A tecnologia da fita crepe
O DKW era um carro de passeio pequeno. Simples. Familiar. Modesto. O primeiro do gênero fabricado no Brasil. Era chamado Decavê. Para o comprador comum, saía da fábrica – a VEMAG – com singelos 40 cavalos de potência. No entanto, quando preparado pelas mãos de Miguel Crispim Ladeira e sua equipe, tornava-se um bólido de 107 hp, capaz de vencer carros dotados de muito mais fama, jeitão de vencedor e pedigree. O veterano mecânico recorda, sem esconder o orgulho: “Nos circuitos de rua, o nosso DKW era o demônio! Ganhamos diversas corridas”.
Muito respeitado por três gerações de pilotos, Crispim completou 70 anos em novembro. Não se aposentou. Até dois anos atrás, permanecia nas pistas como coordenador de equipes. Agora, supervisiona a assistência técnica prestada aos automóveis da fábrica Lobini. Pois é, Crispim não largou sua primeira paixão: os carros.
Nascido em Campinas, chegou bebê em São Paulo, capital, onde, garoto ainda, cursou a Escola Técnica Getúlio Vargas. Já pegava no batente em uma oficina mecânica quando serviu o exército. Depois de dar baixa, tornou-se funcionário da VEMAG. Foi trabalhar na área de testes, e não demorou para ingressar no departamento de competições e a comandar a equipe de mecânicos. Bons tempos.
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“Foi uma época de ouro”, suspira. “Tudo era novidade. As competições eram um laboratório. Cada ganho de potência do carro exigia novos materiais na estrutura do veículo, para que resistissem mais.”
O DKW pesava quase uma tonelada. A primeira medida foi torná-lo mais leve. “Tiramos até o excesso de roscas dos parafusos”, conta. No segundo ano da equipe de competições da VEMAG, a aventura foi criar a carretera de teto baixo. Eliminou-se parte do porta-malas traseiro, para favorecer o arrasto aerodinâmico. “Sabe como fazíamos para descobrir quais eram as áreas de alta e baixa pressão? Prendíamos fios de lã com fita crepe”, diverte-se, com a precariedade do, digamos, recurso técnico.
Crispim não se esquece das “Mil Milhas” de 1961 em Interlagos. Na ocasião, a equipe conseguiu trocar as lonas dos freios dianteiros em apenas dois minutos. Prevenidos, os mecânicos haviam preparado luvas de amianto. Só assim, poderiam suportar a alta temperatura. Não foi preciso. Bird Clemente, o piloto, conseguiu a proeza de correr duas voltas antes do pit stop sem botar o pé no freio, para não transformar as lonas em um caldeirão fervendo.
Uma época de muita criatividade, claro. Pa-ra aliviar ainda mais o peso do carro, surgiu o DKW Mickey Mouse, com a distância entre eixos encurtada em 35 cm. Seguiu-se o DKW Malzoni, com a carroceria moldada em chapa e, depois, em fibra de vidro – obra de Rino Malzoni. Dirigido por Francisco “Chico” Lameirão, o bólido bateu o recorde de Interlagos na categoria de motores de 1 litro. A história é curiosa: “Lameirão dirigia antes carros Gordini, que derrapavam com as rodas traseiras, ao contrário do DKW, que saía de frente. Resolvi instalar uma barra estabilizadora atrás, para adaptar o carro ao piloto”.
Outro recorde da equipe foi batido com um Fórmula Júnior (“categoria que não pegou”) adaptado, que até ganhou uma carenagem inventiva. Pilotado por Norman Casari, chegou a 213 km/h em linha reta. Um recorde para marcar o fim da equipe oficial da DKW.
Eleito, em 1966, o melhor mecânico do ano pela revista Quatro Rodas, Crispim recebeu o prêmio das mãos do italiano Carlo Pintacuda, um mito dos primórdios do automobilismo. Longe da DKW, foi trabalhar em uma concessionária Volkswagen em Campinas, onde sua família tem raízes. Ficou pouco tempo. Retornou a São Paulo. Empregado em outra revendedora, preparou um Puma VW para Freddy Giorgi e outro para Angi Munhoz. Enfim, voltava a trabalhar no que gostava. Melhor ainda quando o convidaram para ser o coordenador técnico da Equipe Hollywood, a primeira no Brasil a funcionar em moldes absolutamente profissionais.
Já em meados dos anos 1970, associou-se a Angi Munhoz e a Francisco Lameirão na Equipe Brasil. O patrocínio da Motorádio permitiu que participassem de várias categorias, da Fórmula Ford à Divisão 6 (esta última, com um Porsche 907). “Foram seis anos de sucesso”, celebra. “Não dá para esquecer o título de Lameirão no Campeonato Brasileiro de Fórmula Super V, em 1975.”
Não dá para esquecer, também, de pioneiros com o talento de Crispim, capazes de resolver problemas de aerodinâmica com um simples fio de lã e um pedaço de fita crepe.
