Moscou em chamas

O elevador para dentro do apartamento. É um duplex horizontal. Os dois apartamentos fronteiriços formam um só. Boris Schnaiderman parece estar bem forte aos 92. Não dá um sinal de cansaço, seja de que espécie for. Seus olhos melancólicos não deixam mentir: ele tem uma alma russa. Me encaminha até uma mesa redonda, com muita luz. Em volta de nós estantes com livros bem arrumados, em meio a objetos, tapetes, quadros de toda uma vida. É muito aconchegante, inesperado para o lugar onde está localizado, perto da Praça Marechal Deodoro, região degradada onde em outros tempos estava instalada a sede da Rede Globo de São Paulo. Boris é nacionalmente reconhecido há mais de 40 anos como o melhor tradutor de escritores russos para o português, principalmente Vladimir Maia-kóvski, de quem conhece de cor e salteado não só a obra, como a vida.

Brasileiros – Você nasceu em 1917, na Rússia. Como estava a situação da sua família, como foi o impacto da revolução russa na sua casa?
Boris Schnaiderman –
Bom, meu pai se ocupava do comércio e, nos primeiros tempos após a revolução, ele estava relativamente bem de vida. Foi uma situação estranha, a minha família estava bastante bem nos anos pós-revolução.

Brasileiros – Você se lembra daquela época?
B.S.
-Eu me lembro desde os três anos, três anos e pouco…

Brasileiros – Onde você estava?
B.S. –
Quando eu tinha um ano, mais ou menos, me levaram pra cidade de Odessa, então passei a minha primeira infância lá.

Brasileiros – É uma cidade que não é pequena.
B.S. –
Não, Odessa não é cidade pequena, atualmente tem um pouco mais de um milhão de habitantes, era principalmente um grande porto, um grande porto do Mar Negro…

Brasileiros – E estância balneária na época…
B.S. –
Sim, sim, estância balneária, aliás, continua sendo uma estância balneária.


Brasileiros – E de que cenas você tem lembranças?
B.S. –
De que cenas? Ih! Eu tenho lembrança de muitas coisas, lembro muito porque eram anos marcantes, né, muito marcantes. A primeira coisa de que eu me lembro é das pessoas caídas na rua por causa da fome, a fome de 1921.

Brasileiros – As pessoas caídas mortas?
B.S. –
Caídas morrendo. Eu me lembro de um homem morrendo e eu estava na rua com a minha governanta – em casa nós tínhamos empregada que meus pais chamavam de governanta pra não dizer empregada -, um homem estava caído no chão e ela apanhando um pedaço de pão e dando pra ele de comer, mas ele mal conseguia mexer os lábios. Estava caído de fome.

Brasileiros – Na sua infância, o líder era Lênin, né?
B.S. –
Sim, eu me lembro da morte de Lênin, que foi um transtorno em toda a vida do país. Eu me lembro de que durante cinco minutos os carros ficaram andando, buzinando e os ônibus assim tocando a sineta e outros cinco minutos tudo parado. Eu me lembro que foi assim uma comoção nacional, mesmo os que não eram muito adeptos do sistema, no fundo tinham uma admiração pela pessoa, pela figura dele.

Brasileiros – O Lênin era uma figura querida da população?
B.S. –
Era sim… Tinha conseguido consolidar o regime. Quando ele morreu, estava em desenvolvimento a política que ele tinha instaurado e que soltava um pouco as rédeas, um pouco, também, da iniciativa privada que permitiu. Essa era a nova política econômica, a nova economia política. E as coisas estavam começando a entrar nos eixos.

Brasileiros – Você chegou a vê-lo alguma vez?
B.S. –
Não. O Lênin, eu nunca vi.

Brasileiros – E o Eisenstein, você viu?
B.S. –
Eu assisti a filmagem do O Encouraçado Potemkin. Mas não vi Eisenstein. É que eu brincava na escadaria de Odessa e via aquele movimento, eu não sabia o que era, não tinha a menor ideia do que fosse e vi, assisti à filmagem.

