão na mão cantando: “Se você disser que eu desafino, amor…”
Em 1978, fui convidado pelo Mauro Salles para ser superintendente da Rede Tupi, o grupo de comunicação de Chateaubriand não estava bem das pernas… A Tupi tinha uma tradição muito forte em novelas, desde O direito de nascer. Tinha estúdios, bom elenco, bons diretores, bons iluminadores, bons técnicos, mas a administração era um desastre.
Fui para lá em um momento de crise, quando o colegiado – ou os “comunheiros”, como eram chamados por Assis Chateaubriand – lutava por migalhas. Mas, de qualquer forma, a televisão ainda unia alguns gananciosos, já que os jornais se tornaram independentes, as rádios independentes. O império de comunicação que Assis construiu jamais será revivido no Brasil. O complexo Globo Comunicação é um “genérico” perto do complexo que o Chateaubriand montou. Rede de jornais, rádios, televisão, revistas. Era um império de comunicação com mais de 150 empresas.
Apesar da tradição na dramaturgia, que era muito boa, o setor musical era precário. O grande sucesso era o Benito di Paula, que o meu amigo Matraga chamava “Maldito de Paula”. O jornal era uma bosta, sem credibilidade, pau mandado da ditadura. Programação visual, um lixo. Enfim, era preciso mexer em tudo.
A Bossa Nova estava completando vinte anos. Oficialmente, seu nascimento foi estabelecido em 1958, com o disco Chega de saudade do João Gilberto (hoje já faz mais de meio século). Era um aniversário, uma data redonda, como nós chamamos. E fazia mais de quinze anos que o João Gilberto, tido como criador da Bossa Nova, não vinha ao Brasil.
Por meio de seus empresários, fiz uma proposta para ele fazer um espetáculo aqui no Teatro Municipal de São Paulo, pelo qual ele receberia o cachê em dólares e a Tupi ficaria com os direitos de transmissão pela televisão. O empresário me respondeu que por vinte mil dólares ele viria. Em 1978 era uma nota preta. Além disso, fez algumas exigências que não eram difíceis de atender. Eram esquisitas, mas não difíceis.
A primeira era que ele queria ficar no Caesar Park Hotel. Isso não seria problema nenhum, pois até dava para tentar uma permuta. Queria as ligações internacionais que fizesse todas pagas pela Rede Tupi. Ele ama um telefone, mas também não foi considerado nenhum absurdo. Tinha de ter uma cozinheira baiana no hotel para ele comer moqueca, vatapá, xinxim, essas comidas típicas baianas que ele não via há tempos… E uma das exigências mais esquisitas de todas era uma mesa de pingue-pongue – isso mesmo, uma mesa de pingue-pongue – no aeroporto. Ele estava com saudades de jogar pingue-pongue com Caetano Veloso e exigiu o Caetano lá para recebê-lo para, imediatamente após o desembarque, jogarem uma partida de pingue-pongue.
A produção achou aquilo um absurdo, houve uma certa reação, eu falei:
– Isso é ótimo pra gente, porque vamos gravar essa partida dos dois e usar pra promover o espetáculo.
Tudo acertado, veio o João Gilberto para cá. Claro que a tal mesa de pingue-pongue foi providenciada e trouxemos o Caetano Veloso da Bahia, que esperou o João descer do avião. Jogaram pingue-pongue e foi uma festa! A imprensa há muitos anos não via o João no Brasil. Ele era quase que adorado aqui e fora do País, como é até hoje: um nome polêmico, mas respeitadíssimo. Era disso que eu precisava.
O espetáculo era no Teatro Municipal, em um sábado, às nove horas da noite, com transmissão direta, ao vivo para todo o Brasil. O João sempre teve e tem até hoje esse estigma de não cumpridor de horários, de criador de casos, de parar espetáculo no meio por causa do ar condicionado. É uma pessoa difícil de tratar, mas todas as suas exigências tinham sido cumpridas. Até cedi a minha secretária Eliana, que era baiana (excelente cozinheira, aprendeu com a mãe), para ficar no hotel fazendo as comidinhas que ele quisesse.
Eliana me passava informações, era quase uma espiã, porque o João se trancou no quarto do hotel e não saiu durante os quatro, cinco dias antes do show. Ninguém o via. Às vezes, ele pedia uma pizza e pegava por baixo da porta, porque nem assim abria. E não colocava os pratos usados, com restos de comida, do lado de fora… Aquele quarto foi ficando um inferno. Um nojo.
Bom, no dia do espetáculo, sábado à tarde, a ansiedade era grande. A cenografia batia prego no Teatro Municipal, pintava o cenário. Foram convidados o governador, o prefeito, o padre, todos os que representavam alguma coisa no Estado de São Paulo, além dos ricos e famosos, para assistir ao espetáculo de João Gilberto.
