Foto: Tiberio Barchielli
Foto: Tiberio Barchielli


O blogueiro saudita Raef Badaoui 
está cumprindo pena de dez anos de prisão e condenado a mil chibatadas, distribuídas no decorrer 20 semanas, por “insulto ao Islã”. Com o rosto à mostra, mãos e pés amarrados, Badaoui recebeu as primeiras 50 chibatadas em uma praça pública da cidade de Jeddah, na costa do Mar Vermelho. O flagelo foi acompanhado por centenas de pessoas. Dois dias depois, a Arábia Saudita, uma monarquia absolutista, se fez representar em Paris na marcha que reuniu mais de um milhão de pessoas em homenagem às 17 vítimas dos ataques iniciados na redação do semanário satírico Charlie Hebdo.

A postura contraditória do rei saudita não foi exceção na “marcha republicana contra o terrorismo”, como definiu o presidente francês, François Hollande. Pelo menos dez dos 40 chefes de Estado e governo, que marcharam de braços dados em Paris, violam de forma sistemática a liberdade de imprensa e os direitos humanos. Entre eles, a dupla envolvida há décadas em um dos conflitos mais sangrentos da atualidade. De um lado, o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas. Do outro, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, de Israel.

A seguir, o psiquiatra Auro Lescher, o editor Daniel Benevides e o professor de Direito Internacional Salem H. Nasser comentam o episódio:

Je Suis Humain

Por Auro Danny Lescher*

No final dos anos 1970, século passado, eu tinha 16 anos e viajava por Israel em um grupo de 30 jovens paulistanos judeus. Para mim, que era tímido e esquisito, foi a primeira aventura em uma sociabilidade tão grande, tão longe de casa e por tanto tempo. A viagem era clássica: morar dois meses em uma escola agrícola perto de Tel Aviv para experimentar o dia a dia daquela comunidade naquela cultura, uma semana de turismo e muitas dinâmicas de grupo para despertar o sentimento sionista em cada um de nós, o tanto quanto possível. Queriam me convencer que eu seria melhor judeu se adotasse Israel como minha “mátria”.

Lembro-me de uma dessas dinâmicas no salão da escola, coordenado por um carismático rabino. Após breve apresentação de si mesmo e da atividade que iríamos iniciar, colou quatro cartolinas nas paredes, uma em cada canto do espaço. Em cada uma delas, variações de uma mesma frase: “Eu sou brasileiro”, “Eu sou judeu”, “Eu sou humano” e “Eu sou sionista”.

Em seguida, pediu para que nos dirigíssemos ao canto que mais nos identificássemos: 26 foram para cartolina “Eu sou judeu”. O rabino olhou-os com alguma condescendência. O PJ, que era filho de um tenente-aviador da Aeronáutica, foi para “Eu sou brasileiro”. O rabino praticamente o ignorou. A Rebeca foi para “Eu sou sionista”. Virou a queridinha dele. Eu e o Beni fomos para “Eu sou humano”. Não consigo, ainda hoje, decifrar o sentimento que o rabino guardava atrás de toda aquela longa barba grisalha. Inquietações sobre a sua própria identidade que mantinha em segredo?

Beni era a única pessoa do grupo que eu conhecia previamente. Era meu amigo do Scholem Aleichem, uma escola mantida por parte da comunidade judaica de São Paulo. A escola tinha o nome desse escritor ucraniano que narrava em suas histórias a vida nas pequenas comunidades da Europa Oriental, sempre com humor, ironia e olhar universalista da tradição. Nós, alunos, gostávamos muito do Scholem, uma espécie também de trincheira (anos de forte repressão política) para muitos educadores que criavam práticas pedagógicas de vanguarda. Uma educação para a vida solidária. Lá a gente misturava Woody Allen com Guimarães Rosa ou Spinoza com Plínio Marcos. Tenho certeza de que eu e Beni nos posicionamos na dinâmica de grupo afetados pelo “ethos” que respirávamos naquela escola.

Os tristes acontecimentos em Paris, neste início do 16o ano do século 21, fortalecem em mim a convicção da importância da educação humanista na proteção da vida e garantia de liberdades. Hoje, 36 anos depois daquela viagem, consigo pensar em um humanismo muito singular, à moda da casa. Humanismo que tem no ser humano o protagonista, sem dúvida, mas não como o centro da ação. O centro é exatamente a relação, o vínculo que esse ser humano consegue manter com o outro. Esse outro, para mim, é amplo, generoso. Pode ser um rio, uma árvore, uma cultura, outro ser humano. Isso cria uma superfície de contato entre os seres. E se eu me identifico com o outro prioritariamente pelo que é humano em mim, com minhas tradições e contradições, consigo experimentar a empatia, a possibilidade de compreender o que o outro sente, mesmo que muito estranho ou até ofensivo em relação às minhas referências intelectuais ou emocionais. Eu instigo o outro a fazer movimento assemelhado em relação a mim. Campo fértil para acordos que buscam construir o melhor real possível.

