“Mas um clássico não é um cigarro da Souza Cruz?”

A bem da verdade, a pergunta não chegou a surpreender o primeiro e improvisado professor de literatura do pedreiro Evando dos Santos. Afinal, o aluno do esclarecido mestre de obras Dernival Pereira, sergipano como ele, tinha sido alfabetizado havia pouco tempo, aos 18 anos, na Escola Batista da Vista Alegre, zona norte do Rio de Janeiro. Devia ter uns 21 na época em que foi apresentado pelo colega sexagenário a uma outra, digamos, marca de clássicos. A conversa se deu em um raro momento de folga de uma reforma em um prédio da Avenida Brasil, no Rio de Janeiro.

TIJOLO POR TIJOLO – Sua primeira biblioteca começou com 50 livros que seriam jogados no lixo. Ele recolheu

“Não é só isso, meu filho”, contornou Dernival, piso-teando num toco de cigarro ainda em brasa. Em seguida, completou como se fosse um mestre de obras literárias: “Um clássico é um livro bem escrito, original, universal e que fica para sempre”.

Evando prestou atenção, entendeu mais ou menos, e voltou a trabalhar. Mas levou, emprestados, de Dernival alguns livros de autores clássicos. Entre eles, Machado de Assis, Lima Barreto e Pablo Neruda. Tempos mais tarde, lendo oito palavras de um livro do escritor Tobias Barreto de Meneses, também tomado emprestado de Dernival, ele se sentiu realmente tocado. “A vida é uma leitura. Ler é lutar”, escreveu Barreto, que também era filósofo, poeta e jurista − e ainda por cima sergipano! Daquela vez, Evando entendeu tudo.

Foi o mote que levaria Evando, anos mais tarde, a fundar sua primeira biblioteca. Não ficou nisso. O ex-pedreiro sergipano ajudou a criar outras 36 pelo país, incentivando e enviando livros. Foram 20 mil volumes para três Estados nordestinos. Até Angola, do outro lado do oceano, se viu contemplada. Essa história sensibilizou Oscar Niemeyer, que desenhou, de graça, o projeto da Associação Centro Cultural e Biblioteca Comunitária Tobias Barreto de Meneses, que Evando comanda hoje, aos 49 anos, na Vila da Penha, Rio de Janeiro.

Evidentemente, o nome da biblioteca tinha de ser uma homenagem ao escritor que abriu os horizontes do ex-pedreiro. Uma das teorias de Tobias Barreto − por sinal, o maior bibliófilo do Império − sustenta que a educação se baseia em imagens vistas em estampas impressas e em desenhos. Ora, isso confirmava aquilo que Evando sabia desde a infância em Aquidabã, pequena cidade do sertão sergipano. Por ter trocado as horas de estudos pelo trabalho na roça, não aprendeu a ler quando garoto, mas adorava imaginar o enredo por trás das imagens nas páginas dos livros de cordel. Evando foi um menino que não conheceu o pai e trabalhava com o avô, cortando junco para confeccionar travesseiros e colchões em que outros dormiam. Sua família era formada pela mãe, Zelita, e o avô, José Mestre. Dormiam todos numa esteira dura de taboa. Mal importava. Evando nunca foi de ficar deitado, nem mesmo nas horas de folga. Para ele não existia diversão melhor que desembestar em direção à feira da cidade para ouvir as histórias de cordel narradas por vendedores ambulantes de remédios e livros. Eram os chamados “propagandistas”.

“Eu escutava as histórias, gravava todas na memória, e depois pedia aos propagandistas para olhar as figuras de novo. Era como se já pudesse desvendar o significado do amontoado de letras”, lembra Evando.

Embora a sua cartilha tenha sido os Salmos, os primeiros livros que procurou para ler, ou “reler” de certa forma, foram mesmo os de cordel que marcaram sua infância. Evando nunca se esqueceu das fantásticas passagens contidas em títulos como O Gigante do Terror, Lampião no Inferno, O Boi Leitão. O fascínio era tamanho que chegou a ter em casa trezentas obras de cordel.

Desde que começou a ler, a vida de Evando passou a ser rodeada não apenas de clássicos e cordéis, mas de todo o tipo de livro. Na sua pequena casa na Vila da Penha, bairro carioca onde nasceu o jogador Romário, há livros por todos os cantos. Os móveis parecem servir apenas de suporte para as pilhas de volumes. Elas vão se acumulando pela sala, corredor, cozinha. Até o colchão, espremido no quarto que divide com a mulher, a professora Maria José, tornou-se um objeto, à primeira vista, fora de lugar.