Cinco horas da tarde, telefona minha secretária, a baiana:
– Seu Guga, ele falou que não vai fazer o espetáculo hoje à noite.
Correu um frio na espinha… Só depois de alguns segundos, consegui perguntar:
– Mas o que está acontecendo?
Ela contou:
– Ele está com problema nos dentes, está com dor de dente…
– Dor de dente?! Que porra de dor de dente?!
Peguei o carro e fui voando para o Caesar, que ficava ali na Rua Augusta. Cheguei lá perto das seis horas. Bati forte duas ou três vezes. João abriu a porta:
– Como vai, Guga? Tudo bem?
– Tudo bem…, mas o que está acontecendo, João?
– Eu tô com um probleminha, uma obturação aqui ó, caiu! Disse ele, mostrando o dente.
Eu falei:
– São seis horas. Vou te levar num dentista, colocar uma massa, e pronto!
Ele quis saber:
– Mas onde é que você vai encontrar um dentista de confiança num sábado a essa hora ?
Pensei “Meu Deus, que merda…”. Então, falei:
– Já sei! Meu cunhado!
João me olhou assustado…
O Cristiano, meu cunhado na época, tinha enchido o saco de cadeira e motorzinho e foi trabalhar comigo em produção. Mas até que era um dentista bem razoável… Algum tempo depois morreu de câncer, novo ainda. Ele chegou rápido e disse:
– Eu ainda tenho meu consultório lá em Santo André, posso fazer essa obturação sem problema nenhum…
O João, ainda assustado, hesitou, mas concordou:
Tá bem, eu topo. Mas vou levar meu violão…
Não entendi o porquê, mas tudo bem! Lá fomos nós para Santo André amontoados em um carro com violão, João e o caralho. Graças a Deus era sábado e não tinha trânsito.
Abrimos o consultório que estava praticamente abandonado. João entrou devagarzinho e, pálido, sentou na cadeira. Cris ligou o equipamento todinho, o João apontou onde estava o buraco da obturação e, como as radiografias feitas ali mesmo mostraram, não havia infecção nenhuma. Era apenas uma obturação que tinha caído. O Cris selou o dente novamente e passou ligeiramente o motorzinho para arredondar as arestas. Eu olhava apavorado para o relógio. Nesse instante, o João falou :
– Me dá meu violão. Agora vou ver se funciona…
Imagine a cena: João Gilberto sentado em uma cadeira de dentista com o violão na mão cantando: “Se você disser que eu desafino, amor…”. Então, ele disse:
– Ó, ó… o “d” do “desafino” tá pegando… “Dz, dz”… Ouviu?
O Cristiano passou o motor mais um pouquinho. E João testava: “Ai, mas que saudades tenho da Bahia”.
– Ó… “da… da…”, o “da”, “da Bahia” tá pegando aqui em baixo…
E zzzzzzzz, motorzinho. O João ficou quase uma hora na cadeira do dentista tocando violão e meu cunhado, com o motorzinho, afinando os “da Bahia”, “Rolley Flex” e outras coisas da Bossa Nova…
Chegamos ao teatro quase oito e meia da noite. Fomos direto para o camarim. Na cadeira da maquiagem, João diz:
– Fiquei muito tempo parado naquele consultório, sinto uma dor nas costas… Acho que não dá pra ficar no palco sentado num banquinho… Não dá pra fazer o show sábado que vem?
O teatro lotado, as câmeras ligadas, o Brasil todo conectado… Perdi a paciência e falei alto:
– Você vai, nem que seja a porrete. São quinze pras nove. Pode se arrumar, colocar sua gravatinha borboleta, afinar seu violão, porque às nove horas você vai estar no palco.
– E se eu não entrar?
– Se você não entrar, eu jogo você no palco.
Então, às nove horas, debaixo de aplausos merecidos, nosso genial intérprete da música brasileira entrou e deu show. Com os dentes perfeitamente afinados.”
“Como hóspede de honra daquele palácio dos prazeres, fui convidado para o café da manhã no jardim. Em primeiro lugar, desceram a escada dois dobermans gigantescos, mas brincalhões”
Bauru, uma próspera cidade no interior de São Paulo, é popularmente conhecida por dois ícones imortais: o sanduíche de queijo, presunto e tomate – que leva o nome da cidade – e o legendário prostíbulo da Eny – o maior bordel brasileiro dos anos 1950.
