“Uma brincadeira de crianças inteligentes”, assim resumiu Monteiro Lobato a Semana de Arte Moderna de 22. O escritor de Taubaté já carregava a fama carrancuda de inimigo número 1 dos “modernistas” desde que, em novembro de 1917, espinafrou a exposição de pinturas de Anita Malfatti, improvisada no pied-à-terre do Conde de Lara, aliás Antonio de Toledo Lara.
Na verdade, Lobato nem se daria ao trabalho de aparecer lá pelo Theatro Municipal de São Paulo para aquela semana de apenas três noites, em fevereiro de 1922. Não deu a menor bola para o alarido militante dos folhetos e a curiosidade excitada dos matutinos, precavido que estava, por sua impaciência visceral, sobre esses folguedos pueris a serem protagonizados por um punhado de revolucionários de salon – todos eles, no entanto, camaradas seus de saraus, boemia e papo fiado.
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Faz 90 anos. Pacificadas as facções exacerbadas e as emoções radioativas, estando a Semana já estratificada na serenidade meticulosa das teses acadêmicas e das reportagens remissivas, dá para perceber: nem Lobato cabia na moldura daquele espírito reacionário, passadista e nacional-caboclinho que lhe imputaram, nem os “modernistas” da Semana tinham exatamente noção de que o fuzuê intelectual que desencadearam – o verdadeiro, não a marola promocional – iria além de uma jocosa provocação.
Acabo de ler 1922 – A Semana Que Não Terminou, lançamento do jornalista Marcos Augusto Gonçalves (Companhia das Letras), reli Semana de 22 – Entre Vaias e Aplausos, de Márcia Camargos (Boitempo, 2002), relembro-me de obras capitais como A Crítica e o Modernismo, de João Luiz Lafetá São Paulo, (Editora Duas Cidades, 1974); O Coro dos Contrários – a Música em Torno da Semana de 22, de José Miguel Wisnik (Duas Cidades, 1977); e História do Modernismo Brasileiro – Antecedentes da Semana de Arte Moderna, de Mario da Silva Brito (Civilização Brasileira, 1974).
A releitura da Semana de 22, antes tão estufada de mitos e de polêmicas, encaminha-se para aquilo que a rapaziada desvairada menos ansiaria obter: um consenso. Tanto os livros mais antigos quanto o mais recente, de Marcos Augusto Gonçalves, belo garimpo de detalhes com rigor de reportagem, convergem, sem trombadas epistemológicas, para uma conclusão: o que se destinava ser, com doses cavalares de incitamento, uma manifestação artística que sacudisse o torpor provinciano da ainda tímida metrópole virou epifenômeno, incorporando outros significados simbólicos, mobilizando o calor das sensibilidades intestinas e reverberando em ondulações tectônicas muito além de seu destino manifesto.
Para o espectador que até então atribuía àquele simulacro da Ópera Garnier, de Paris, a compostura da gravata, das polainas e dos vestidos longos, e se iludira com o aval de corpo presente de Graça Aranha, autor de Urupês e membro-fundador da Academia Brasileira de Letras, a Semana consumiu-se em vaias, muito mais que em aplausos. Não entendia, a elite afrancesada, se as telas estavam penduradas na posição correta, entediou-se com concertos considerados sem pé nem cabeça e dormitou em palestras soterradas em hermetismo. Ainda assim a Semana plantou uma coceira na cabeça dos bien pensants: seria aquilo mero insulto ou, de fato, uma reviravolta estética?
Pouca gente viu – e viveu – a breve Semana de 22. O extraordinário dela é que muita gente a discutiu com exaltação veemente, alastrando-se o debate em rastilho interativo, de assertivas e dúvidas, de defesa e ataque, numa época tão distante de plataformas incendiárias como a internet e do Facebook. A Semana de 22, pode-se dizer, é um fenômeno das redes sociais, aliás, da rede social, inclusive no sentido estrito de mundinho circunscrito, frívolo e endinheirado que a palavra “social” encerra.
