A Congregação do Sagrado Coração de Jesus, com sede em Bauru, mantém o Colégio São José que forma alunos nas dimensões intelectual, moral, cívica, afetiva e social. O que, pensando bem, não é pouco. O baile de formatura do colegial da turma de 1986 foi no Clube Comercial. Nessa noite, que chamaram Soirée Blanche, só tocou música para dançar junto, sem parar, a noite toda. Uma quebra na rotina.
Ela estava com um grupo de amigas. Conversavam e riam, como fazem meninas em bailes. Ela notou que havia um rapaz só, de pé, junto ao bar. Não era conhecido. Nem estava de branco, como todos os outros. Olhava para ela. Era insistente, o olhar. Ele era mais velho, mas ainda um menino. Ela não aguentava muito aquele olhar e abaixava o seu. E depois voltava. E ele sempre olhando para ela. Foi assim um tempão. Então, ele acenou um vem cá. Ela achou aquilo meio pretensioso, mas decidiu ir. Como foi duro andar com naturalidade até lá!
Quando ela chegou perto, ele disse: Vai lá dentro, tira a calcinha e traz para mim. Ela levou um tremendo-gigantesco-colossal susto, porque aquilo não se falava à época. Não foi, entretanto, desrespeitoso o rapaz. Ela, intrigada, prosseguiu: Você está louco? Ele disse: Eu não estou louco – pausa. Vai lá dentro, tira a calcinha, traz para mim e vamos dançar. Com a firmeza do pedido e o timbre da voz, ela sentiu um formigamento na nuca e leve tontura. Por seu corpo desceu uma enxurrada de hormônios, alguns elétrons. Abriu-se um abismo. Ela se virou, foi lá dentro, tirou a calcinha e, caminhando bem devagar, trouxe a calcinha apertada na mão. Entregou para ele, que guardou no bolso da frente e foram dançar. Um Ray Conniff inesquecível. Depois, foram outras tantas músicas, noite adentro.
Quando já ia alta a noite branca, ele disse um misterioso: Estou aqui só esta noite. Ela, atrapalhada, disse que iria para Dourados, no dia seguinte, com a irmã e uma amiga. Ele disse que no dia seguinte pegaria o trem para Santa Cruz de la Sierra, o Trem da Morte. De lá iria para Sucre, Potosi e La Paz, Titicaca, Puno e Cuzco. Aquilo soou magia, mistério, encanto. Vem comigo, disse ele tão junto ao seu ouvido. Ela sentiu a perna fraca, bamba mesmo. Não conseguiu falar nada. Mais tarde ainda, quando parou a música e acendeu o salão, eles se despediram, com um beijo no rosto. Tudo à vista dos pais dela, que esperaram até o fim da festa para ver que história era aquela.
No dia seguinte, ela foi para a rodoviária com a irmã e a amiga, contou tudo para as duas, que quase caíram de costas. Pediu cobertura e se pirulitou. Chegou afobada à estação da Noroeste. Embarcou no apito do trem. Correndo e batendo pelas poltronas, o encontrou no último vagão. Sentado com uma enorme mochila vermelha. Aí sim. Foi ele que tomou um tremendo-gigantesco-colossal susto. Não conseguiram falar nada, nem sorrir. Depois falaram um pouco. Então falaram muito e foram se aproximando. Depois, foi puro encanto. Um sonho sem fim. Por semanas estiveram em outro mundo, que nem suspeitavam existir. Em Ayacucho, houve noite do Sendero Luminoso de muitos tiros, fogo e morte. Ela não sentiu medo algum ao lado dele
Quando voltaram, em poucos meses ela se mudou para São Paulo, para morar em república de meninas de Bauru. Na verdade, viveu com ele, sem conhecimento dos pais, por todo cursinho e faculdade. Dois anos depois da formatura, poucos meses antes do casamento, ela o apresentou aos pais. Eles acharam o rapaz com cara boa e até meio conhecida. Casar já? Não seria melhor esperar um pouco, conhecer melhor o rapaz? Ela disse: Não, não é preciso. Casaram.
Há vinte anos estão juntos. Com as filhas adolescentes, é ela quem decide as coisas. Sempre vai buscar ou espera acordada. Às meninas sempre diz: Volte cedo pra casa, não seja você a primeira, ligue quando chegar, estas coisas. Ele ouve tudo isso meio de longe. Mas, quando ela diz tenha juízo, ele sempre sente um leve arrepio na espinha.
*Marcos Rodrigues é engenheiro civil , professor titular da Escola Politécnica da USP e dedica-se também à literatura.
Deixe um comentário