Era uma manhã de sol de inverno. Bauru sempre foi muito quente. Eu estava sentado em uma daquelas cadeiras rococó de ferro, pintada de branco, à beira de uma monumental piscina e um jardim repleto de verde. Pássaros cantavam anunciando a chegada da magnífica cafetina Eny. Como hóspede de honra daquele palácio dos prazeres, fui convidado para o café da manhã no jardim. Em primeiro lugar desceram a escada, com pelos muito lisos que brilhavam ao sol, dois dobermans gigantescos, mas brincalhões. Atrás, veio uma senhora calçando chinelos estofados, com um vestido até o tornozelo, em cores sóbrias, fechado desde o pescoço, onde saltava aos olhos um enorme e requintado camafeu. Na face castigada pelo tempo, ainda resistiam os traços de uma linda mulher. Os olhos claros guardavam lembranças de toda uma vida de amores, risos, lágrimas… O cabelo, já esbranquiçado, emoldurava seu rosto triste, com um penteado formal e um tradicional coque, preso por um grande pente de osso, bem ao estilo espanhol. Faltava apenas uma rosa vermelha do lado.
Quando ela chegou à mesa posta para o café da manhã, levantei-me solenemente, estendi a mão me apresentando e, suavemente, beijei-lhe a face. Ela apenas sorriu. Sentou-se numa postura elegante, cruzando as pernas cobertas pelo traje comprido. Os cachorros se deitaram a seus pés, ela acendeu um cigarro alongado por uma charmosa piteira e começamos a conversar…
Era 1978, uns trinta anos atrás. Tinha recebido um convite para dirigir a Rede Tupi de Televisão. Eu estava de saco cheio de comerciais, documentários, institucionais e principalmente de ser patrão. Pesava sobre mim a responsabilidade por quase duzentas famílias de amigos com quem trabalhava, meus funcionários. Para comemorar minha despedida rumo à televisão, resolvi dirigir meu último comercial na Blimp Filmes.
O roteiro era uma superprodução – o aniversário de 170 anos de fundação do Banco do Brasil – e exigia uma cenografia de época em um salão de bailes. Cento e setenta casais, com roupas de época e perucas do tempo do Império, dançariam uma valsa de Strauss, executada por uma orquestra de cordas.
Depois de dias de pesquisa, descobrimos em Londrina uma das primeiras agências do Banco do Brasil construídas fora do Rio de Janeiro, cuja arquitetura permitia as adaptações necessárias para as filmagens. Para baixar custos, promovi um concurso local oferecendo como prêmio, aos três primeiros colocados, passagens aéreas para Paris, Nova York e Buenos Aires. Os concorrentes seriam casais vestidos, maquiados e caracterizados com trajes e penteados do século retrasado.
Nosso grupo era relativamente numeroso. Transporte, alimentação e estadia eram apenas alguns dos itens da logística de produção. Somávamos uns quarenta membros entre equipe técnica e artística.
Alugamos um ônibus superconfortável, que enchemos de máquinas, filme e whisky, e caímos na estrada rumo a Londrina – via Curitiba. Estava previsto um pernoite antes da chegada à locação. Depois de algumas horas de descontração no ônibus, um filho da puta – não me lembro qual – gritou:
– Ei pessoal! E se a gente fosse dormir no puteiro da Eny?
Numa gritaria infernal, a galera manifestou sua aprovação numa torcida:
– Eny! Eny! Eny!!!
Para a maioria dos jovens que faziam parte da equipe, o prostíbulo da Eny era uma lenda. Um lugar que só existia nas histórias de tios sacanas e putanheiros renomados. Puteiro frequentado por grandes personalidades, como Jânio Quadros, Adhemar de Barros e ricaços da época. Na hora, calculei as despesas que teria com bebidas e mulheres, mas, como era minha despedida, ordenei ao motorista:
– Direto para Bauru, para a Eny! A rapaziada vai dormir lá!
Parecia gol do Corinthians. A zorra foi geral. Até o motorista entrou na onda.
Na boca da noite, chegamos às portas do “templo do pecado”. Era um casarão soberbo, lustres de cristal iluminavam todas as salas. A piscina também estava iluminada. Em uníssono, o tom gutural da voz de Cid Moreira se despedindo com o clássico “Boa noite e até amanhã” tomava conta de toda a rua e do interior do casarão… Logo em seguida, alguns acordes de violão e a voz de João Bosco cantando “Minha pedra é ametista, minha cor o amarelo…”. Estava começando a novela O Astro.
Na hora da novela das 8 da Globo, a zona da Eny parava literalmente. Todas as putas se reuniam em volta das TVs espalhadas pela casa. A alegria virava silêncio.
Entramos e fomos recebidos friamente. As mulheres pareciam hipnotizadas pela telinha luminosa. Pensei comigo: “Que porra é essa? Estou trazendo quarenta clientes para beber, comer, transar e dormir e ninguém toma o menor conhecimento…?”. Para chamar a atenção da mulherada, falei bem alto:
– Nós somos da televisão! Trabalhamos na televisão!
Nada… Algumas moças, com o rabo dos olhos, lançaram um olhar de desprezo e desinteresse.
