Um dos veículos mais inovadores de São Paulo não requer tecnologia de ponta nem mecanismos automatizados. A Bicicloteca, um simples triciclo vermelho conduzido por Robson Mendonça, está na vanguarda por levar leitura e informação a quem vive à margem das bibliotecas formais, os moradores de rua. O próprio Robson foi um deles – e, durante os seis anos em que viveu nas calçadas, lia tudo o que pudesse agarrar: jornais, revistas e livros que encontrava em suas peregrinações pela cidade, também em busca de latas, que vendia para garantir seu sustento.

A sede de informação de Robson tinha um objetivo definido: aprimorar a linguagem e a escrita para atuar frente ao Movimento Estadual da Situação em População de Rua de São Paulo. Em suas visitas a bibliotecas municipais, era vítima de duplo perrengue: não podia retirar livros porque não tinha como comprovar residência.

Ex-pecuarista que perdeu todo o seu dinheiro em um assalto, Robson não vive mais nas ruas. Mas dedica tempo e energia para atender com sua Bicicloteca as pessoas que perderam o teto e querem ler. O primeiro modelo, desenhado pelo Instituto Mobilidade Verde, foi roubado, o que acabou garantindo ainda maior visibilidade para o projeto. Com apoio de duas empresas, a Bicicloteca ganhou uma nova versão, elétrica, e agora é dotada de computador Wi-Fi, que prioriza o trabalho de alfabetização digital. A ideia é lançar o projeto em mais dez cidades brasileiras ao longo de 2012.

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Mas a decisão de sair por aí de bicicleta raramente é pautada por sentimentos comunitários como os de Robson. Mas o que moveu a fotógrafa e videorrepórter Renata Falzoni, famosa também por causa de uma bicicleta, primeiro foi a irritação de ver-se imóvel, refém dos engarrafamentos ou do empurra-empurra nos meios coletivos de transporte. A saber: Renata adotou a magrela como meio primordial de locomoção dentro de São Paulo em 1975, quando ainda era estudante de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Mackenzie.

“No começo, foi mesmo uma atitude egoísta: eu estava irritada por demorar mais de uma hora no carro para fazer um caminho que poderia levar dez minutos. Queria resolver um problema meu. Depois, passei a entender minha atitude de maneira global, ver a cidade a partir de uma ótica mais humana”, diz ela, fundadora do grupo Night Bikers e reconhecida como uma das mais importantes cicloativistas do País.

Razões parecidas motivaram o escritor e editor Jorge Caldeira a usar mais as pernas em suas andanças pela cidade, tanto a bordo dos sapatos, durante os dias úteis, quanto de sua bicicleta, aos finais de semana, quando pedala por lazer. Só usa o carro quando precisa transpor distâncias mais longas e, mesmo assim, dá preferência ao táxi. De resto, calcula a quilometragem que vai percorrer e sabe exatamente quanto tempo precisa para estar no local onde o encontro é marcado.

Da casa, no bairro de Higienópolis, à sede de sua empresa, na vizinha Vila Buarque, vai e volta diariamente a pé. “Caminho cerca de seis quilômetros por hora”, calcula. “Ao fazer essa conta, cheguei à conclusão de que não preciso de tanto tempo assim para ir de um lado a outro. Ganhei do ponto de vista da paciência e da alegria”, diz Caldeira, que deixou o carro encostado por se cansar da vida de motorista. “Eu vivia nervoso, esperando o sinal abrir.”

A mobilidade e o corpo
Passar a andar de bike ou a pé – e como consequência ter ganhos de saúde e colaborar com a qualidade do ar na cidade – é uma atitude que requer certa “reprogramação” do cérebro, como explica Lincoln Paiva, presidente do Instituto Mobilidade Verde (organização não governamental que discute e propõe formas mais sustentáveis de locomoção na cidade de São Paulo). “Quando perguntamos a quem costuma usar o carro qual a distância entre o bairro de Pinheiros e o Shopping Morumbi, as pessoas costumam dizer de 15 a 30 km. Na verdade, são cerca de oito – chega-se de um ponto a outro em pouco mais de uma hora a pé, ou em menos de 20 minutos de bicicleta. É pouco.”

O quase nenhum contato com a “escala humana” que o caminhar ou o pedalar propiciam causa o que ele chama de “percepção alterada” das distâncias: “As pessoas sabem quanto tempo vão gastar no seu trajeto, mas já não têm ideia do quanto realmente vão se deslocar”.