Brasileiros – O que estava acontecendo, qual era a cena, você se lembra?
B.S. –
Eu me lembro, me lembro muito bem da cena dos chapéus, me lembro que apareceram umas senhoras elegantes, com trajes do começo do século que eu não conhecia, não entendia o que era aquilo, porque estavam com aqueles trajes esquisitos, trajes chiques da burguesia da época e depois os homens assim, todos de chapéu e de repente eles começavam a atirar o chapéu suado saudando os marinheiros do encouraçado. Eu me lembro dessas cenas, vi filmar.

Em sua casa em São Paulo, 2009. Foto: Arquivo pessoal
Em sua casa em São Paulo, 2009. Foto: Arquivo pessoal
Brasileiros – As moças daquela época tinham liberdade sexual?
B.S. –
Nos primeiros tempos após a revolução, sim.

Brasileiros – Não tinha aquilo de virgindade, casamento?
B.S. –
Havia, havia, mas ao mesmo tempo em que havia liberdade, na burguesia, na classe média e na aristocracia havia o tabu da virgindade e tudo, tudo isso funcionava, mas depois da revolução houve uma tendência por uma vida sexual mais livre. Tanto é que no Ocidente se fazia campanha de Moscou como um desvario, aquilo era uma devassidão, comunismo era sinônimo de devassidão nos primeiros tempos após a revolução. Depois, com Stalin a coisa apertou, o Stalin apertou os parafusos e colocou “a família acima de tudo”.

Brasileiros – Então o Maiakóvski passou a época digamos já…
B.S. –
De uma vida sexual muito livre, muito livre. É verdade, Maiakóvski tinha uma vida sexual muito intensa e muito diversificada, e o grande amor da vida dele foi a Lilia Brik, que eu cheguei a entrevistar, era mulher do melhor amigo dele.

Brasileiros – Ah, essa história de mulher do melhor amigo…
B.S. –
Eles viveram na mesma casa os três.

Brasileiros – E eles viviam sexualmente os três também ou não?
B.S. –
Não.

Brasileiros – Como é essa história? Vamos ouvir.
B.S. –
Lilia Brik me disse categoricamente que quando ela passou a viver com Maiakóvski, ela deixou de ser mulher do Ossip. Foi o que ela me disse na entrevista. Nada de ménage a trois: “Vivemos sob o mesmo teto, mas…”. E também disse que o Ossip, embora triste e tudo, aceitava a situação e tudo bem.

Brasileiros – E o Ossip não tinha outra mulher? Foram 15 anos de vida a três, pelo que li.
B.S. –
Não. Que conste não. Não sei, não sei.

Brasileiros – Mas é impressionante o homem aceitar isso, é difícil.
B.S. –
É difícil, é difícil.

Brasileiros – Isso é adultério, você sabe que sua mulher está com outro, mas você está ali ao lado. Você soube de outras situações parecidas com essa, até mesmo na literatura alguma situação com três pessoas que vivem juntas, dois homens e uma mulher?
B.S. –
Depois da revolução era frequente.

Brasileiros – Ah é, na Rússia?
B.S. –
É. Depois da revolução na Rússia, houve situações assim… Havia uma corrente lá do partido que era pelo amor livre, como uma figura importante do partido, Alexandra Kollontai. Ela era do partidão, era da linha justa, não era dissidente, nem nada, e ela foi enviada como embaixadora na Suécia para ficar fora, ficar longe, e amaldiçoaram as obras dela, foram condenadas, mas não mexeram com a pessoa dela. Ela era adepta ao amor livre e era da linha justa do partido, era colaboradora direta do Lênin… Havia os remanescentes da classe média, da burguesia, que eram contra, achavam uma devassidão, etc., mas no partido o que predominava era a linha da Alexandra Kollontai.

Brasileiros – A prostituição não tinha sentido na Rússia naquela época, então.
B.S. –
Mas existia. A prostituição existia. A prostituição sempre existiu na Rússia. Porque é a tal história, na burguesia, na classe média aí havia o tabu da virgindade e tudo.