Fui crescido e criado na boca do lixo em São Paulo. Morava na avenida Rio Branco, colado com a Timbiras e a Aurora. A putaria na região era ao estilo faroeste. As meretrizes usavam gilete na liga para se defender dos cafetões ou ameaçar algum cliente que hesitasse em pagar pelo serviço. Como chegava tarde em casa, conhecia praticamente todas as prostitutas do pedaço pelo nome e sobrenome. Era amigo delas e não cliente. Do ponto de vista existencial, esse tipo de experiência me deu uma compreensão mais apurada da difícil vida fácil…
Bem, voltemos a Eny: o grande suspense da novela da Globo era o mistério “quem matou Salomão Ayala?”. Não tive dúvidas, gritei de novo:
– Eu sei quem matou Salomão Ayala!
Foi uma correria, uma convulsão. As mulheres, desesperadas, largaram a TV e correram em minha direção: “Quem? Diz quem… Foi o Felipe, não foi?”.
Eu respondi:
– Tratem bem a minha equipe, que mais tarde eu conto quem foi o assassino… Quem sabe conto até o final da novela!
Como estava com fome, fui para o restaurante que ficava à beira da piscina. Pedi um frango à passarinho e uma cerveja. O whisky levei comigo. Não confiava em bebida de puteiro. Lá dentro, a festa começou… Depois do jornal das 11, chamei o garçom, comunicando que todas as despesas do meu pessoal deviam ser incluídas na minha conta. Todas! Ele sorriu e se retirou por alguns minutos. Assim que voltou, disse:
– Reservamos um quarto especial para o senhor. Deseja também alguma moça especial?
Eu respondi:
– Não, obrigado. Estou cansado e vou dormir logo, amanhã temos muito trabalho e muita estrada pela frente.
Ele saiu para buscar as chaves. Quando me entregou, disse gentilmente:
– Dona Eny gostaria de tomar o café da manhã com o senhor, antes da partida, amanhã. Ela quer conhecê-lo.
Pensei: “A famosa Eny quer me conhecer… incrível!”. Respondi ao garçom:
– Claro, claro. Diga a ela que será uma honra!
No dia seguinte pela manhã, lá estava eu frente a frente com a grande cafetina do país. Os cabelos quase brancos davam-lhe um ar às vezes de mãe, às vezes de avó. Ela iniciou:
– Espero que seus rapazes tenham se divertido…
Falei:
– Pelo tamanho da despesa, acredito que sim…
Ela sorriu:
– Estamos atravessando uma crise muito grande.
Eu:
– Crise?
Eny:
– É. Crise financeira e crise moral.
Sem entender nada, perguntei qual o sentido de sua afirmação. Eny continuou:
– Financeira, porque dependemos da lavoura…
Eu continuava sem entender nada…
– Nossos melhores clientes são fazendeiros que dependem de uma farta colheita. O dinheiro circulante vem daí… Quando acontece a entressafra do plantio, isto aqui fica quase às moscas, o dinheiro some.
Fiquei perplexo com a equação que ela havia montado entre putaria e agricultura. Perguntei:
– E a crise moral? Qual é?
Eny:
– Ora, o senhor nunca foi a um motel? Estes nos arredores da cidade… Os motéis estão crescendo muito e, com esse movimento feminista, até a filha do prefeito dá de graça. As mulheres perderam o pudor…
Não acreditava no que estava ouvindo! Uma tese sociológica sobre moral e costumes partindo da maior meretriz do país. Eny continuou, falando suavemente sobre amor e desilusão, passado e futuro. Eu ouvia tudo atentamente, pois era mais uma lição de vida.
Os gritos do diretor de produção interromperam aquele depoimento inesquecível.
– Vamos embora, vagabundos! Todos pro ônibus. Hoje à noite tem filmagem, além disso tem muito chão pela frente… Vai ser foda!
Me despedi da Eny, agradeci sua atenção e confessei ter ficado muito orgulhoso em conhecê-la pessoalmente, que ela era um mito…
O ônibus pegou a estrada de terra levantando um poeirão, deixando para trás a famosa “Casa da Eny”.
Na verdade, eu nunca soube quem matou Salomão Ayala.
Eny Cezarino morreu 10 anos depois, praticamente na miséria, no dia 24 de agosto de 1987, aos 70 anos de idade, no crepúsculo financeiro da catedral da luxúria. Uma de suas frases mais famosas, ouvida no leito de morte, que acredito, deveria estar gravada em sua lápide, era: “Hoje as moças abrem as pernas e eu fecho as minhas portas…”.
“Um silêncio tomou conta de todos.Aquelas quatrocentas caras olharam para mim, como que dizendo: “O que faremos, chefe? E agora?”
Aqueles estúdios de cinema eram gigantescos, quilométricos. Até hoje não existe no Brasil estúdio parecido com os da antiga Vera Cruz. Eles ocupam uma área enorme em São Bernardo do Campo, hoje dedicada a eventos. A produção de cinema não existe mais. Na época não havia espaço semelhante nem mesmo nos Estados Unidos. O pé direito, a largura, as acomodações… Era um sonho paulista, grandioso como sempre: transformar a Vera Cruz na maior empresa produtora de cinema do mundo.