De Oswald de Andrade a Di Cavalcanti, de Menotti del Picchia a Victor Bre-cheret, de Tarsila do Amaral a Mario de Andrade, todos ali faziam trafegar sua irreverência conivente pelos banquetes acomodados da “digestão bem feita de São Paulo” (apud Oswald). O twitter deles foram os jornais, as revistas e os livros – e para os livros, paradoxalmente, costumavam ter o apadrinhamento de um ativo editor chamado Monteiro Lobato.
Eram gregários, possuíam a inteligência da sedução e de muitos deles pode-se dizer o que Menotti del Picchia ressaltou em Oswald de Andrade: a capacidade “quase mágica de fascinar qualquer pessoa”. Tinham, em linguagem de hoje, sua network e fizeram farto uso dela, amplificando a agitprop cultural com o talento de marqueteiros avant la lettre. Em suma: a Semana de Arte Moderna de 22 é um tremendo case de propaganda e de autopromoção.
São Paulo se assustou, em parte, mas precisava muito daquilo para afirmar sua autoestima de metrópole em ascensão. A cidade que até a virada do século, como diz Antonio Candido, sequer português genuíno falava, e sim uma macarronada de italiano ao molho de nhengatu (versão aportuguesada do tupi), foi construindo, com a fortuna do café, uma propensão cosmopolita. Metrópoles carecem de mitologia e São Paulo premeditava a sua, redescobrindo na figura dos bandeirantes a síntese de um Brasil profundo e verdadeiro – “homens idealistas e empreendedores, a desbravar sertões, escavar riquezas e expandir fronteiras” (MAG). Nos bastidores, o magnata Eduardo Prado e o sobrinho dele, Paulo Prado, os Vanderbilt da Pauliceia, abençoavam a prole “modernista” dos neomamelucos. Síntese improvável: intelectuais encharcados de Europa, querendo reinventar o Brasil. Conseguiram. Os baderneiros de 22, quem diria, viraram “a coqueluche do nosso grand monde“, surpreendeu-se del Picchia.
A Primavera Paulistana caiu no verão. Por mais que ainda escorregue, ora e vez, na tentação do recuo e na armadilha da estupidez, São Paulo desde então não seria a mesma.Mas por que não o Rio, a Corte, capital da República, epicentro das letras e das artes? Na verdade, considerável formigamento intelectual já circulava pelas mesmas artérias que, em São Paulo, também conduziam o dinheiro – o que desmente a Semana como fato singular, jorro de espontaneidade. Há mais continuidade – ainda que radicalizada – do que ruptura revolucionária em 22. Até o carioca Alceu Amoroso Lima já pressentia, em 1917, no gradual enriquecimento paulista, o papel de “realeza na República”. Recusava “invejas pequeninas” para profetizar que a movimentação cultural iria irradiar de São Paulo. “O século XVI pertenceu a Pernambuco, o XVII à Bahia, o XVIII a Minas Gerais, o XIX ao Rio de Janeiro, o século XX é o século de São Paulo.”
PARA COMEMORAR A DATA
O Theatro Municipal de São Paulo comemora entre 15 e 26 deste mês de fevereiro, os 90 anos do desvario da rapaziada que, em 1922, para escândalo de sua clientela enfatiotada, a casa sediou:
Magdalena, ópera de dois atos de Heitor Villa-Lobos, produção original do Théâtre du Châtelet, de Paris. Nas noites de 15 (quarta-feira), 17 (sexta), 19 (domingo), 23 (quinta) e 25 (sábado). Direção musical e regência: Luís Gustavo Petri. Orquestra Sinfônica Municipal, Coral Lírico e Coral Infantil Heliópolis.
Suíte Vila Rica, dança, tema composto por Camargo Guarnieri, Suíte Vila Rica, com o Balé da Cidade de São Paulo e Orquestra Sinfônica Municipal, regência de Carlos Moreno. Nas noites de 16 (quinta-feira), 18 (sábado), 24 (sexta) e 26 (domingo). No mesmo programa:
Pedro Malazarte, ópera em um ato de Camargo Guarnieri, com libreto de Mario de Andrade, pela Orquestra Sinfônica Municipal e Coral Lírico.
Recital de piano com Caio Pagano (participação especial do Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo), com peças para piano solo executadas na Semana de 22. Sábado, 25, às 16 horas.
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