Brasileiros – O melhor amigo de Maia-kóvski também era poeta, não era?
B.S. –
Ele era crítico. Era teórico de literatura. Era muito amigo do Maiakóvski. Inclusive, uma das peças de Maiakóvski baseia-se num primeiro roteiro dele. O argumento de Moscou em Chamas foi escrito por ele, mas com base no esquema de Ossip Brik.

Brasileiros – Não havia possibilidade de uma relação homossexual entre os dois?
B.S. –
Não acredito. Não acredito, mas…

Brasileiros – Como a homossexualidade era encarada pela revolução?
B.S. –
Homossexualismo existia. Homossexualismo na Rússia existiu. Os russos sempre ficavam bravos quando a gente tocava nesse assunto. Mas existiu o homossexualismo.

Brasileiros – Há algum personagem homossexual na grande literatura russa de Tolstói ou Dostoiévski?
B.S. –
Não, não tratam disso.

Brasileiros – É uma questão escondida, até nos romances.
B.S. –
Sabe-se, por exemplo, que Tchaikovsky era homossexual e os russos trataram sempre de esconder isso.

Brasileiros – Esse é o lado puritano dos russos?
B.S. –
E ficavam zangados quando a gente dizia: “Mas Tchaikovsky é homossexual”. Diziam: “Não, não, isso é calúnia”.

Brasileiros – E desses grandes romancistas russos, algum era homossexual?
B.S. –
Que eu saiba, não.

Brasileiros – Agora se Maiakóvski não se matou por problemas sentimentais, por que foi?
B.S. –
É difícil dizer, fulano se matou por isso ou fulano se matou por aquilo. Geralmente são muitas, são várias razões… É a convergência de vários fatores para o caso do Maiakóvski. Os problemas sentimentais existiam mas dizer que ele se matou por uma questão sentimental não é verdade porque mulher ele sempre teve, levou uma vida amorosa muito intensa, muito diversificada e era natural que ele tivesse lá os seus desgostos de amor e tal, mas não chegava a ponto de se suicidar. A grande tragédia de Maia-kóvski consistia no seguinte: ele era um adepto fiel da revolução e a revolução estava se voltando contra o tipo de arte que ele fazia, contra o tipo de poesia que ele escrevia e contra pintura, escultura, teatro das correntes modernas. Foi a grande diferença dele com o partido. A cúpula do partido era defensora da arte tradicional e ele era pela arte avançada, moderna.

Brasileiros – O suicídio foi um protesto dele, digamos assim?
B.S. –
Ficou irrespirável, o ambiente para ele ficou irrespirável. Ele teve um romance, bom… ele teve várias mulheres. Um dos romances dele era com uma russa emigrada em Paris. Ele queria voltar a Paris para se encontrar com essa mulher e não deram passaporte pra ele. Foi um grande desgosto para ele, que não conseguia passaporte pra viajar para o exterior.

Brasileiros – Ele era considerado inimigo do regime?
B.S. –
Não, não era considerado inimigo do regime. Mas era considerado suspeito de tendências indesejáveis, como essa de ter um romance com uma russa emigrada.

Brasileiros – Ele era malvisto?
B.S. –
Muito malvisto. Nos últimos tempos, ele era muito malvisto. Inclusive chegaram a escrever contra ele. O Gorki chegou a escrever contra a poesia dele.

Brasileiros – Mas ele tinha muita repercussão como poeta na época dele?
B.S. –
Tinha. Ele era muito popular. A poesia dele era essencialmente popular, inclusive voltada ao público. Não é uma literatura para eruditos. E ele tinha aquele dom oratório extraordinário, era ele quem dizia os versos dele em público. Ele precisava do contato direto com o público e inclusive estavam dificultando esse contato direto. Não proibiam, ainda não havia como proibir espetáculos de Maiakóvski…

Brasileiros – E eram espetáculos pagos?
B.S. –
As pessoas pagavam. Uns eram pagos, outros não.

Brasileiros – Ele vivia da venda de livros? Do que ele vivia?
B.S. –
Ele vendia muitos livros, vendia muito.

Brasileiros – E ele era contra a vodka, fazia campanha contra a vodka?
B.S. –
Acontece o seguinte: com ele houve todo um processo em relação a isso. Contra a vodka ele nunca foi. Há o famoso verso no poema que ele dedicou ao poeta que cometeu o suicídio, Iessiênin, outro grande poeta: “Antes morrer de vodka que de tédio”.