A ambiciosa tentativa obviamente fracassou. A Vera Cruz não tinha em suas mãos o principal: a distribuição dos filmes, que ficou com a Columbia Pictures. Assim mesmo, a experiência deixou alguns resultados positivos para o cinema brasileiro, pelo menos técnica e artisticamente. Financeiramente, foi um desastre.
Em outubro de 1982, a Vera Cruz reviveu seus grandes momentos. Centenas de técnicos penduravam refletores, construíam cenários, pintavam paredes, pisos, o estacionamento cheio de carros… Aquilo era um formigueiro, tanta gente envolvida no projeto que até parecia que íamos filmar de novo E o vento levou…
Todo fim de ano na Rede Globo tem Roberto Carlos. Natal sem Roberto Carlos é o mesmo que Natal sem Papai Noel. O povo brasileiro sabe que na noite de 24 de dezembro o Rei vem e canta seus sucessos. “Quando eu estou aqui, eu vivo esse momento lindo…”. Só depois come-se frango ou peru, dependendo da grana, e as crianças brincam com os presentes. Ou seja, Roberto Carlos é parte integrante do ritual, da cerimônia de Natal no Brasil. Ele está presente em praticamente todas as casas, igual ao bom velhinho.
O especial de fim de ano do Roberto era tradicionalmente produzido pela Central Globo de Produções (CGP) no Rio de Janeiro. Os diretores se revezavam: uma vez era o Augusto César Vanucci, outra vez Miele & Bôscoli, eventualmente o Walter Lacet… Bem, o diretor era aquele com quem o Roberto ainda não tinha se desentendido.
Por questões de temperamento e abordagem dos shows, o Roberto, que sempre foi muito exigente, teve problemas com praticamente todos os diretores artísticos da Globo e exigiu um diretor novo. Ele achava que seus shows estavam repetitivos e sem originalidade, o show do ano seguinte era muito parecido com o show do ano anterior. O que é verdade.
Com Maria Bethânia, Roberto Carlos canta Amiga:
Assim, a Globo propôs gravar em São Paulo e sugeriu meu nome como diretor. Pela primeira vez, o programa seria realizado por uma produtora independente, claro que com o apoio dos recursos técnicos da Globo. A produtora era a Globotec, da qual eu era sócio.
A ideia de São Paulo atraiu Roberto, que tinha certa intimidade com a cidade por causa das raízes criadas aqui com a Jovem Guarda. Supersticioso do jeito que ele é, sentia que a cidade lhe dava sorte, bons fluidos…
Roberto não me conhecia pessoal-mente, mas tinha ouvido falar que eu era um diretor competente, que já tinha feito alguns trabalhos internacionais, como o especial A Billion Dollar Baby, com Alice Cooper. Disseram também que eu tinha feito alguns Globo Repórter premiados e o musical para cinema Som Alucinante, filmado no parque Anhembi, com público de cem mil pessoas, inclusive com a participação dele, Roberto. Enfim, ele sabia que eu tinha afinidade com televisão, cinema e música.
Roberto topou, com a condição de conversar comigo para estabelecer um plano de trabalho e reservou-se o direito de aprovar o script, bem como as locações e as músicas escolhidas por mim.
O primeiro contato imediato aconteceu no apartamento dele no Rio de Janeiro, em frente à praia da Urca. Roberto estava ao lado do piano, em uma sala enorme com vista para o mar. Ele me recebeu excepcionalmente bem e, gentil como sempre, perguntou:
– O que vamos fazer Guga?
Eu disse a ele:
– Olha, Roberto, tenho uma formação mais cinematográfica, não tão ligada aos musicais de televisão. Trouxe comigo uma fita (naquele tempo não tinha DVD) com trechos de alguns filmes musicais que eu considero marcantes na história do cinema. Poderíamos reproduzir esse clima através de suas músicas, enriquecendo o espetáculo sonoro com um visual atraente.
Ele fez uma cara de quem não tava entendendo muito bem e disse:
– Me dê um exemplo do que tem aí nessa fita.
– Aqui tem um trecho de Mary Poppins, onde vemos telhados cenográficos da antiga Londres. É um clássico do cinema infantil. Sei que você tem grande penetração neste público. Além do mais, é um programa de Natal, família. Em seguida vem o Hair…
– Pô, bicho. Você sabe que eu não sei dançar e nem posso…
– Não, evidentemente não pensei em você dançando como o Dick Van Dike, mas acho que a sua empatia é tão grande quanto a dele com as crianças. E talvez convidar uma atriz famosa para fazer a Mary Poppins…
Senti nele uma expressão de dúvida. Ele pediu que eu continuasse. Perguntei:
– Quantas músicas novas você tem para este ano?
