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Leandro Batista da Silva tem tatuado, no antebraço, o nome de seus filhos: Gui, de Guilherme, e Julia. No outro, a frase “Só Deus pode me julgar” – testemunho impresso na pele de sua incursão efêmera, mas aguda, pela igreja evangélica. O mesmo motivo que o induziu certo dia a mergulhar em um culto de moral estrita, de proibições rigorosas, trouxe-o de volta para uma vida profissional plena e solar. A maldição se transformou hoje em seu ganha-pão: Leandro é um sommelier de cachaça.
O que um Manoel Beato faz pelo vinho, nas noites luxuosas do Fasano, orquestrando um concerto milionário de châteaux e domaines, de pauillacs e pomerols, de brunellos e barolos, Leandro faz pela mais brasileira das bebidas. Asperge, no almoço e no jantar, seu enciclopédico conhecimento pelas mesas rústicas do restaurante Mocotó, em São Paulo, e administra um acervo de 340 marcas escolhidas a dedo, quer dizer, pela língua e pelo faro.
Leandro tem 29 anos. Nasceu ali por perto, em uma São Paulo periférica de classe média baixa, vizinha ao Jaçanã – que entra naquele clássico do Adoniran Barbosa, Trem das Onze, como referência de lonjura extrema de uma cidade que parece não acabar nunca.
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Ao contrário da maioria da companheirada de rua, a cachaça foi sua única droga. Aos 14 anos já sabia apreciar uma branquinha, patrulhando-se para não deixar o prazer desandar em vício. A esse respeito tinha em casa o exemplo dramático do pai, aprisionado nas angústias líquidas do alcoolismo. Imaginem o dilema de Leandro. O desespero do rapaz explica o intermezzo evangélico de sua vida, dois anos e meio em que, diz ele: “De tão fanático, não bebia, não transava, não fazia nada”. Saiu maduro, consciente, fortalecido, e ainda recentemente fez palestra no núcleo de gastronomia da FMU descrevendo, de caso próprio, a nobreza que existe por trás do surrado clichê oficial: “Beba com moderação”.
Há quatro anos no Mocotó, ele é hoje um expert, sabe tanto de cachaça que já pode se dar o sacrossanto direito de achar que, com muito esforço e muito estudo, pode saber tudo dela. Vira e mexe está viajando, escrutinando in loco recônditos alambiques que fazem – o Deus dos artesãos seja louvado! – a diferença entre o que vai acontecer com sua cabeça quando você acordar no dia seguinte.
Ainda recentemente, Leandro se internou, por uma semana, em um curso mais estágio em Itaverava, perto de Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais. José Carlos Ribeiro, engenheiro agrônomo e mestre alambiqueiro, serviu-lhe de cicerone. Leandro voltou entusiasmado – e ainda mais sabido. Porém, assim como se encanta, ele se desencanta. Tentou visitar uma das mais badaladas destilarias supostamente “artesanais” de São Paulo. Ali, foram todos muito gentis com ele, cheios de salamaleques, mas não quiseram abrir o alambique. Saiu de lá e cancelou todas as compras. “Não é de confiança, estão escondendo alguma coisa”, fuzilou.
Leandro gosta de cerveja – e entende. Gosta de propor, em providencial revezamento com a cachacinha, a Colorado, de Ribeirão Preto, que, em sua consistência de cerveja digna da Bélgica, percorre uma palheta de sabores varietais, tipo mel, mandioca, trigo, café. E agora, na virada do ano, para fazer definitivamente jus à analogia, este expert self-made habituado a distinguir aromas de baunilha, especiarias e frutas selvagens numa aguardente que rasteja no andar de baixo da aprovação social, irá se aperfeiçoar junto aos figurões do mundo do vinho, acompanhando, bom aluno que é, o seleto curso de formação da Associação Brasileira dos Sommeliers (ABS).
A recíproca também é verdadeira. Uma tarde dessas, passou pelo Mocotó o guru Manoel Beato – que administra os Pétrus e Lafites das adegas do Fasano – para, de lápis e papel na mão, consultar Leandro a respeito da secreta essência de certos elixires de cana. O premiadíssimo Beato, aliás, junto com outros mestres, botou nariz e palato a serviço de uma cachaça artesanal destilada em São José do Mato Seco, município de Mococa, norte de São Paulo, sob a jurisdição diletante, mas apaixonada, do empresário Guto Quintela. A Da Tulha, Edição Única, é um blend de cachaças envelhecidas em jequitibá, jatobá e carvalho capaz de rivalizar com um soberbo Armagnac.