Os livros não param de chegar desde o dia em que, 11 anos atrás, Evando saiu para consertar um vazamento e voltou para casa carregando cerca de 50 títulos que estavam sendo jogados fora pelo sujeito que o contratou. O sergipano tomou gosto. Passou a pedir outros livros para ler e depois distribuí-los a quem quisesse ou encontrasse pela rua.

Foi assim que a casa onde morava com a mulher e a mãe, que faleceu em julho, tornou-se uma biblioteca comunitária, com horários e regras bem diferentes. Ela jamais fechava – nem aos domingos. Muitos livros emprestados, nem precisavam ser devolvidos. “Se o leitor se encanta com uma obra a ponto de querer tanto, que fique com ela. A leitura cumpriu assim o seu papel”, filosofa.

Evando e suas ideias pouco convencionais já inspiraram dois curta-metragens (O Homem-livro, de Ana Azevedo, e O Pedreiro Literário, de Luiz Cláudio Lima) e até um romance do escritor e filósofo italiano Remo Rapino (Un Cortile di Parole, Carabba Editore, 2006). Sua trajetória também está presente entre os 26 depoimentos de viradas, reviravoltas e superações presentes no livro Recomeços (Editora Saraiva, 2009). Indicado pela escritora Nélida Piñon, Evando recebeu uma medalha da Academia Brasileira de Letras em reconhecimento à sua luta. Ele ainda ganhou, ao lado de outras dez personalidades − entre elas, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, Dom Eugênio Sales e o seu próprio “benfeitor” Oscar Niemeyer −, o prêmio “Personalidade Cidadania 2009”, criado pela Unesco, Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e Folha Dirigida, em homenagem às conquistas sociais dos laureados.

Os livros de Evando, sua grande obsessão, estão sendo transferidos, dia a dia, para a Biblioteca Tobias Barreto de Meneses, para auxiliar na formação daqueles que, como ele no passado, tiveram pouco acesso à leitura. Já estão catalogados 1.500 dos 4.500 títulos disponíveis. A construção da biblioteca é um capítulo fundamental nessa odisseia tão grandiosa quanto inusitada, vivida por um pedreiro bibliófilo.

“Meu amigo está fazendo história”, diz o radialista João de Xerém, que o conheceu quando trabalhava em uma rádio comunitária, já fechada. “Nunca se ouviu dizer de um pedreiro capaz de construir um patrimônio cultural dessa relevância”, acrescenta o radialista, colaborador do programa de Adelson Alves, locutor da Rádio Ministério da Educação e Cultura.

A biblioteca está sendo organizada com o mesmo entusiasmo com que Evando, anos atrás, ligou para um programa de tevê para fazer um pedido ao vivo ao entrevistado da tarde. Sim, o arquiteto Oscar Niemeyer. Depois de ter pincelado a sua história à produção do MultiRio, da TV Bandeirantes, Evando perguntou a seco à Niemeyer:

– O senhor faria de graça um projeto para a minha biblioteca na Vila da Penha?

Impressionado, tanto pelo atrevimento como pelo que acabava de saber a respeito daquele operário das letras, o arquiteto respondeu:

– Eu faço isso por você. Na verdade, sempre tive um sonho de ver centenas de bibliotecas desse tipo espalhadas pelo Brasil.

Passaram-se quatro anos entre aquele primeiro contato e a realização da obra, inaugurada em dezembro de 2008. Embora assentada por um belo projeto, ela não deixa de refletir a distância entre idealismo e prática. Faltam verbas para tudo sair como o sonhado. A associação é mantida com doações(*) e parte da aposentadoria da mãe de Evando. Na fachada espelhada, há um comunicado escrito à mão, avisando que os banheiros estão quebrados. A chave sempre fica com Evando. Quando ele não está dando expediente, basta ligar para a sua casa e ele logo aparece, sempre disposto a atender quem quer que seja, como já fazia em sua casa – hoje, um informal prolongamento administrativo da biblioteca.

“Num país com um índice de leitura tão baixo, é impressionante ainda existir heróis assim”, ressalta a professora Sônia Izoton, dona de um tradicional colégio na Vila da Penha, o Jardim Escola Pequeno Torcedor. Ela costuma participar, com outros professores e alunos, dos “arrastões literários” que Evando promove de tempos em tempos, distribuindo livros pela cidade. Nessas ocasiões, o ex-pedreiro aparece paramentado de “homem-livro”. O traje, de cartolina, tem frases de grandes escritores. Evando talvez exagere em seu apreço pelos livros, quando afirma que são os filhos que não teve. Mas não seria nenhum exagero concluir que essa é daquelas histórias que superam, de longe, qualquer ficção. E mais: tal como os clássicos, não pode ser esquecida.


(*) Associação Centro Cultural e Biblioteca
Comunitária Tobias Barrrretto
Banco Itaú – Agência 0782 – CC 78892-1


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