Um amigo meu, brasileiro há muitos anos radicado nos EUA, sempre me dizia “Há muitos Brasis” todas as vezes que falávamos de qualidades e defeitos do Brasil. Implícita no comentário do meu amigo, era a crença de que havia uma só América, enquanto no Brasil havia muitos paradoxos, cada um, um país. Com efeito, muitas pessoas acreditam que há uma só América, pois a imagem dos EUA no exterior era de um país integrado em seus valores e atitudes. Uma visão que é só parcialmente correta.
Como há muitos Brasis, há também muitas Américas. Eu nasci e passei a minha juventude em uma América, a minha adolescência em outra e, quando adulto, em mais uma. Nasci em uma América em guerra e cresci como criança no período pós-guerra. Passei a minha adolescência em outra, no Sul dos EUA onde havia segregação racial institucionalizada. E como adulto tive a oportunidade de ver a América de longe e como é percebida em outros países.
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Cada uma dessas Américas era unida por valores que nasceram na formação do país de que fazem parte. Essa é a “América original” que eu chamo de “minha” América. A “minha” América já diminuiu tanto de tamanho que está quase invisível.
Como é essa América que considero “minha”? Shakespeare escreveu em Júlio Cesar que se adquire a grandeza por três meios: alguns nascem na grandeza, alguns conquistam a grandeza e outros têm a grandeza imposta. A grandeza da minha América era esta última. Os EUA se envolveram em duas grandes guerras durante a primeira metade do século XX. Nas duas ocasiões, relutaram em lutar. Na Primeira Guerra, os americanos nada queriam com as brigas e intrigas da Europa “antiga”. Lembramos que os EUA foram criados pelos rejeitados, perseguidos e indesejáveis da Europa. Os americanos nada queriam com as sociedades que os rejeitaram e que eles haviam rejeitado. A Segunda Guerra foi considerada fruto da Primeira, das divisões entre os países europeus e do desejo de vingança. E, de novo, os americanos não achavam que a briga era com eles. A Europa continuava sendo o “Velho Continente”. Foi necessário um ataque direto aos EUA – a base naval de Pearl Harbor – para convencer os americanos a aderirem à Segunda Guerra. Nas duas ocasiões, os soldados americanos voltaram para casa sem as exigências de vitoriosos. O desejo comum era de só voltar para casa e viver em paz. É claro que havia uma “outra” América que reconheceu, na vitória da Segunda Guerra, a chance de se impor. Essa América acabou se degenerando na segunda América de que falo posteriormente. Havia uma crença, na minha América, de que o mundo inteiro tinha as mesmas aspirações dos americanos – o famigerado American way of life. Em grande parte, essa crença foi fruto daquilo que esses americanos viram em duas guerras na Europa que os deixou decepcionados.
A “minha” América foi moldada por esses “heróis silenciosos” das duas grandes guerras. Eram pessoas como o meu avô materno, que lutou na França na Primeira Guerra; o irmão dele mais velho, que lutou contra Franco na Espanha; o meu pai e os pais dos meus colegas de infância, que lutaram contra o Nazismo e as pretensões imperialistas do Japão. Todos eles só falavam da futilidade da guerra, da inglória da morte e nada mais. Não se gabavam de suas experiências e coragem. Eles só diziam que o que mais queriam era terminar com as guerras e voltar para casa e para suas famílias. Os valores desses homens eram simples e talvez, pelos valores atuais, até ingênuos. Para eles, o indivíduo era sacrossanto e o individualismo tinha de ser temperado por respeito à comunidade e pelo direito coletivo. Para eles, o direito de erguer o braço terminava onde começava o nariz do outro. O trabalho, qualquer trabalho, era nobre e quem buscava trabalho merecia ajuda. Para eles, não existiam “vítimas” ou “coitadinhos”. A palavra operacional no vocabulário deles era “dignidade”. E significava dignidade pessoal, não nacional. O patriotismo desses homens era ancorado na crença de que a América deles oferecia para todos a chance de alcançar a dignidade.