– A rigor tenho apenas uma música inédita para o show, que é essa aqui…
E, tocando piano, cantou para mim, pela primeira vez, Fera ferida. “Acabei com tudo, escapei com vida, tive as roupas e os sonhos rasgados na minha saída…“. Em seguida confirmou:
– Essa é a música nova que eu gostaria de incluir no espetáculo.
Pensei e respondi:
– Vou pra casa fazer um roteiro, um esqueleto do que poderia ser… Você gravou quantos long plays?
– Uns 26, 28 long plays até hoje. Quer dizer, dá uma média de um por ano…
Eu disse:
– Vou fazer o seguinte, você manda pra minha casa todos os LPs, do número um da Jovem Guarda ao último que você gravou, para eu selecionar algumas músicas, juntar à Fera ferida… e propor para você um roteiro do espetáculo.
Nessa altura, eu morava na Granja Viana, aqui em São Paulo, em uma casa com muito verde, muita grama… Era a minha fase ecológica.
Recebi os vinte e tantos LPs do Roberto Carlos com, no mínimo, doze músicas cada um. Imagine, mais de trezentas músicas escritas pelo Roberto ou para o Roberto ou com o Roberto.
Ouvi pacientemente os discos e pincei dali algumas músicas mais representativas da carreira do Rei – algumas músicas românticas, algumas eróticas, como Os botões da blusa e Cavalgada, outras místicas, como Jesus Cristo. Minha intenção era dar uma visão geral do artista Roberto Carlos. Apesar de ele ter fama de brega, de trafegar numa classe culturalmente menos favorecida, eu tenho grande apreço por boa parte da obra dele.
Terminei de ouvir as músicas lá pelas dez da noite, quando uma solidão forte se abateu sobre mim. O whisky no fim… Pensei: “E agora, o que fazer com essa seleção musical? Vou dar um tempo e esperar que, mais tarde, altas horas da madrugada, a solução vai aparecer com certeza”.
Acidentalmente, esbarrei em um pôster do Chaplin ao lado da porta do banheiro, em que ele falava sobre a aventura que é viver com muita emoção, muita poesia. Enquanto fazia meu xixi lendo aquelas palavras, veio o estalo: Chaplin morreu no Natal, data do show do Roberto Carlos… O nome dos dois é Carlos – o meu também, aliás. Essas e outras coincidências inexplicáveis… É isso! Vou fazer o show com o Roberto Carlos vestido de Chaplin, homenageando um dos maiores artistas de todos os tempos! No dia em que partiu.
Fui para a mesa de trabalho inspirado e, antes do sol nascer, tinha posto no papel um show de aproximadamente duas horas.
No dia seguinte, fui falar com o Roberto. Expliquei a ideia, o tratamento, quem seriam os convidados (praticamente todos os grandes artistas da Globo, como Regina Duarte, Irene Ravache, Cristiane Torloni, Bruna Lombardi, Reginaldo Farias… Todos com participações especiais no espetáculo). A referência era o musical cinematográfico.
Desconfiado e ao mesmo tempo encantado com a grandiosidade do projeto, Roberto se deu conta de que, pelo menos durante uns vinte a vinte e cinco dias, precisaria ficar disponível para os ensaios, marcação de luz, cenografia, gravações, etc… Ele me disse que costumava gravar o show da Rede Globo em um dia. A orquestra ensaiava, ele entrava no palco, as luzes acendiam… Os ingressos eram doados, alguns atores famosos na primeira fila e em pontos estratégicos da plateia… E ele cantava Emoções.
Falei que dessa vez faríamos diferente, um show visual, crítico, mais politizado. Ele gostou e apostou na ideia. Mas, antes de darmos início ao trabalho, Roberto queria ir para Nova Iorque – onde normalmente grava seus discos -, prometendo voltar com duas ou três músicas novas. A produção se virou e arrumou uma suíte em um hotel de luxo, com piano, sala de espera, etc…
Depois de uns trinta dias, Roberto voltou para São Paulo com quatro músicas inéditas, que dedilhou no piano para mim. As músicas eram: Meus amores da televisão, Fim de semana, Sentimentos (homenagem ao encontro dos três Carlos…) e uma última de nome Amiga, que ele fez especialmente para cantar em dueto com Maria Bethânia.
Definimos e amarramos as músicas aos cenários. A cenografia sempre lembrava coisas de cinema. Por exemplo: gravamos Meus amores da televisão em um gigantesco saloon de faroeste. Bruna Lombardi, Irene Ravache, Regina Duarte, enfim, as maiores estrelas da Rede Globo, todas com roupas ousadas, sentadas no balcão, interpretando as garçonetes ou prostitutas do saloon. O xerife, ou mocinho, não era o Roberto, era o Reginaldo Farias, que entrava sacando suas armas, tudo com muito bom humor, leveza.