Brasileiros – E naquela época, na Rússia, os artistas, escritores, usavam algum outro estimulante? Cocaína por exemplo?
B.S. –
No começo do século XX houve muita droga na Rússia. Inclusive, chegou a ser um problema. Jovens drogados era fato muito comum.

Brasileiros – Era o quê? Cocaína?
B.S. –
Cocaína. Principalmente co-caína. Ópio também.

Brasileiros – E Maiakóvski usava?
B.S. –
Não. Ele gostava de um bom copo, mas drogas, acho que não. Acho que não, não tenho certeza. O fato de ter escrito “Antes morrer de vodka que de tédio”, foi a propósito das críticas que se fazia ao Iessiênin, um bêbado, que nos últimos tempos, era recolhido na sarjeta. Maiakóvski escreveu um belíssimo poema sobre o suicídio do Iessiênin. Mas depois, entre os jovens, havia um culto a Iessiênin. O Iessiênin como boêmio, beberrão. E aí Maiakóvski escreveu um roteiro de um filme que não chegou a ser filmado, criticando a figura do poeta bêbado. Mas em O Percevejo é o contrário, porque o bêbado é a figura mais simpática, o vagabundo que fica só tocando violão é a figura central e figura positiva, há uma admiração por ele.

Brasileiros – Essa sociedade que ele cria em O Percevejo é fantástica, porque ele joga de repente a ação 50 anos à frente…
B.S. –
Isto. Uma delegação brasileira na época era o cúmulo de civilização, de requinte, vir uma delegação brasileira, pousar em Moscou. Isso em 1928, ele estava prevendo que em 1978 seria possível esse milagre.

Brasileiros – E ele citou o Brasil mesmo em O Percevejo? Pensei que fosse uma licença da tradução…
B.S. –
Não!

Brasileiros – E quando Maiakóvski morreu, Lilia estava com ele?
B.S. –
Não. Não estava mais com ele. Ela me disse que foi depois da separação: “Maiakóvski teve a vida dele, eu tive a minha, a gente se encontrava e contava tudo com a maior franqueza um pro outro, éramos muito amigos, mas já não vivíamos juntos”. Ele se suicidou… Quando ele foi viver junto com Lilia e Ossip Brik, ele conservou uma garçonière no centro de Moscou, um quarto. E, de vez em quando, ele usava a garçonière. Na ocasião do suicídio, ele estava na garçonière com uma atriz… Uma atriz dramática de Moscou, que até deixou reminiscências sobre o suicídio de Maiakóvski. Polonskaya era seu nome.

Brasileiros – A relação dele com essa atriz era alguma coisa profunda?
B.S. –
Não, não era nada profundo. Nos últimos anos de vida, a sua maior ligação foi com aquela russa em Paris.

Brasileiros – A Polonskaya assistiu ao suicídio?
B.S. –
Não, ela não assistiu.

Brasileiros – Ele estava sozinho? Foi um tiro, não foi?
B.S. –
Sim.

Brasileiros – E a arma, ele conseguiu onde? Ele gostava de armas?
B.S. –
Ele gostava de ter sempre uma arma e tinha obsessão por suicídios. Isso conta o Jacobson, que foi muito chegado a ele. Aponta na poesia várias passagens, ele volta e meia falava em suicídio na poesia dele.

Brasileiros – E como a notícia do suicídio foi recebida em Moscou?
B.S. –
Com perplexidade. Ninguém esperava. Nos últimos tempos de vida, de fato, ele não estava bem, ele se sentia acuado, o partido fazendo críticas à obra dele. “Operários e camponeses não compreendem o que você diz.” Que ele escrevia difícil demais. Ele respondia: “Mas a culpa não é minha, vocês é que não instruíram o povo suficientemente”.
Mas você estava falando sobre a presença do Brasil, mas o Brasil era bastante cogitado na Rússia, na época, pensava-se muito no Brasil. Há dois romances muito populares na Rússia, de dois autores (Ilia Ilf e Evguenii Petrov), um se chama As doze cadeiras, um romance humorístico. E a continuação dele é o Bezerro de Ouro, que, no início, um personagem que é um pícaro soviético aparece sempre dizendo – isso quando havia lixo na rua ou o trânsito não andava, ele dizia: “Ah, vocês pensam que isto aqui é o Brasil? Isto aqui não é Brasil, não, no Brasil, no Rio de Janeiro há palmeiras, praias, as pessoas andam de roupas leves, brancas, isso não é o Brasil, não!”.

