Como o MST se ocupa da educação

Ocupar. Esta palavra sempre aparece quando o tema é o Movimento dos Sem-terra. Uma outra, porém, raramente desponta em letra de forma: educar. E é de educação que o MST também se ocupa. Mas há entraves. Por exemplo, 600 alunos dos acampamentos gaúchos perderam o ano letivo de 2009, apesar de terem estudado mês a mês. Os garotos vão, no mínimo, “repetir de ano”, como se costuma dizer. Essa situação é resultado de uma história que envolve o Conselho Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, a Justiça gaúcha e a Secretaria de Educação Estadual. O conjunto de decisões desses órgãos deu no que deu: alunos que não têm ideia de onde irão estudar em 2010.

Ao contrário do que aconteceu ao longo de 13 anos, os colégios montados em acampamentos gaúchos do MST deixaram de ter validade, acusados de “ensino ideologizado”. Agora, apenas aqueles instalados nos assentamentos contam com a garantia oficial. Em suma, foi por terra abaixo, na prática, o projeto chamado pelo MST de “Escolas Itinerantes”.
[nggallery id=15294]

A Escola Nova Sociedade é a sede do projeto e considerada um modelo. Funciona no assentamento Itapuí, no município de Santa Rita, a 40 km de Porto Alegre.

Na sala de aula da professora Maria Gorete, a tarefa dos alunos é escolher um tema – entre os vários trabalhados ao longo do ano – e, a partir dele, elaborar um texto que serviria como avaliação para a nota final da disciplina de História. As opções vão sendo apontadas pelas crianças: o Islã, os gregos, as questões sociais no Brasil, os hebreus. Ao terminar a aula, Gorete segue para a sala da 1a série do 2o grau, onde os alunos a esperavam com a televisão ligada, exibindo um filme sobre as Cruzadas. A turma escolheu esse tema para comparar os problemas socioculturais da “Idade Média e a realidade dos dias de hoje”.

Maria Gorete, 45 anos, tem mestrado em História e especialização em Geografia. É uma das figuras fundamentais da escola. Responsável pelas disciplinas de História e Artes, a sergipana já deu aulas em acampamentos e assentamentos em todo o Brasil. Está radicada no Rio Grande do Sul há 17 anos e vive como assentada em Nova Santa Rita, com o marido e três filhos.

“Fico contente quando o governo do Estado nos acusa de formar pessoas que têm uma visão crítica da sociedade”, diz. “É sinal do sucesso do nosso projeto educacional. Ao negar educação aos alunos acampados, o governo gaúcho faltou com respeito às crianças e a uma visão humanista do mundo.”

Alfabeto na terra
O ingresso de Maria Gorete no mundo da educação infantil aconteceu no acampamento da Fazenda Borda da Mata, no município de Canhoba, a 124 km de Aracaju, em Sergipe, por intermédio de uma freira que lhe explicou o método do educador Paulo Freire. “A gente ouvia falar, mas não conseguia entender muito bem o que significava”, lembra. “No contato com as dificuldades diárias, descobrimos que, na prática, estávamos aplicando o método Paulo Freire sem saber. Na falta de lápis, a gente apanhava um graveto e riscava o chão. Ali, na terra, desenhávamos as primeiras letras da alfabetização. Cada aluno tinha um pedacinho de terreno para desenvolver suas letrinhas. Aos poucos, eles iam percebendo que aquela terra pequeninha podia ser ampliada a um tamanho suficiente para que sua família morasse, plantasse, produzisse e encontrasse um futuro. Junto a isso, corria em paralelo o processo de transformar as letrinhas em palavras, depois em frases, parágrafos e, por fim, escrever o pensamento da gente e registrar a nossa força.”

O programa das Escolas Itinerantes despontou como a solução de um problema que foi, por anos, incontornável. Ainda que estudassem diariamente nos acampamentos, as crianças precisavam reiniciar os estudos praticamente do zero, tão logo eram transferidas para um assentamento. Eis o obstáculo: não havia reconhecimento legal das atividades pedagógicas desenvolvidas nos acampamentos. Até que, em 1996, um projeto do governo do Estado reconheceu oficialmente as aulas ministradas por professores do MST nesses acampamentos.

O sistema era simples. Uma criança que vivia acampada, por exemplo, no norte do Estado do Rio Grande do Sul estudava na escola local do MST e estava matriculada na Nova Sociedade. Com a devida documentação, podia ingressar em qualquer instituição de regime regular. Podia…

O término do acordo é resultado de uma denúncia do Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul contra as escolas itinerantes, sob o argumento de que o ensino delas é ideologizado e promove lavagem cerebral para formar futuros comunistas. Como prova, dois promotores estaduais encontraram em suas buscas – em um “notável serviço de inteligência”, segundo o MPE – livros de Paulo Freire, Florestan Fernandes, José Martí, Che Guevara e do pedagogo russo Anton Makarenko. Perante a denúncia, a Secretaria Estadual de Educação cancelou o convênio entre as secretarias municipais e as escolas do MST, que garantia o repasse de R$ 16 mil mensais para despesas de pagamento de salários de professores, merenda e transporte escolar. Por fim, ficou determinado que a rede pública absorverá as crianças sem escola.

A medida provocou reação imediata em políticos como Rossano Gonçalves, prefeito de São Gabriel e filiado ao PDT. Ele se queixa de que o município não tem estrutura para absorver os alunos vindos dos acampamentos. “Não dá. Para oferecer ensino, transporte e merenda escolar, a prefeitura precisaria de R$ 46 mil”, contabiliza. “Não temos essa verba.”

Para Cícero Marcolano, 51 anos, diretor da Escola Nova Sociedade, o Estado gaúcho abandonou as crianças acampadas à própria sorte. “O argumento usado pelo prefeito de São Gabriel se repete em outros municípios e isso faz com que os filhos dos acampados não tenham direito à educação.”

A preocupação dos educadores do MST vai além da falta de vagas no sistema público para atender os alunos que ficaram sem escola. Eles não aprovam a metodologia dos colégios convencionais, por não levarem em consideração as dificuldades vividas por uma criança sem-terra até chegar ao assentamento definitivo. No projeto Motivação e Cooperação, aplicado na Nova Sociedade, alunos com problemas de sociabilidade ou atraso em alguma disciplina recebem atenção extra.

Com o fechamento oficial das escolas dos acampamentos, muitas crianças foram deslocadas de suas famílias para morar com parentes em assentamentos dotados de escolas regulares do MST. Outros, que não tiveram essa possibilidade, relutam em matricular os filhos nas escolas dos municípios por entender que a diferença na metodologia vai prejudicá-los.

“A Nova Sociedade tem por norma trabalhar a evolução cultural das crianças e tentar ajudar aquelas que têm algum problema pessoal a superar”, diz Cícero, enfatizando que a escola já educou duas gerações de assentados e filhos de acampados. “Alguns de nossos ex-alunos já são médicos, formados em Cuba. Também estão entre eles professores com pós-graduação e que mantêm nossa metodologia de ensino.”

As escolas itinerantes viraram até tese de mestrado da professora de pedagogia Isabela Camini. Ela acompanha o tema desde o início do programa. Segundo a pedagoga, a prática de ensino realizada pelo MST no Rio Grande do Sul tornou-se uma referência para escolas montadas nos mesmos moldes no Paraná, Santa Catarina, Goiás, Alagoas e Piauí. Quer dizer, apesar de tudo, o método de ensino da Nova Sociedade vem invadindo o País.


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.