Na música Fim de semana, Roberto levava os filhos para passear em um carrossel imenso, feito com carros de verdade, coberto com asas delta. Só caberia mesmo na Vera Cruz… Amiga, com Maria Bethânia, seria gravado numa espécie de boate vazia, fim de noite. Estilo Casablanca. E assim por diante.
Como todos sabem, o Roberto é extremamente supersticioso. Ele, por exemplo, não dá autógrafo com caneta de tinta preta, não passa embaixo de fios e não cumprimenta quem está com roupa marrom. Essas são algumas das centenas de superstições dele. É preciso trabalhar bem com isso para não criar dificuldades de relacionamento com o artista.
Transformei um ônibus em camarim, exclusivo para ele. Troquei todo o interior, que era marrom, para azul. Equipei com geladeira, cama, televisão, para que ele pudesse aguardar as gravações em um lugar confortável.
Um batalhão de técnicos e artistas ocupou basicamente toda a cidade de São Bernardo do Campo. Eram mais de 400 profissionais. Uma frota de táxis full time rodava entre os hotéis lotados e o estúdio da Vera Cruz. Uma logística diabólica. Para dar uma ideia dos problemas envolvidos, servir o almoço era um desafio. No refeitório com cem lugares, tínhamos o turno das 11 da manhã, o do meio-dia, o da uma e o das duas da tarde, cem de cada vez.
Todos me diziam que o Roberto era uma pessoa difícil, complicada. Muito pelo contrário, ele sempre foi dócil, risonho, sem frescuras, pronto para trabalhar no momento em que fosse convocado. Os horários nem sempre eram obedecidos à risca durante a gravação, era gente demais, cenário demais, artistas demais…
Para cada estilo de música, convidei um diretor de fotografia. Assim, cada canção tinha um tratamento visual diferente, de acordo com o tema.
Apesar dos atrasos frequentes, Roberto sempre colaborou, nunca reclamou. Depois de vinte anos, Roberto voltaria a fazer um dueto.
A gravação com a Maria Bethânia, da música que ele fez para homenagear a amiga, estava marcada para quinta-feira às dez da noite. Bethânia chegou pontualmente às nove e meia, em um ônibus todo incrementado, junto com seu staff… E com uma diretora a tira-colo que era, nada mais, nada menos, que Bibi Ferreira, talvez a maior diretora de teatro do Brasil de todos os tempos.
Bethânia disse que preferia que a Bibi dirigisse a parte dela e que eu dirigisse o Roberto Carlos. Respondi que, por mim, não havia nenhum problema. Pelo contrário, ficaria muito honrado em trabalhar com a Bibi, e acredito que o Roberto também não faria nenhuma objeção. Fui até o ônibus-camarim, comuniquei ao Roberto a presença da Bibi e que a parte da Bethânia ficaria com ela, e a parte dele ficaria comigo. A novidade não agradou Roberto. Me pegou pelo braço e disse:
– Bicho, cuidado, não deixa roubarem minha cena.
Respondi :
– Fica frio. Quem vai editar o programa sou eu. Aparece quem eu quero.
Tomamos um “cowboy” e sai…
Acertados os detalhes, levei Bibi e Bethânia para conhecer o set de gravação. Bibi é muito baixinha, eu não a conhecia pessoalmente. Pendurada no meu braço, parecia um chaveirinho.
Caminhando pela Vera Cruz, Bibi lembrou os tempos do pai, Procópio Ferreira, filmando naqueles imensos estúdios. Ficou muito feliz por termos reativado aquele espaço e comentou que a Bethânia estava nervosa e preocupada, por isso a trouxera. E que ela, Bibi, não faria nenhuma intervenção, afinal se tratava do Roberto Carlos e, além disso, ela conhecia e respeitava meu trabalho. Eu a deixei à vontade e disse:
– Você fala quando e o que quiser, Bibi. Estou aqui para atender você. As estrelas são o Roberto e a Bethânia.
Como já disse, o início da gravação estava marcado para as dez horas da noite. Eu tinha mandado fazer um vestido pra Bethânia, muito bonito, cor de mel, que colava no corpo, cheio de lantejoulas e brilhos, desenhado por um costureiro famoso daquela época, Denner ou Clodovil, não me lembro qual.
Por questões alheias à minha vontade e à vontade da produção, a gravação, como sempre, estava atrasada. Na hora em que o cenário estava pronto, todo iluminado, maquiagem feita, câmeras posicionadas e play-back no ponto certo, era mais de meia-noite, ou seja, já era sexta-feira. Quando gritei: “Gravando, solta o play-back“, a Bethânia pediu um tempo e disse:
– Guga eu preciso falar com você.
Eu pensei que fosse alguma coisa incomodando, alguma luz ou… sei lá o quê, e respondi:
– Pois não, Bethânia, diga.
