Um clássico de invenção

A muito bem-vinda nova edição brasileira de Três Tristes Tigres (José Olympio Editora) pode suscitar uma pergunta. Seria o romance do cubano Guillermo Cabrera Infante um clássico ou, para ser considerado como tal, um livro precisa sempre passar pela prova de um longo distanciamento histórico?

Se levarmos em conta um célebre ensaio de Italo Calvino – por acaso nascido em Cuba, mas criado na Itália desde bebê -, Três Tristes Tigres é um clássico. Ainda que não tenha completado meio século. Assim define o escritor italiano: “Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos”.
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Desde que foi lançado, em 1967, Três Tristes Tigres vem dando o que falar. Na época, seguia na contramão da vertente então mais elogiada da literatura latino-americana, o “realismo fantástico” -, que Cabrera Infante considerava, no geral, “porcarias”. O território em que se move é, sobretudo, o da linguagem, incluindo as peculiaridades que a dinâmica da ilha caribenha impôs ao idioma espanhol. O escritor transita com liberdade nessa área.

Cabrera Infante, admirador de João Guimarães Rosa e tão influenciado pelos clássicos quanto pelos quadrinhos e, em especial, pelo cinema (uma de suas obsessões), nunca teve receio, por exemplo, de recorrer ao trocadilho, à aliteração e à paródia – tidos, pelos críticos mais sisudos, como recursos fáceis. No que fez muito bem, por sinal: em suas mãos, esses ingredientes transformam-se em alta literatura.
Três Tristes Tigres é um livro recriado – também no sentido estrito do termo. Ele fazia parte de um outro romance, Vista do Amanhecer no Trópico, vencedor do prêmio Biblioteca Breve, da Espanha, em 1964. Apesar do laurel, o escritor decidiu dividir a obra em duas. Transformou o título original em uma visão ficcional da história de Cuba, da chegada de Colombo ao primeiro período pós-Revolução de 1959. Aproveitou em Três Tristes Tigres apenas a fração que tratava da boêmia em Havana no final dos anos 1950.

A recriação foi além. Na prática, o escritor cubano reinventou o livro. Em muitos trechos, dispensou as vírgulas, sem que isso dificulte em nenhum momento a leitura. Em outros, enveredou pela paródia, rendendo homenagens a Satíricon, de Petrônio e aludindo a textos de Shakespeare, Faulkner e diversos outros autores. Não faltaram, ainda, descrições apócrifas da morte de Leon Trotsky, escritas segundo escritores cubanos, incluindo um pastiche engraçadíssimo do estilo pomposo de Alejo Carpentier.

Sempre audacioso, Cabrera Infante não se furtou no romance de outros meios da criação: o trava-língua do título, versos, diálogos em forma de peça teatral, desenhos geométricos e até uma página que repete a anterior, mas com a escrita invertida – e, portanto, só pode ser lida com a utilização de um espelho. Enfim, um livro para fazer brilhar os olhos da Linguística.

Nascido em 1929, filho de fundadores do Partido Comunista cubano, Cabrera Infante foi, quando ainda morava em Havana, um excelente crítico de cinema e jornalista de fôlego. De início, apoiou a Revolução Cubana. Chegou a dirigir o Conselho de Cultura do novo governo, antes de desiludir-se com os rumos traçados por Fidel e exilar-se em Londres, onde passou a viver, em 1966, e morreu, em 2005.

Nas quase quatro décadas de asilo britânico, deu entrevistas condenando com veemência os desdobramentos da Revolução Cubana, mas jamais usou da literatura para fazer proselitismo anticomunista. Preferiu ocupar-se da linguagem, do cinema e de outro tema querido: a Havana de sua adolescência e juventude. É nessa cidade, em 1958, que transcorre a ação de Três Tristes Tigres.

Os personagens principais são três amigos – Códac, Silvestre e Arsenio -, boêmios inveterados e dotados de afinado senso de humor. Eles vagam pelas noites da capital cubana, num entra e sai de cabarés, como se a cidade a eles pertencesse. Em torno do trio, desenvolve-se uma galeria de personagens igualmente cômicos. O impagável Bustrófedon fala trocando a ordem das sílabas, enquanto a quixotesca La Estrella deseja se tornar uma cantora famosa, embora se recuse a ser acompanhada por qualquer instrumento musical. Essa deslavada inserção pelo humor não impede, todavia, de revelar os demônios e conflitos dos personagens e da cidade.

Oportuno ressaltar que a recém-lançada edição brasileira traz novidades. A começar pela tradução de Luís Carlos Cabral – a primeira foi feita por Stella Leonardos, nos anos 1970. Uma das vantagens é ter sido baseada nas sucessivas edições posteriores da obra, revistas pelo próprio Cabrera Infante, o que resultou na inclusão de um “Aviso do autor”, ressaltando a vocação noturna dos personagens: “Certos romances de terror e de mistério trazem a sugestão, muitas vezes apócrifa, de que não devem ser lidos à noite. A capa de Três Tristes Tigres, ou TTT, se assim preferirem, deveria exibir uma tarja com o seguinte aviso: ‘Deve ser lido à noite’. É que este livro é uma celebração da noite tropical”.

Outra novidade da edição fica por conta da cronologia da vida de Guillermo Cabrera Infante, assinada por ele mesmo. Entre outras passagens, o escritor relata os acontecimentos que levaram o governo cubano a exilá-lo na Bélgica – um exílio disfarçado por um cargo de adido cultural em Bruxelas. Revela ainda que, mais tarde, quando esteve em Havana por ocasião da morte de sua mãe, sofreu ameaças, levando-o a deixar o país, com mulher e filhos: “O chefe da contrainteligência cubana havia declarado que GCI (Guilherme Cabrera Infante) só sairia de Cuba por cima de seu cadáver. Esse policial da inteligência morreu há pouco em um acidente que o converteu em um profeta, para seu pesar. Ele está no além e eu estou aqui (na Europa)”.

O romance mais hilariante de Cabrera Infante talvez seja o autobiográfico Havana para um Infante Defunto, em que narra, em cru naturalismo, as iniciações sexuais de um adolescente. Mas Três Tristes Tigres é ainda mais provocador. O jornalista e ensaísta Sérgio Augusto afirma que, nesse livro, Cabrera Infante “Fez com a Havana de 1958 o que James Joyce havia feito com a Dublin do começo do século passado”. Um clássico? Ao final do ensaio sobre esse assunto, Italo Calvino confessa que deveria reescrevê-lo: “Para que não se pense que os clássicos devem ser lidos porque ‘servem’ para qualquer coisa. A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos”. Pois bem, 43 anos após o lançamento, Três Tristes Tigres se adequa a qualquer das interpretações de Calvino. Permanece “novo, inesperado e inédito” e, se fosse preciso indicar um único motivo para debruçar-se sobre o romance de Cabrera Infante, basta dizer que lê-lo é muito melhor – mas muito melhor, mesmo – do que não lê-lo.


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