Delírios de uma loba e sua alcateia

Uma história de acerto de contas de relacionamentos amorosos serve de pano de fundo para o autor, Renato Borghi, discutir o teatro e a vida. No teatro nunca teve essa de “onde se ganha o pão não se come a carne”. Tudo é visceral no mundo das artes. Uma separação, uma sociedade familiar desfeita e um terceiro elemento imposto à relação de muitos anos. Isso já foi discutido nos clássicos da Grécia Antiga e continua a ser assunto para as revistas de fofocas que envolvem os semideuses dos novos tempos, vulgarmente conhecidos como celebridades.

José Possi Neto já havia encenado A Loba de Ray-Ban, há 20 anos, no Rio de Janeiro, o mesmo texto tendo Raul Cortez, como protagonista; Christiane Torloni, vivendo a esposa; e Leonardo Franco, no papel de amante do Lobo (em São Paulo era Renato Modesto). O jogo é outro – e o triângulo amoroso agora é formado por duas mulheres e um homem -, mas a discussão permanece a mesma: amor, traição, sexualidade. Segundo o próprio Possi, essa peça “Não é uma remontagem. É como se estivesse encenando um clássico”.
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Com a vulgarização do espaço cênico, repleto de montagens malcuidadas, visando apenas a obtenção de altos valores de patrocínio e gordas arrecadações de bilheteria e encabeçadas por atores que sobrevivem da imagem televisiva, o bom teatro é cada vez mais raro.

O triângulo amoroso de A Loba merece tratamento primoroso da direção de José Possi Neto que, com sua mão firme e certeira, coloca tudo a serviço do espetáculo: os atores, cada foco de luz, bem como cada um dos elementos cênicos. Cenas de nudez masculina e de ternura “caliente” entre mulheres são levadas ao palco com extremo bom gosto e não chocam a plateia, ávida para ver o circo pegar fogo. E o circo pega fogo, mas não pela vulgaridade.

Possi mostra, em A Loba, que ainda há espaço para o bom teatro. Ele é um encenador que não economiza e tem deixado isso muito claro desde o início da carreira. Não consigo me esquecer de Tratar com Murdock, que ele encenou há algumas décadas. Possi apresentava, para uma pequena plateia, os aposentos de uma velha senhora repousando em seu leito, enquanto seu mordomo oferecia ao público, através de um tecido transparente, seus sonhos eróticos. O diretor nunca abandonou o teatro em que acredita para render-se ao simples. Com ele não tem essa de “um banquinho e um violão”. Nas montagens assinadas por Possi, sempre serão necessários muitos violões e muitos banquinhos. E o mais surpreendente é que, na maioria das vezes, suas soluções mirabolantes parecerem muito simples.

A cenografia de Jean-Pierre Tortil e os figurinos assinados por Fabio Namatame dialogam com a dramaturgia e a direção. Ambos os trabalhos transitam entre o mais comum dos adereços aos mais sofisticados elementos que servem para contar a história dos personagens (e dos personagens vividos por eles). O teatro dentro do teatro. São malhas com tramas gigantescas, ponte levadiça e cortina quilométrica. Mais uma vez, cabe ao encenador usar cada um desses recursos sem que permaneçam inúteis e apenas elementos decorativos.

Assim como cada detalhe da construção cênica merece toda a atenção de seu maestro, os atores não são exceção. Cada gesto da bela protagonista, Christiane Torloni, é desenhado pelo encenador. Nenhum dos atores pode se sentir abandonado em cena tendo de lutar utilizando apenas os próprios talentos. Os tentáculos da direção se ocupam de tudo. Possi tira dos atores o melhor de cada um e o resultado são interpretações fortes e emocionantes, desde a experiente e velha parceira, Christiane Torloni – já acostumada a seus delírios – aos outros protagonistas da trama, Leonardo Franco e Maria Maya.

A Loba de Ray-Ban para no fim de dezembro, mas volta no início de janeiro no mesmo teatro em São Paulo.


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