Na adolescência encontrei uma outra América. Era uma América ambígua, marcada pela dignidade para uns e humilhação para outros. Não havia heróis e sim pessoas colocadas entre o ódio e o medo. Participei do movimento para conquistar os direitos civis dos negros. Vi violência que não imaginava ver na “minha” América. Vi uma intolerância sem precedentes. Escrevi sobre essa América na Brasileiros, ao descrever o Obama no contexto do racismo nos EUA. No fim, vi a “minha” América vencer a segregação racial, mas não sem umas grandes batalhas, três assassinatos políticos (John Kennedy, Martin Luther King e Robert Kennedy), e a Guerra no Vietnã. Mas a vitória da primeira América reforçou minhas crenças e valores. Pelo menos a minha América parecia vencer.
Ao morar no exterior, encontrei uma outra América. Essa era uma América percebida como intervencionista nos assuntos de outros países, uma América que apoiava ditaduras militares em vários países, uma América que dizia defender a democracia por meios totalmente antidemocráticos. Essa América foi derrotada no Vietnã. Reconciliar essa América com a “minha” não foi possível.
Essas três Américas ainda existem. Contudo, a “minha” tem levado o pior. Muitos dos heróis silenciosos já silenciaram para sempre com o passar dos anos. A glória de ter derrotado Hitler, nunca cobrada, cedeu para a vergonha de ter sido derrotado no Vietnã. A segunda América se degenerou no comportamento passivo-agressivo do “corretismo político”. O debate, ou até a conversa sobre assuntos controversos, foi substituído pelo silêncio. Se o seu interlocutor não concordasse com você, não diria que discordava. Simplesmente não diria nada. Perdeu-se a capacidade de rir de si mesmo. Perdeu-se o humor e o diálogo. No lugar do “americano” pleno e único, nasceu o americano “hifenizado”: o afro-americano, o ítalo-americano, etc., cada um se dizendo “vítima”. Não é que a controvérsia acabou. É que não se discutia mais. Era tudo reprimido. A terceira América, intervencionista, assumiu a pole position com a queda da União Soviética em 1989. Declarou-se o “fim da história” e assumiu-se a pose de vitorioso total. Um político americano chegou a dizer que agora “Ninguém pode dizer para a América onde pode jogar as suas bombas”! E essa América dominou tanto no exterior quanto dentro dos EUA na virada do século. Após o ataque de 11 de setembro de 2001, promulgou-se o Patriot Act que proibiu até falar mal do presidente e/ou do governo. A terceira América era simultaneamente agressora e agredida – circunstância que gerou paranoia. Paranoia cansa, deixa a sua vítima exausta de tanto estar em guarda o tempo inteiro. Durante os oito anos após o ataque de 11 de setembro, o americano vivia sob o medo. Buscou-se refúgio na religião – não na religião “tradicional”, mas no fundamentalismo, aquela que dizia que o homem e os dinossauros viviam em paz no Jardim do Éden, aquela que rejeitava a evolução e pregava a interpretação literal da Bíblia. Buscaram-se soluções simplistas. Apareceram pes-soas como Sarah Palin que disse que tinha “experiência” em assuntos internacionais porque podia ver a fronteira da Rússia da casa dela em Alaska ou como Glenn Beck, comentarista da Fox News, que se veste com uniforme de um soldado russo para “poder entender como um comunista pensa”. (Esse é um louco de babar!)
Agora, com a eleição do Barack Obama a minha América talvez possa renascer. Será que vinga? Obama é taxado de “socialista” e “comunista” pelos representantes da terceira América. A primeira tarefa dele é restaurar um ambiente de pensamento crítico – i.e. questionamento racional. A segunda é a de promover um reconhecimento das limitações da América. Ele já falou em alto e bom tom que a América não pode curar todos os males do mundo. Não é que não quer, simplesmente não pode!
A minha única pergunta é se alguém nos EUA está realmente escutando!
*Jim Wygand é consultor nas áreas de investigação de fraudes e gestão de risco e diretor para o Brasil da empresa norte-americana 1st West Mergers & Acquisitions Llc
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