Brasileiros – E quando você saiu da Rússia?
B.S. –
Foi, foi em 1925, chegamos ao Brasil no final de 1925.

Brasileiros – E qual era a situação do povo brasileiro em 1925, você via o que na rua? Era parecido com o que dizia aquele personagem no Bezerro de Ouro?
B.S. –
De modo geral, o clima era de pobreza, havia uma indigência, o povo estava na pobreza mesmo. Meu pai estava melhorzinho de vida. Nós ficamos no Rio de Janeiro uns seis meses, depois nós mudamos para São Paulo onde meu pai se associou a um grupo de brasileiros que financiaram uma fábrica de ceras para assoalhos e ele bancou o químico. Ele gostava de fazer misturas e tal, mas não tinha conhecimento nenhum dessas coisas, gostava de misturar coisas. Ele não era muito de estudar, meu pai não era de estudo, mas ele gostava assim de misturar coisas, gostava de fazer em casa licores, vodkas, misturava álcool com água e dizia que era vodka. Misturava álcool, água e umas casquinhas de limão.

Brasileiros – E a fábrica deu certo?
B.S. –
A fábrica deu certo durante alguns anos, depois a fábrica fracassou naturalmente, meu pai não tinha nenhum conhecimento do ramo na realidade, ele era um autodidata, estava experimentando aquilo, e a coisa funcionou durante alguns anos. Depois, entrou no comércio a fábrica Parquetina, que eu acho que existe até hoje, aí derrubou a fábrica do meu pai. Em 1934, quando eu tinha 17 anos, meu pai fracassou completamente nos negócios e nós nos mudamos de novo para o Rio de Janeiro onde meu pai passou muitas dificuldades. Meu pai chegou a abrir uma lojinha onde ele vendia perfumes. Ele mesmo misturava as essências com o álcool e eu fiquei lá trabalhando com ele nessa loja e fabriqueta de perfumes, na rua Buenos Aires.

Brasileiros – Na revolução de 1932, você estava em São Paulo?
B.S. –
Estava, estava aqui em São Paulo e eu me alistei como escoteiro para ajudar na revolução de 1932.

Brasileiros – Você estava com quê, quinze anos?
B.S. –
É, quinze anos.

Brasileiros – São Paulo foi bombardeada?
B.S. –
O bombardeio em São Paulo foi em 1924. Em 1924, a cidade foi bombardeada mesmo. Agora, em 1934, houve duas incursões do Melo Maluco, um oficial da Aeronáutica que depois se tornou brigadeiro e, de certa forma, se tornou famoso, ele era famoso porque era doidão, saía do Rio de Janeiro pra bombardear sozinho. São Paulo não tinha aviação, os constitucionalistas não tinham aviação, então ele vinha bombardear São Paulo. A primeira vez, ele bombardeou o Campo de Marte, eu vi. Nós morávamos no alto da rua Espártaco, na Vila Romana, numa vilinha… Então, vi de repente assim as bombas assim estourando, a gente via.

Brasileiros – As casas não foram atingidas?
B.S. –
Não, foi o Campo de Marte, lá não havia casas na época. Atualmente é cheio de moradias, mas naquela época não havia casas ali. Então, bombardeou o Campo de Marte a primeira vez e, na segunda vez, que ele veio no sábado seguinte, eu estava com minha mãe no bonde, vi assim uma multidão na rua, as pessoas correndo assim e tal, era o Melo Maluco que tinha aparecido e veio de novo bombardear São Paulo. Ele ficou voando em cima do centro, nós estávamos no bonde e ele ficou voando em cima do centro de São Paulo e nos prédios mais altos havia metralhadoras antiaéreas que ficaram atirando contra ele sem atingi-lo, nem nada e aí passou, passou tudo em brancas nuvens.