“Quem sou eu?” É uma pergunta cuja resposta precisa sempre ser atualizada. É uma aventura pessoal, criadora, intransferível e, curiosamente, só se forma e se mantém viva na relação com o outro, que também se empenha em construir a sua própria aventura. Estamos todos unidos por esse implacável destino.

Eu sou humano. 

*Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), coordenador do Projeto Quixote e psicoterapeuta.

Charlie et les autres

Por Daniel Benevides*

Há muito, Edward Said alertava para as generalizações culturais, em especial quando usadas para definir o mundo árabe. As reações à tragédia na redação do Charlie Hebdo mostraram em grande parte que essa questão ainda é central e muito mal resolvida.

Há dois dados cruciais em jogo, ambos injustificáveis. Um deles é a covardia do terror; outro, a islamofobia. Ambos estão relacionados, mas da pior maneira possível. Se os terroristas eram islâmicos, não representavam o islamismo e muito menos a grande maioria dos muçulmanos.

Fato é que para resolver um problema é preciso resolver o outro – e não botar mais lenha na fogueira. A extrema direita francesa, cujo cavalo de batalha é a xenofobia pura e simples, já botou as mangas e o resto do paletó de fora. Marine Le Pen está como pinto no lixo: alimenta-se do horror para insuflar ainda mais o ódio.

Uma reação violenta só vai recrudescer o fanatismo de ambos os lados. É evidente que a liberdade de expressão é desejada por todos, mas não são todos que têm acesso a ela. A maioria dos cidadãos muçulmanos de origem árabe na França sofre com o preconceito e o frequente desrespeito aos direitos civis. Não tem meios para mostrar seus pontos de vista. Não sabemos realmente como são, o que pensam ou o que sentem. Não nos interessa, pois já temos a opinião formada (ou talvez fosse melhor dizer opinião forjada).

Qual a porcentagem de islâmicos violentos? Mínima. Aos olhos ocidentais, no entanto, é gigantesca (tenebrosa, assustadora). Há pesquisas que mostram claramente essa distorção. E a quem serve essa visão? Lembra a discussão sobre a maioridade penal. Apenas 0,5% dos crimes de morte no Brasil são cometidos por menores de idade. É o suficiente para que peçam suas cabeças, indiscriminadamente.

Sou Charlie, sou Ahmed, sou Nigéria, sou muçulmano, sou judeu, sou ateu, sou opressor, sou oprimido. Sou a consulesa da França. Sou os mais de 80 negros mortos por dia no Brasil. Mas com liberdade. Estou aqui, falando o que penso porque tenho esse espaço. Defendo o Charlie, apesar de execrar algumas das charges do semanário (há coisas de péssimo gosto, racistas, sexistas, xenofóbicas, etc.). Defendo a inserção real dos imigrantes árabes e africanos nos países europeus. Defendo a divisão de Israel em dois Estados. Defendo a denúncia das práticas terroristas também do lado ocidental, especialmente dos EUA. Defendo que as periferias tenham o mesmo tratamento dispensado aos centros. É pedir muito? Não me parece. Basta boa vontade. E bom senso.

E agora? Não podemos trazer o Wolinski (que eu tanto li e admirei) e seus colegas de volta, ou o bravo guarda Ahmed, ou o não menos corajoso Yohan Cohen. Mas podíamos trazer de volta a capacidade de compreender o diferente, a capacidade de não se prender a uma visão de dominância, de entender as diversas culturas que fazem do mundo um planeta rico – um planeta que, se realmente quisermos, ainda pode ser pacífico. 

*Editor do caderno Literatura!Brasileiros.

Pode-se rir do que não se conhece?

Por Salem H. Nasser*

Alguém teria dito que o mundo é essencialmente uma cloaca. Há algo de verdade nisso. Não podendo viver em eterna revolta sisuda, encontramos no humor e na ironia da sátira um modo de denunciar sorrindo o absurdo da condição humana.Em princípio, essa é a missão que o Charlie Hebdo estabeleceu para si, e ele foi tantas vezes bem-sucedido em revelar irreverentemente as inevitáveis doses de hipocrisia, de falsidade e de egoísmo próprias do exercício do poder, do funcionamento das instituições, da guerra e de todas as demais coisas humanas. Em resumo, ele pretendia viver de apontar alegremente para a inevitabilidade da podridão.