É frequente, cada vez mais frequente, a peregrinação de mestres e aprendizes até este Graal da canjibrina que é o restaurante Mocotó. Para a tribo enfeitada dos Jardins, é uma viagem e tanto, entre aqueles muros da Zona Norte de São Paulo onde se revezam a exuberância policromática dos grafites e a rebeldia vândala das pichações. O Mocotó é o restaurante brasileiro da hora. Mais exatamente: nordestino. Está por lá, na Vila Medeiros, desde início dos anos 1970. Foi aberto pelo Seu Zé Almeida, pernambucano exilado pela seca e pela fome, e hoje em dia quem pilota as caçarolas é o filho dele, Rodrigo Oliveira, 28 anos.
O jovem chef, embora conserve a simplicidade saborosa de uma casa sem pretensão, concede àquele capitoso cardápio de tapiocas, favadas, torresmos, atolados, escondidinhos e, claro, mocotós, o toque aggiornato de quem cursou faculdade de gastronomia e chegou a ser pupilo do exigente, extraordinário Laurent Suaudeau. Se houvesse um Guide Michelin de São Paulo, o Mocotó estaria honrando pelo menos duas estrelas e a menção “vale o détour“.
Não por acaso, foi o lugar que, no Brasil, fez salivar o lendário Ferran Adrià, do El Bulli, vizinhanças de Barcelona. Os críticos estrangeiros se encantam: El País, Financial Times, Food & Wine. Por ocasião do recente festim culinário da revista Prazeres da Mesa, permitiram-se uma escapada domingueira, na ansiosa expectativa de muitas caipirinhas e muitas extravagâncias, os casais Anya Von Bremzen e Barry Yourgrau e Caron Smith e Jeffrey Steingarten. Anya é editora contribuinte da Travel & Leisure. Nascida na Rússia, mora entre Nova York e Istambul e percorre o mundo escrevendo sobre restaurantes. O advogado aposentado Jeffrey Steingarten, crítico de Vogue América, virou celebrity do mundinho da gastronomia com seu livro O Homem que Comeu de Tudo (com edição brasileira da Cia. Das Letras) e, agora, com seu show no Food Channel.
Steingarten lançou um desafio ao sommelier Leandro. Queria dirimir de vez as recorrentes dúvidas acerca da diferença entre rum e cachaça. Na teoria, é fácil: o rum é um destilado do melaço da cana, a cachaça vem do caldo da cana, a garapa. Procedeu-se, então, uma minuciosa degustação de 14 tipos diferentes, de uma branquinha da Paraíba (Serra Limpa, de Duas Estradas) às amarelas de longo envelhecimento (Armazém Vieira Ônix, de 16 anos, “a preferida do Dr. Drauzio Varella”, confidencia Leandro). Com passagem pela surpreendente Jacuba (de Coronel Xavier Chaves, MG), um de seus atuais xodós, e escala, claro, no icônico terroir de Salinas, norte de Minas (Leandro apresentou ao grupo gringo a Canarinha e a Anísio Santiago, que são, sem exagero, o Mouton Rothschild e o Romané-Conti das aguardentes made in Brasil. Na prateleira do Mocotó dormita uma raríssima Havana, que antecedeu a Anísio Santiago. Uma só garrafa. Já ofereceram 900 reais por ela. O patrão recusou.). Steingarten ficou de escrever um artigo. Pelo rubor que coloriu sua face e o entusiasmo que destravou sua língua, deve ter apreciado.
Ao destilar, com humildade, mas sem inibição, as gotas de seu conhecimento à frente dos notáveis sabichões tanto quanto dos meros curiosos, Leandro desafia tabus (ele mandaria judiciosamente fuzilar todo aquele que, sem desfrutar do perfume e do gosto, toma seu gole de uma talagada só) e exerce uma causa: a de que a nossa aguardente de cana tem sua nobreza e, portanto, exige respeito – mais do que isso, admiração.
Que outro tipo de água de vida – pergunta ele – é tão eclética na escolha das madeiras em que repousa para amadurecer? O uísque passa pelo carvalho. Vinho, idem. Conhaque, o mesmo. E só. A cachaça tem um vasto repertório (leia quadro). “Ainda vai ser reconhecida como o mais rico e sofisticado destilado do mundo”, acredita ele.
Trata-se de uma árdua militância, em um país onde tudo o que cheira a popular vem impregnado do forte odor de preconceito. A marvada chegou a ser, no passado, perseguida pelas autoridades policiais. “Era malvista, vício de pobretões e arruaceiros”, lembra. Mas se o mundo começa a atribuir requinte e prestígio a uma bebida brasileira que o Brasil, no entanto, quase sempre menospreza, ainda há de chegar o dia, ainda que por mero mimetismo, o Brasil irá sentir orgulho de sua típica, especial aguardente. “Nesse dia eu me aposento e vou viver só dessa recompensa”, diz Leandro, o iluminista dos antebraços tatuados e da alegria do povo.
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