Brasileiros – E o que você achava do Getúlio? Como era no tempo do Getúlio?
B.S. –
O Getúlio, quando houve a revolução de 1930, foi recebido de braços abertos em São Paulo, então eu também estava no entusiasmo, era um entusiasmo geral em 1930. Mas em pouco tempo a coisa degenerou porque ele nomeou interventores e os paulistas, que tinham recebido Getúlio de braços abertos, se ofenderam porque os interventores eram quase todos do Nordeste, teve um forte sentimento antinordestino em São Paulo, inclusive separatista. E então houve toda uma campanha, eu me lembro de campanhas políticas e os paulistas reivindicando interventor paulista e civil…

Brasileiros – E o Getúlio, te parecia mesmo que ele tinha tendência fascista, tinha amizades… flertava com o nazismo?
B.S. –
Em 1940, no Dia da Marinha, Getúlio fez o famoso discurso que parecia até um discurso fascista. Eu era estudante de agronomia, estava hospedado em uma casa onde eu pagava hospedagem, casa de um colega, e nós estávamos ouvindo na hora da refeição o rádio que transmitiu o discurso do Getúlio e eu senti aquele discurso como tipicamente fascista e desmaiei. Desmaiei.

Brasileiros – Que choque.
B.S. –
É. Vi o nazismo avançando, tanto é que depois eu fui pra guerra, fui pra guerra por causa disso. Fui pra guerra porque achava necessário lutar contra o fascismo.

Brasileiros – Mas ao mesmo tempo que você lutava pelo Brasil contra o fascismo, Getúlio tinha esse flerte com o nazismo… Apesar de, a essa altura, já ter feito acordo com Roosevelt.
B.S. –
Eu sei que os soldados brasileiros iam pra guerra comentando… Nós fomos vendidos por dólares. Acontecia o seguinte, da classe média pra cima, as pessoas não eram muito getulistas. Da classe média pra baixo, o povo era getulista, um povo totalmente getulista.

Brasileiros – É mais ou menos como hoje com o Lula? Há semelhanças entre Getúlio e Lula?
B.S. –
Eles têm semelhanças, sim. O Getúlio era um patriota, era um indivíduo patriota que acreditava que o bem do Brasil estava em fortalecer a indústria nacional e que tinha um certo sentimento assim totalitário, uma tendência totalitária. Então, por causa das circunstâncias, ela simpatizava mesmo com os nazistas, disso não há dúvida alguma. Mas ele era um patriota que desejava fortalecer a indústria nacional, seu grande objetivo era construir a Usina de Volta Redonda. Ele mandou tropas para a Europa e, pelo que parece, os americanos não queriam essas tropas, não faziam questão.

Brasileiros – Mas por que Getúlio mandou as tropas, não foi pedido do Roosevelt?
B.S. –
Hoje em dia, sabe-se que não houve pedido nenhum, o próprio Getúlio queria a presença brasileira na guerra, queria Volta Redonda a todo custo, queria que os americanos financiassem coisas no Brasil.

Brasileiros – E você voltou à Rússia?
B.S. –
Eu estive lá várias vezes. A primeira vez, em 1965. Eu tinha receio de voltar porque eu saí com passaporte soviético, oficialmente, então dos registros deles deveria constar. E eu era cidadão brasileiro, tinha renunciado à cidadania soviética. Então, era um pouco perigoso voltar. Eu só voltei depois que já era professor da USP.

Brasileiros – Você era perigoso aqui porque traduzia russo em plena ditadura anticomunista e lá era perigoso…
B.S. –
E lá era perigoso porque um indivíduo com passaporte soviético que se naturaliza brasileiro…

Brasileiros – Pode ser espião…
B.S. –
Um pouco estranho.

Brasileiros – Você encontrou dificuldades de locomoção, foi vigiado?
B.S. –
Não, não. Vigiado eu fui, mas não no início. No início eu fui muito bem recebido, em 1965, em 1972. Em 1972 me receberam na União do Escritores, fui recebido por um grupo de escritores, depois voltei em 1977, em 1987, em 1997 e em 2008.