Daniela Faria Cardoso Viana já sabia que seu percurso diário era de 42 km, da Zona Norte, onde mora, até a Oeste, onde trabalha, ida e volta. De segunda a sexta-feira, são 210 km. Mesmo assim, optou por abandonar os meios de transporte público e seguir de bicicleta. Antes, ela gastava de duas horas a duas horas e meia para chegar ao trabalho (um ônibus até a Estação Tucuruvi, o metrô até a Estação Paraíso, onde trocava de linha e rumava para a Estação Clínicas, onde tomava mais um ônibus). Com a bicicleta, são 50 minutos para ir e outros 50 para voltar. “Eu não estava gorda, mas perdi alguns quilos que fizeram diferença e comecei a me sentir mais bonita, mais disposta e saudável”, conta Daniela, que trabalha como auxiliar administrativa em uma empresa de comunicação.

Se o corpo ficou mais leve, o bolso ganhou recheio. Descontado o investimento inicial na bicicleta, Daniela contabiliza em 80% a economia mensal que faz usando um meio de transporte que só depende de sua energia e da reposição de pastilhas de freio (“bem baratinhas”). “Uso esse dinheiro para fazer outras coisas, como comprar uma roupa mais bacana e investir na minha formação, fazendo cursos”, diz. Comprar um automóvel? Isso, definitivamente, não está em seus planos.

Andantes x rodantes
Deslocar-se a pé em São Paulo, porém, não é o mar de rosas que pode parecer. Sabe muito bem disso quem já quase foi atropelado atravessando em uma faixa de pedestres, com o sinal fechado para os carros. Mas o embate entre “andantes” e “rodantes” é anterior ao motor, tão antigo quanto a própria história das cidades (com a prevalência esmagadora, com perdão do trocadilho, dos “rodantes” na luta pela ocupação do espaço). “As rodas ameaçadoras dos ricos correm tão rapidamente como sempre e por pedras manchadas com o sangue de suas vítimas infelizes”, escreveu em seu Tableau de Paris, o dramaturgo e escritor Louis-Sébastien Mercier, no final do século 18.

Nos anos 1920, Monteiro Lobato, encantado e ao mesmo tempo assombrado ao pilotar sua primeira charanga pelas ruas da capital paulista, escreveu a um amigo sobre “a curiosa mentalidade que o automóvel ocasiona”. Na constatação do criador de Emília: “O pedestre passa a ser uma raça vil e desprezível, cuja única função é atravessar as ruas. Quando estropia um pedestre, a sensação do rodante é de que libertou o mundo de um embaraço”.

Os comentários de Mercier e Lobato sobre as desde sempre complicadas relações entre motoristas e caminhantes estão citados no trabalho Andar a Pé: Um Modo de Transporte para a Cidade de São Paulo, dissertação de mestrado defendida por Maria Ermelinda Brosch Malatesta, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

Meli, como gosta de ser chamada, também é caminhante e sente nos pés as agruras não só da ferocidade com que motos e fuscas avançam os sinais vermelhos, mas da falta de uma arquitetura própria para a mobilidade de quem cruza avenidas, viadutos e pontes de São Paulo, cidade que, “depois de se transformar em vilarejo de taipa-de-pilão em metrópole”, sempre atendeu primeiro às necessidades dos motoristas.

Em sua crítica, o traçado da cidade poucas vezes é pensado para quem precisa ou prefere ir a pé – os caminhos são descontinuados, mesmo em obras que deveriam privilegiar o andarilho. Cita a Praça da Sé e o Vale do Anhangabaú como exemplos de espaços dificilmente transponíveis, com traços geométricos e desníveis que interrompem um plano natural de caminhada, além de não integrados à malha viária que gira em seu entorno. Em português mais rústico, são projetos que fazem o pedestre dar volta à toa. “Desenhos bonitos no papel, mas pouco funcionais”, diz.

Isso sem falar na tentativa praticamente suicida de se atravessar a pé uma ponte sobre uma marginal. “Andar a pé, o modo de transporte mais humano, e quem o pratica, é sistematicamente relegado pela tecnologia urbana a um plano secundário”, escreveu em sua tese.

Mesmo assim, ela própria não desanima e engrossa o cordão dos que preferem deixar o carro encostado a maior parte do tempo. “O meu é um modelo velho, que uso basicamente para comprar caixa de leite no supermercado.” Moradora dos Jardins, vai de ônibus de casa ao trabalho, na região central, e, sempre que o tempo ajuda, volta a pé pela Rua Augusta.