Quando o pneu virou salsicha
Elísio Casado jamais descartou desafios. Quando surge um convite tentador, ele não resiste. É com ele mesmo. Vamos nessa que é bom à beça. Permanece assim, aos 65 anos, preparando motores de competição. Pode-se supor que seja o mesmo ânimo do garoto de 16 anos, nascido em Promissão, a 450 km de São Paulo, que, já morando na capital, ajudava o irmão mais velho a montar motores Dauphine e Gordini, fabricados na Renault do Brasil.
O capricho do adolescente era tamanho que Luiz Pereira Bueno o chamou para trabalhar em sua oficina, a Torke, no bairro de Santa Cecília. Foi o primeiro de muitos convites. Na Torke, Elísio conheceu José Carlos Pace e os irmãos Abílio e Alcides Diniz, entre outros tantos. A oficina, enfim, era um point da turma do automobilismo, embora exigisse muito trabalho. “Muitas vezes, avançávamos madrugada adentro para deixar um carro em ponto de bala”, lembra. “Não me queixo. Foi uma escola.”
Em 1962, Elísio já estava preparando o motor para Luiz Pereira Bueno, Francisco Lameirão e José Ricardi participarem das 12 Horas de Interlagos. Daí em diante, diversos outros pilotos passaram a usar seus serviços. A vasta lista inclui Lian Duarte, Luís Felipe Gama Cruz e Graziela Fernandez. “Os testes eram complicados”, recorda. “Não tínhamos dinamômetro (o instrumento para medir a potência do motor) e conferíamos o desempenho nas ruas, muitas vezes cronometrando entre um poste e outro.”
Outro convite levou Elísio para a equipe oficial da Willys. Foram muitas as vitórias. Mesmo assim, a equipe teve de fechar as portas, em 1968. Elísio achou que, daquela feita, iria garantir o ganha-pão como autônomo. Mas claro que apareceu outro convite. Bird Clemente e seu irmão, Nilson, o queriam para deixar o Opala da dupla nos trinques.
“Aconteceu uma história engraçada”, lembra. “O Bird cismou em bater o recorde de velocidade na Rodovia Castello Branco usando pneus comuns, estreitos. Estava animado. Chamou até um engenheiro da fábrica de pneus. Só que os pneus comuns, submetidos às freadas e à alta velocidade, cresciam, viravam uma salsicha e, a toda hora, tínhamos de jogar água para esfriá-los. O engenheiro ficou maluco!”
Novamente, o passe de Elísio foi comprado. Era o time de Pedro Victor de Lamare. Sucedeu-se a escuderia do ex-patrão, Luiz Pereira Bueno. Era mais um convite irrecusável: trabalhar na vitoriosa Equipe Hollywood. Elísio já tinha experiência suficiente para montar e desmontar motores importados das fábricas Porsche, Cosworth e outras de fino trato. Poucos se arriscavam a abrir e ajustar componentes daquelas máquinas.
“O nosso Porsche 908/2 foi correr os 1.000 km da Áustria e ia fazendo bonito, mesmo disputando com carros mais modernos”, diz. “O Luiz Pereira Bueno chegou a ficar na quarta colocação, antes de ser jogado para fora da pista por uma Ferrari da equipe oficial da fábrica italiana.” Uma decepção. Mas Elísio aproveitou e fez um curso na Porsche. Isso se repetiria mais tarde, na Itália, na Novamotor dos irmãos Pedrazzani.
Sempre convidado, o disputado mecânico bandeou-se para a Equipe Brasil e, de lá, para a Sportshow, de Marivaldo Fernandes, uma oficina especializada em carros de Fómula Ford e Super V. Mais uma vez, se deu bem. Foi com um desses veículos que José Pedro Chateaubriand levantou o campeonato da Fórmula Ford, em 1976. E olha que havia muita gente boa na disputa.
Mais tarde, a própria Ford chamou Elísio para revigorar a Fórmula Ford. Coube a ele a manutenção dos motores da categoria, visando igualar a potência e equilibrar a disputa técnica entre os pilotos. Elísio abriu o sorriso. “Foi o primeiro motor a injeção eletrônica que ajudei a aperfeiçoar”, diz, sempre entusiasmado com a evolução da tecnologia. “Se, nos anos 60, um motor de 4 tempos tinha 70 cavalos, hoje transformamos a potência no dobro disso.”
Em sua própria oficina, o homem de Promissão continua a muitas rotações. Preparou o motor Alfa Romeo para o Fórmula 3 de Christian Fittipaldi, que levou o campeonato sul-americano da categoria. Também deu uma força para o pai do piloto, Wilson Fittipaldi. A pedido dele, restaurou um velho motor Cosworth, de meados dos anos 1970. Só assim Wilsinho restaurou o polêmico Copersucar da Fórmula 1 para fazer exibições pelo Brasil.
Irrequieto, Elísio preparou um VW Gol e desenvolveu um motor Mitsubishi a diesel, ambos para provas de rally. No momento, entre outros clientes, trabalha para a Equipe Mattheis, que disputa a Endurance, uma categoria eclética, na qual não faltam carrões lendários. A propósito, o bólido sob a supervisão de Elísio é uma reprodução de um Ford GT-40. Um carro que fez história. Como o próprio Elísio.
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