E era assim igualmente inevitável que após o ataque ao jornal, que vitimou seus editores e cartunistas, e após a morte de policiais, reféns e criminosos, o mundo – ou a humanidade, se quisermos – brindasse a si mesmo com tantas instâncias de absurdo a merecerem a sátira de um Charlie Hebdo em sua melhor forma.

Eu teria gostado de ver uma charge que brincasse alegremente com a imagem dos chamados líderes mundiais, que se empurravam uns aos outros para estarem na primeira fila da marcha de Paris e para capitalizarem melhor a desgraça, como quem disputa o primeiro e melhor acesso à carniça.

Alguém poderia revelar com alguns poucos traços a ironia e o valor simbólico contidos na distância que se quis manter entre esses notáveis e a massa de manifestantes; um isolamento que permitiu a dúvida sobre se não seria a presença dessa comissão de frente uma mera pose para a providencial foto.

Havia entre esses líderes tantos alvos tão apropriados para uma gostosa denúncia da hipocrisia: os ditadores marchando pela democracia e pelas liberdades, os mercadores da morte chorando as vítimas caídas… Mas, entre todos, que maravilhoso material poderia inspirar Binyamin Netanyahu!

Pouco tempo depois de ter presidido o último massacre dos palestinos de Gaza, obrando permanentemente para ver os palestinos despidos de todos os direitos, de todo o território e de qualquer chance de autonomia, determinado a afirmar, por critérios raciais, a exclusividade dos direitos sobre a Palestina histórica, Bibi se apressa a Paris para afirmar o seu pertencimento a esse lado civilizado do mundo, a esse lugar das luzes, dos direitos, da pluralidade e da diferença.

Quanto material poderia render ao artista talentoso o uso que faz o político israelense dessa desgraça para tentar reverter os pequenos passos que dava a Europa em direção ao reconhecimento dos direitos palestinos, a sua tentativa de associar o Hamas, seu arqui-inimigo, aos radicais islâmicos do tipo Estado Islâmico com quem opera em concerto na frente síria, ou a especialmente suculenta oferta que faz aos judeus da França, que já não podem, afinal, viver ali em segurança, de migrarem para um Israel, que engloba os territórios palestinos, onde se dispõe a lhes construir assentamentos.

E haveria mais. Que tal uma peça que ridicularizasse o bifrontismo das autoridades francesas que, ao mesmo tempo que sustentavam a liberdade de expressão de que deveria gozar o Charlie Hebdo, detinham por suspeita de incitação ao terrorismo um comediante por uma frase irônica, talvez desprovida de graça? E que tal uma autocrítica bem-humorada em que o Charlie Hebdo se censurasse por ter demitido um funcionário que publicou uma crítica ao filho de Sarkozy que foi lida como expressão de antissemitismo? Algo, enfim, que explorasse as razões de ser alvo legítimo o Profeta Maomé, mas não o pequeno Nicholas.

Seria também interessante ver como poderia ser retratado esse desastrado matador encapuzado que faz questão de viajar munido de carteira de identidade e de esquecê-la no veículo de fuga.

A própria natureza humana poderia ser o objeto de uma imaginação irônica que retratasse a força que, tal um curral misterioso, transforma os milhões em Charlies e leva às ruas as multidões aquecidas por um calor intenso no coração, um calor que nos lembra de nossa humanidade e de nossa capacidade de revolta e empatia; essas mesmas multidões que, entediadas, mudam o canal quando os mortos são afegãos, iraquianos, africanos.

Mas não foi nada disso que a edição histórica do Charlie Hebdo, um jornal que passou de alguns milhares de exemplares a milhões que se esgotam em instantes – outra pequena ironia –, resolveu satirizar. Mais uma vez, a decisão foi a de retratar o Profeta do Islã e esperar para assistir mais uma vez às previsíveis manifestações, no Afeganistão, Paquistão, Níger e em tantos outros lugares, à previsível fúria, à previsível violência, às mortes.