Às vezes, Meli pega um cineminha quando encontra um bom cartaz pelo caminho e gosta de conferir as novidades literárias expostas em livrarias. Conversa com o jornaleiro, “com o senhorzinho que pede esmola na esquina” e com a moça do balcão onde bebe um café, “exercitando um nível de contato maior com o ambiente urbano e intensificando a troca social”.
Meli ainda aponta a insuficiência dos serviços de transporte e a falta de conexão entre diversos modos (ônibus, metrô, trens, ciclovias), que podiam estar melhor integrados também ao ato de caminhar, uma vez que quase todo o deslocamento dentro de um veículo coletivo prevê um começo e um final feitos a pé. Além de reconhecer que o transporte público é “uma porcaria e uma vergonha de tão caro” em São Paulo, acredita que falta consciência e motivação por parte da classe média, pouco interessada na questão. “As pessoas voltam maravilhadas de Londres, Paris e Nova York, porque lá conseguem ir de metrô, de ônibus ou a pé para todos os cantos. Mas aqui não ousam usar os mesmos serviços e cobrar do poder público qualquer melhoria. Temos uma classe média provinciana. Somos caipiras, gostamos de ostentar carro novo. Estamos um patamar abaixo dos países que descobriram que o automóvel é uma fria.”

Tempos melhores virão
A fotógrafa Renata Falzoni pondera que, apesar de não termos chegado a um acordo ideal de civilidade no trânsito, as relações entre ciclistas e motoristas hoje são mais pacíficas do que já foram nos tempos em que começou a desbravar o espaço urbano sobre duas rodas – sobretudo em São Paulo. Ela acredita que o ciclista não é mais visto como “um ser estranho” nas ruas, que os motoristas que querem compartilhar as vias públicas com outros meios que não sejam o automóvel fazem prevalecer as regras de boa convivência. “Quem quer respeitar o ciclista hoje toma partido e não se intimida mais com o motorista grosseiro, aquele que faz bullying e buzina que nem louco quando aparece uma bicicleta”, diz.

O novorrisquismo, o esnobismo do desfile com o carrão reluzente e a obliteração mental de quem, nas palavras de Renata, “não consegue entender a felicidade além do para-brisa”, no entanto, são paradigmas a serem rompidos em contraposição à vontade de quem prefere não usar o automóvel com tanta frequência ou mesmo não ter um. “Muita gente ainda precisa entender que a opção de andar a pé ou de bicicleta não é resultado de um fracasso”, cutuca ela, que em 1998 comemorou uma importante conquista dos ciclistas – pedalou durante 17 dias de Paraty a Brasília para marcar o fato de que a bicicleta havia finalmente sido reconhecida como veículo de transporte pelas leis brasileiras.

Que o diga o diretor de arte Daniel das Neves, outro paulistano que raramente dá contato em seu Opala 85 ou em sua motocicleta, preferindo a bicicleta em quase 90% de seus trajetos pela cidade. Tendo passado parte da adolescência em Bragança Paulista, onde ia de um lado para outro pedalando, decidiu adotar o mesmo meio de transporte quando mudou-se para São Paulo e começou a trabalhar. Foi um processo gradual.

“Eu usava a bike para ir ao trabalho, do bairro da Pompeia ao Jaguaré, uma ou duas vezes por semana. Fui me sentindo mais seguro no trânsito e hoje quase só pedalo”, diz ele, que hoje trabalha na Vila Mariana e, sempre que pode, leva a bicicleta para outras paragens. Já fez viagens em grupo pelo litoral de São Paulo e de Santa Catarina e cruzou parte da Patagônia sobre sua magrela.


Comentários

2 respostas para “Só de bike”

  1. Usar a bicicleta como meio de transporte é um direito fundamental que deve ser garantido a todos que assim desejarem utilizar tão benefíco meio de locomoção. Cabe também resssaltar a importância de se orientar melhor aos ciclistas que estes também devem seguir normas de conduta quando estiverem se deslocando. Andar pela calçada, por exemplo, é inaceitável. Já cheguei a ver até um entregador de mercadorias de um açougue gritando para as pessoas sairem de sua frente pois estavam atrapalhando o seu deslocamento, na contramão, por cima da calçada!! Bicicleta é um meio de transporte legítimo o qual eu mesmo faço questão de defender. Porém, cabe ao ciclista seguir regras como qualquer outro condutor de meio de transporte.

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