Uns desenham carros de competição. Outros pilotam. Assim as coisas costumam ocorrer – ou correr, se aqui o verbo cabe melhor. Mas há casos, raros, em que as duas atividades se casam. Um deles chama-se Anísio Barbosa Campos. Um caso especialíssimo, por sinal. Além de automóveis de corrida, ele desenha os de passeio. Também projeta móveis, ambientes, pinta quadros a óleo, o que der e vier. Basta despontar a ideia e Anísio acelera firme – como em seus melhores tempos de piloto.
Na ponta do lápis, este paulistano boa praça vem criando carros desde a metade dos anos 1960. Vários deles fizeram história. Incluam-se na lista o biposto AC (sim, suas iniciais), o Mini Dacon 828, o Kadron (o primeiro buggy brasileiro) e monotipos das Fórmulas Vê e Super V. Um de seus bólidos mais marcantes foi o protótipo Carcará, criado em parceria com Rino Malzoni e, ainda hoje, dono de linhas futuristas.
Desenhado há 44 anos, para testes de velocidade – e não para corridas -, o carro com nome de ave de rapina mantém o recorde sul-americano para motores de 1 litro, aspirados: 212,903 km/h. Tão ou mais inacreditável: foi construído na fazenda de Malzoni, na quente Matão, interior de São Paulo. Um único e heroico funileiro bateu as chapas de alumínio, uma a uma, seguindo os desenhos originais.
Anísio se deu bem também nas pistas. Seu cartel inclui vitórias memoráveis, contando aí as suadas “12 Horas de Interlagos” de 1967, em dupla com o lendário José Carlos Pace. O carro que dirigiram era uma brasileiríssima adaptação desenvolvida adivinhe por quem?
[nggallery id=15310]
Naquela ocasião, Anísio recriou em fibra de vidro – “para aliviar o peso” – uma carroceria Karmann Ghia. No chassi desse pequeno carro esporte, então fabricado no Brasil, foi instalado um poderoso motor alemão Porsche de 200 cavalos. Eram os tempos da equipe Dacon, divisão da tradicional revendedora de automóveis, ainda hoje instalada na Avenida Europa, em São Paulo – e que deu nome ao prédio circular de vidro fumê, uma referência da capital (ao menos geográfica). “Quem me chamou para a Dacon foi o dono, Paulo Goulart, com a ideia de vender não só os carros originais de fábrica, mas aqueles que adaptávamos para as corridas”, lembra.
Trabalhar tanto com o lápis quanto com o volante requer precisão, talento e concentração. Convenhamos: nada fácil. O caso de Anísio Campos é ainda mais intrigante. Primeiro, porque ele não teve uma educação formal de designer. Trata-se de um autodidata, que apenas ensaiou um vestibular para Arquitetura, em uma família de advogados. Além disso, em vez de iniciar sua paixão pelo desenho esboçando um carro de corrida, começou pintando um retrato da mãe, aos 13 anos.
Suas primeiras incursões nas corridas datam de 1958. “Cheguei em segundo lugar numa subida de montanha, de Cubatão a Paranapiacaba (SP)”, lembra. “Já estava tão apaixonado pelo automobilismo que vendi um Jaguar para comprar um carrinho brasileiro, menos pesado.” Perdeu bastante na troca. Ganhou um emprego.
Era o início da indústria automobilística brasileira e Anísio foi chamado para pilotar nas equipes oficiais das fábricas. Primeiro, entrou na Willys. Depois, na DKW-Vemag e, mais tarde, na Simca. Dessa época, ficou a lembrança mais forte. Capotou um Simca Chambord na curva 2, no autódromo de Interlagos. No final do acidente, se viu debaixo do carro “com o escapamento ardendo na barriga”.
Foi o nascimento das diminutas montadoras brasileiras, basicamente artesanais – entre elas, Malzoni, Gurgel, Dacon, Puma e Bianco -, que abriu o mercado para os desenhistas brasileiros de automóveis. “Enfim, um pretendente a designer passou a correr atrás do sonho juvenil”, resume. Na Puma, Anísio ajudou a desenvolver projetos, como o modelo GT. Depois, só para as pistas, criou o protótipo AC “que deveria abastecer uma categoria de veículos de competição e manter o automobilismo brasileiro vivo”.
Parece dramático. Anísio temeu mesmo pelo fim das corridas no Brasil? Sim. Ele credita o renascimento ao sucesso na Europa da geração de Emerson, Wilson Fittipaldi e José Carlos Pace (para quem criou a pintura do capacete azul, com setas amarelas). “Com o fechamento das equipes de fábrica, tudo ficou difícil”, diz. “Foi por isso que aquela leva toda de pilotos partiu para tentar a sorte na Europa. Quem podia, ia. Por que não fui? Já havia passado da idade, só isso.”
Na madura visão do piloto/designer, as vitórias de Emerson inventaram um mercado e deram vez a investimentos, possibilitando que Anísio ajudasse a criar e comandar a Equipe Z. Nas pistas, participavam do time Luiz Pereira Bueno, Lian Abreu Duarte e, de início, o próprio Anísio. Tempos esplêndidos. Inesquecíveis. Anísio foi pessoalmente a Stuttgart, na Alemanha, comprar um Porsche 908/2, novinho. A equipe tinha caixa. Era patrocinada pelos cigarros Hollywood, da Souza Cruz, e pela Shell. Tornou-se um modelo de organização e fez cinco temporadas vitoriosas e completas, em várias categorias. Um arraso. “Foi a primeira equipe realmente profissional de automobilismo no Brasil”, celebra. “Ganhei muito dinheiro. Gastei muito, também.”
A partir daí, Anísio foi se afastando das pistas para dedicar-se cada vez mais ao desenho. Na Dacon, viu despontar alguns de seus orgulhos. “Veio até jornalista da Alemanha para conhecer o 828, que era então o menor carro do mundo, medindo 2,40 m”, diz. “O carrinho entrou em produção. Era um pequeno que não se sentia diminuído.”
Na Engerauto, desenhou a minicaminhonete dupla Topázio. “Foi o primeiro carro brasileiro que troca de roupa”, entusiasma-se, bem-humorado. “Ele pode ser um utilitário no decorrer do dia e, depois, se transformar num modelo de passeio, para levar a namorada. Basta colocar uma tampa na traseira.” Uma de suas criações mais recentes é o Obvio 0012. Mais um minicarro, uma opção já renitente.
Eclético, Anísio enveredou por outras áreas do design. De início, apenas atendeu a insistentes pedidos do velho e saudoso amigo Paulo Goulart. Não havia como dizer não. Para Goulart, criou o esboço do Deck, o bar-restaurante que foi o point da turma do automobilismo, na Avenida Nove de Julho, no decorrer dos anos 1960. Duas décadas depois, o mesmo amigo indagou se desenharia a cara de um restaurante nas dependências da concessionária Dacon. Anísio pediu um papel, uma caneta de ponta fina e ali mesmo, na hora, rabiscou a ideia. Surgia o caprichado Anexo.
Hoje, aos 76 anos, três filhos e quatro netos, morando na represa Billings – a 35 km do centro de São Paulo -, “Don” Anísio, como os amigos o tratam, continua desenhando carros, mesas, o que lhe der na telha. Em um quadro a óleo, juntou, há poucos meses, as paixões de uma vida inteira: “Pintei uma Ferrari, inspirado no Van Gogh”.
Deixe um comentário