Brasileiros – Mas aí você não era mais vigiado?
B.S. –
Eu fui vigiado nos últimos tempos de 1977. Eu era muito ligado a um grupo de escritores de lá que eram malvistos pelo regime, eu era bastante ligado, então depois eles passaram a me vigiar. Quando eu voltei, em 1977, fui detido no aeroporto. Não fui preso, mas fui detido. Fui com a minha primeira esposa, que depois faleceu, fui lá, mas eles me seguraram na entrada, apresentei o passaporte, eles ficaram examinando minha bagagem, peça por peça, depois me mandaram entrar numa sala, eu e minha esposa na época ficamos retidos numa sala no aeroporto, a gente via os soldadinhos de 18, 19 anos, fardados, passando assim rapidamente e carregando meu passaporte no ar. De vez em quando, vinha um fulano dizer: “Não se preocupem, está tudo em ordem”. Passamos duas horas retidos naquela sala, depois nos devolveram os passaportes e nos liberaram. Depois, quando eu voltei já com a minha segunda esposa, no aeroporto de Moscou foi uma espera longa, examinando peça por peça e depois quando nós íamos saindo nos seguraram no aeroporto. Nos seguraram, interrogaram se eu carregava materiais, se eu carregava cartas, eu era suspeito de levar materiais escritos pra fora, eles tinham muita preocupação com textos…

Brasileiros – Quem era o presidente?
B.S. –
Foi a época do Brejnev.

Brasileiros – Com aquela cara de urso.
B.S. –
É. E depois quando eu voltei com minha esposa lá, um grande amigo meu, o poeta Yevgeny contou que foi interrogado na KGB sobre a minha pessoa.

Brasileiros – Quer dizer que você não estava bem com a KGB…
B.S. –
Não, na KGB não. Inclusive quando eu voltei em 1997 fui vigiado, fui acompanhado sempre por um rapazinho…

Brasileiros – Em 1997?!
B.S. –
Em 1997? Não, espera… perdão, foi em 1987. Eu fui acompanhado, era o tempo do Gorbatchov, mas a KGB atuava independente do Gorbatchov, tinha a sua própria atuação. Eu estava sob vigilância. Um rapazinho ficava na porta do hotel, sempre.

Brasileiros – E aqui no Brasil, traduzindo russo em pleno regime militar, você foi perseguido também?
B.S. –
Bom, aqui eu tive problemas, mas principalmente porque eu protestava. Quando eu tinha oportunidade, eu protestava. Eu não tinha nenhuma atividade política, não pertencia a algum grupo de guerrilha, mas eu protestava. Fui detido várias vezes.

Brasileiros – Onde? No DOI-CODI? No Dops?
B.S. –
Estive no Dops e na Oban, na Tutoia. Assim que a Oban foi criada. Eu nem sabia que a Oban existia. Eles me levaram de carro e eu perguntei: “Nós estamos indo pro Dops?”. Eles me disseram que sim. Depois eu os vi subindo a avenida Angélica. Eu perguntei: “Vem cá, nós não estamos indo pro Dops, vocês disseram que estávamos indo pro Dops”. “Não, não, é uma outra repartição…”

Brasileiros – Mas eles deixavam conversar? Deixavam fazer perguntas? Em 1973 não era mais assim, me encapuzaram, eu nem via para onde estava indo…
B.S. –
Não me trataram assim. Eu era professor da USP. Não posso dizer que eles tivessem muita cautela, mas uma certa cautela. Lá na Oban eu fui interrogado pelo Brilhante Ustra, o comandante, mas também é tudo bobagem…

Brasileiros – Bobagem como?
B.S. –
Eles queriam me assustar. Sabiam que eu não tinha nenhuma atividade na guerrilha. O máximo que eu passei lá foram umas cinco, seis horas.

Brasileiros – Você não foi nem ameaçado?
B.S. –
Veladamente, sim. De um se virar pro outro, eles usavam carabina e um dizia pro outro: “Tá vendo? Isso é carabina de matar professor da USP…”.


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