Cartas abertas para a história

No início de dezembro, o escritor alemão Ingo Schulze esteve no Brasil para participar de uma série de conversas sobre uma de suas mais recentes obras lançadas no País, o romance epistolar Vidas Novas, publicado pela editora Cosac Naify. Além deste livro, a editora lançou, simultaneamente, outro do autor, Senhor Augustin, destinado ao público infantil. Outra obra dele, Histórias Simples da Alemanha Oriental, já havia saído aqui em 2002, mas o escritor ficou mais conhecido do público leitor brasileiro em 2008, quando veio para a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) lançar Celular – Treze Histórias à Maneira Antiga. Hoje, com 47 anos de idade, Ingo Schulze parece estar em seu auge criativo – aos 26 já era considerado, pela revista New Yorker, um dos seis melhores jovens escritores da Europa.

Vidas Novas foi publicado originalmente em 2005. De lá para cá, o autor lançou mais dois livros. Um deles, o mais recente, de 2008 (Adam und Evelyn, no original), está sendo traduzido para o português. No momento em que você lê este texto, é provável que Ingo esteja trabalhando em sua próxima obra, que será ambientada na Amazônia, para onde ele seguiu logo depois de terminada a miniturnê de divulgação de Vidas Novas no Brasil, acompanhado do tradutor e escritor Marcelo Backes. A contar pela repercussão, no meio literário, de seu trabalho e pela qualidade, tamanho e ambição monumentais de Vidas Novas, pode-se dizer que Ingo Schulze é um autor muito talentoso, além de ousado.
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À exceção de alguns escritos ficcionais de Enrico Türmer, o protagonista, Vidas Novas é todo constituído de cartas enviadas por ele para três destinatários – sua irmã, Vera; seu amigo, Johann; e Nicoletta, sua amante e futura noiva. Nessa correspondência, ele aborda os mais variados temas: seu trabalho, sua relação com a mulher – que se torna ex no decorrer do livro – e o filho dela, e até mesmo literatura, porque ele desejava ser escritor desde garoto (e termina sendo, como se verá).

Mas o assunto principal do romance, e dessas cartas, escritas entre janeiro e julho de 1990 (ou seja, meses depois da queda do Muro de Berlim e meses antes da reunificação alemã), é mesmo a Alemanha antes, durante e pouco depois da queda do Muro.

Vidas Novas é, portanto, um livro de ficção que se apoia em fatos reais – alguns deles vivenciados pelo próprio romancista. A propósito, ele conheceu muito bem os dois lados da então dividida Alemanha: Ingo Schulze nasceu em Dresden, no lado Oriental do país, e, em 1993, poucos anos depois da reunificação germânica, foi morar no lado Ocidental de Berlim. Sobre a diferença entre as duas Alemanhas, há um trecho do romance que dá uma boa ideia de como boa parte da fração socialista enxergava o outro lado do muro:

“No lado ocidental, as ruas eram aquecidas subterraneamente, os postos de gasolina nunca fechavam, e, uma vez que as pessoas no Ocidente não sabiam o que poderiam fazer de mais bonito, voltavam a revirar, por mera brincadeira, as ruas que haviam acabado de asfaltar. (…) No lado ocidental, a gasolina cheirava como perfume e as estações ferroviárias eram parecidas com jardins tropicais, onde se oferecia frutas maravilhosas aos viajantes. No lado ocidental, na escola, todo mundo tinha cabelo comprido, usava jeans e mascava chiclete, com o qual se podia fazer bolas do tamanho de uma cabeça”.

Além desse aspecto histórico, há duas particularidades no livro. A primeira: Ingo Schulze é também o nome do personagem que organizou as cartas de Enrico para serem publicadas, além de ter escrito as notas de rodapé. A outra é que Marcelo Backes, o tradutor do livro, também encarnou uma espécie de personagem. Segundo ele, suas “Notas do Tradutor” “não se limitam ao contexto da passagem – e à busca da utópica e especulativa igualdade de condições ao leitor brasileiro -, mas podem inclusive adentrar livremente o terreno da interpretação, bispando a dádiva, por assim dizer, de interferir de maneira direta naquela que é uma das maiores obras da literatura alemã contemporânea…”

Desde já, um clássico
As observações que o organizador Ingo faz, em tom de edição crítica, ao longo do livro, muitas vezes mostram que o autor das cartas não é exatamente aquilo que expõe ser. E os fatos não são tal como ele os relata. Ou seja: Enrico Türmer às vezes maquia os acontecimentos de sua vida e suas atitudes, fazendo com que as coisas se tornem mais favoráveis para si, transformando suas falhas em pontos positivos. Nas próprias cartas, porém, estão as pistas que fizeram o organizador descobrir, por exemplo, o relacionamento amoroso entre Enrico e o amigo Johann. Já em muitas cartas para Vera, ele deixa entender que houve entre eles uma vontade de relacionar-se amorosamente. Ou mesmo que realmente houve tal relação, o que caracterizaria um incesto.

Pistas deixadas, ao que parece, de propósito. Porque cartas, em tese, têm apenas dois leitores: remetente e destinatário. Mas Enrico escrevia suas missivas sabendo que, no futuro, elas seriam lidas por mais pessoas – na verdade, parece ser esta a sua intenção: ter suas cartas lidas não como correspondência, mas como um romance. Em uma delas, enviada a Nicoletta, ele inicia o que parece uma expiação: “Não quero contar minha vida à senhora, mas apenas seguir aquele rastro, aquela trilha que me levou tão lamentavelmente ao engano, e cuja descrição, no fim das contas, talvez resulte em algo como uma espécie de história, uma história sórdida, que pode ser útil na condição de terrível exemplo e leal advertência”. Ao que o organizador Ingo Schulze observa: “Essas formulações lembram antes um princípio de romance do que uma carta. Para quem essas ‘histórias sórdidas’ são dedicadas, a quem devem servir de ‘terrível exemplo e leal advertência’ fica em aberto”.

Considerado por alguns críticos como, desde já, um clássico, Vidas Novas dá a medida real do quão sofrido foi para a Alemanha aquela divisão esdrúxula, sem sentido. Schulze nos faz visualizar e entender melhor aquele período obscuro pelo qual passou o país, mas até mesmo sentir o peso “abstrato” que tinha aquele muro monstruoso para milhares de famílias.


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