Assim como eu, os milhões de muçulmanos furiosos certamente ainda não tiveram acesso ao conteúdo do último Charlie Hebdo, mas isso não tem importância, e os editores sabem disso. É a mera notícia de que Maomé está de volta à primeira página que leva à revolta. É ela que leva aos milhões de exemplares, assim como foi a insistência em retratar o Profeta ao longo dos últimos anos que tirou o Charlie Hebdo de sua relativa insignificância e o elevou a ator global.

Aliás, se às massas de muçulmanos revoltados e aos criminosos que creditam seus crimes a um Islã imaginado se pudesse imputar uma intenção comum e consciente, seria especialmente apropriada uma sátira que lhes mostrasse como suas ações são balas que saem pela culatra e atingem mais o Islã do que poderia um dia fazê-lo o Charlie Hebdo. A insistência com Maomé é apresentada como afirmação do caráter sagrado da liberdade de expressão e como desafio diante da intimidação e da violência. Mas a pergunta é: onde está o humor? Qual a hipocrisia que se está denunciando, qual dos podres humanos?

É louvável que alguém se mantenha fiel a seus princípios diante de riscos pessoais, inclusive de morte. Mas será que não se deve pausar quando se percebe o risco de alimentar uma violência física e simbólica generalizada que atinja indivíduos e coletivos? Quando escolhe retratar o Profeta do Islã como a encarnação do terror e da violência, a mensagem que passa não é a denúncia de uma leitura absurda do Islã, da história e do sagrado que leva a uma violência sem sentido que só pode ser contemplada com um olhar derrisório impiedoso. Talvez fosse diferente se tivesse por alvo os homens – naturais falsificadores do que quer que seja um divino por ventura existente –, como o faz normalmente quando escolhe dirigir suas críticas aos cristãos, à Igreja, aos judeus, ao Estado, a Israel, etc.

Esqueçamos o fato de que a mensagem contém ofensas vividas como insuportáveis pela maioria dos muçulmanos. Façamos isso porque consolidou-se entre nós a ideia de que não temos de levar em conta o sagrado do outro e de que ninguém tem o direito de não ser ofendido. Importa mais o fato de que mensagem que passa já não contém ironia em qualquer medida comparável com o que ali se encontra de fomento ao estereótipo e à intolerância entre nós, aqui onde deveríamos valorar a liberdade, a pluralidade e a diferença.

Alguns rejeitam sumariamente o argumento de que o Charlie Hebdo trata diferentemente o Islã. Lembram, por exemplo, de que assim como retratou o Profeta nu e de quatro, mostrou obscenamente a Virgem Maria dando à luz o Cristo. A diferença está aqui: nós conhecemos a Virgem e o Cristo e temos deles uma impressão, sempre pessoal, sempre variada, mas consistentemente íntima. Essa impressão, qualquer que ela seja, não é transformada por uma peça de humor que podemos ver como engraçada ou de mau gosto. Sobre o Islã e seu Profeta, há 1.400 anos, não conhecemos nada, a não ser os estereótipos vagos com que fomos alimentados e muito provavelmente o Charlie Hebdo continua a fomentar.

O teste é simples: honestamente e apenas para si mesmo, qual é a mensagem que você lê na imagem do Profeta portando um turbante-bomba?

* Professor de Direito Internacional da FGV Direito SP.


Comentários

3 respostas para “A hipocrisia em marcha”

  1. Mais do mesmo. Relativismo cultural e oportunismo político.

  2. Avatar de Jamil Zugueib neto
    Jamil Zugueib neto

    Sou prof. da UFPR e doutor e (pós-doc) em psicologia com pesquisas de campo realizadas com ex-combatentes na longa guerra do Líbano (1975-1990). Ali infelizmente se encontra, o grande laboratório para o estudo da gênese e a perduração geracional do ódio étnico.
    Gostaria de parabenizar a coragem do psiquiatra Auro Danny Lesche em relatar o episódio na dinâmica de grupo com o rabino. É essa qualidade de profissional que temos que apoiar nas suas iniciativas (ele já mostra uma face de sua identidade, lembrando Quixote no seu projeto). Seu papel seria importantíssimo se o mestre participasse algumas vezes das inúmeras jornadas para jovens de sua comunidade que se reúnem para discutir o judaísmo, a fidelidade, a tradição e o crescente anti-semitismo no mundo. No Brasil a violência de cunho étnico dá seus primeiros passos, deveríamos levantar essa questão em qualquer ocasião e principalmente em nossas aulas no campo da Saúde Mental, com nossos jovens alunos. E sempre sublinhando que somos brasileiros e devemos agradecer, respeitar e dar algo em troca a essa pátria maravilhosa, apesar dos psicopatas que nos governam.

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