Ela pegou Bibi Ferreira pelo braço, levou para o meu lado, e disse:
– Hoje já é sexta-feira, e sexta-feira eu só gravo de branco, não gravo com roupa de outra cor, é uma superstição minha.
Falei:
– Bethânia, não temos vestido branco agora. Seu vestido é esse tom mel, feito especialmente pra você. Está linda!
Bibi ficou calada, com o olhar espantado. Bethânia continuou:
– Desculpe, mas sem vestido branco eu não vou gravar.
Um silêncio tomou conta de todos. Aquelas quatrocentas caras olharam para mim, como que dizendo: “O que faremos, chefe? E agora?”. São Bernardo fica a uns 30 km do centro de São Paulo e eram quase duas da madrugada. Chamei a produção e disse:
– Vão até a cidade, acordem o Clodovil, o Denner, todos os costureiros famosos e vejam se eles têm algum vestido branco que possa ser usado pela Bethânia. Vão voando, porque tem quatrocentas pessoas aqui esperando… Quatrocentas e uma, a outra é o Roberto Carlos.
A produção saiu em disparada atrás de vestidos. Enquanto isso, o Roberto e eu fomos para o ônibus-camarim. Tomamos mais um… Ele estava extremamente nervoso, com receio de que a Bethânia tivesse mais destaque. Falei para ele ficar tranquilo a esse respeito. O show tem seu nome.
Uma hora depois, a produção voltou com uns oito vestidos brancos, um mais bonito que o outro. No estúdio, tinha uma espécie de cama, onde estendi os oito vestidos e disse:
– Bethânia, de qual você gosta mais?
Ela olhou todos atentamente, caminhou com a Bibi e, apontando para um deles, escolheu:
– Este!
As costureiras experimentaram o vestido na Bethânia. Obviamente precisava de alguns ajustes, que foram feitos no corpo dela. Ficou muito elegante e sensual.
Depois disso resolvido, quase três horas da manhã, eu disse para a equipe:
– Ok, pessoal. Vamos gravar…
Bethânia interrompeu novamente:
– Tem mais uma coisa, Guga.
– O que foi, Bethânia?
– O vestido precisa ser benzido por um pai de santo. É pra dar proteção e sorte.
Olhei para a produção, que me fitava quase em desespero, pensando: “Onde vou achar, às três da manhã, em São Bernardo, um pai de santo? É a mesma coisa que procurar um metalúrgico no Pelourinho nessa mesma hora. Impossível…”.
Chamei meu produtor, que era o Walter Careca, e disse:
– Careca, preciso que você traga imediatamente um pai de santo para benzer o vestido da Dona Bethânia.
Aqueles seus olhos arregalados me perguntavam: “Como eu vou fazer isso?”. Mas rapidamente ele sacou o tom da minha voz e falou:
– Sim, chefia, vou buscar o pai de santo.
Ninguém acreditava no que estava vendo.
Demorou uns trinta e poucos minutos, apareceu o Walter Careca com um negrão de quase dois metros de altura, forte pra caralho, todo vestido de branco. Ele usava uma touca na cabeça e fumava um charuto gigantesco. Aí, o Careca falou:
– Está aqui nosso querido Pai de Santo Cavaleiro de Ogum, que veio especialmente para benzer o vestido de Dona Bethânia.
O pai de santo deu umas baforadas em cima do vestido, falou alguma coisa ininteligível, alguns sinais com a mão e se retirou, soltando um fumacê danado…
Bethânia, entusiasmada:
– Legal! Vamos gravar, vamos gravar!
Começamos a gravação às três e pouco da manhã. Ficou muito bonita. O dueto saiu perfeito. Um clássico.
Perto das cinco horas, quando liberei a equipe, o dia já estava nascendo e a produção ia começar a servir o “café da manhã”…
Chamei o Careca e disse:
– Careca, tudo bem, mas… me conta uma coisa: onde você achou aquele pai de santo às três da manhã, aqui em São Bernardo? Você sabia onde ele morava?
Ele, malandro, respondeu:
– Não, chefia. Acontece o seguinte, eu fui num borracheiro 24 horas aqui do lado, o Zé Crioulo. Peguei o Zé, levei pro Pronto Socorro de São Bernardo, descolei uma roupa branca e uma toca de enfermeiro e vestimos o Zé. Depois, paramos num barzinho de bebum que ainda estava aberto e compramos um charutão. Aí falei pro Zé: “Você vai lá, diz umas coisas que ninguém entende, dá umas baforadas e some”.
Então, foi isso que aconteceu. O pai de santo que benzeu o vestido da Bethânia naquela noite foi o Zé borracheiro. Ela nunca soube e eu nunca contei…
– Vamos lá, pessoal. Depois do Café da manhã tem Emoções…
Acho que o pai de santo deu certo!
(E ainda dizem que quem trabalha em televisão é vagabundo…!)”
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